Educação Fora da Caixa — agora, num kit de ferramentas

Ensino está em crise, mas sua reinvenção é aventura árdua. “Outras Palavras” publica, em capítulos, obra inspiradora voltada para quem se atreve a tanto

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O paradigma atual de ensino está em crise, mas a construção de um novo é aventura árdua. “Outras Palavras” publica, em capítulos, obra inspiradora voltada para quem se atreve a tanto

Por Alex Bretas

Reagi com um misto de animação e estranheza com o convite do Antonio Martins para publicar as ferramentas de aprendizagem do Kit Educação Fora da Caixa em Outras Palavras. Eu via tantas pautas sobre governos, economia e política no portal que cheguei a me perguntar se os conteúdos do meu primeiro livro se encaixariam aqui. Se haveria interessados.

Em 2014, iniciei meu doutorado informal sobre novas formas de aprendizagem de jovens e adultos, batizado de Educação Fora da Caixa. A primeira entrega dessa investigação seria um livro gratuito com os resultados da pesquisa: estudos de caso, reflexões e histórias que apontam para um paradigma educativo baseado na livre aprendizagem (que nada tem de novo, só não é tão disseminado por conta da hegemonia da educação industrial).

Ao longo do processo, fui capturado por uma necessidade súbita de escrever sobre ferramentas. Paul Feyerabend, filósofo do conhecimento, acreditava que um dos atributos mais importantes para o desenvolvimento da humanidade seria a pluralidade de modos de vida. Jeitos diferentes de se viver e se fazer as coisas. Os utensílios do Kit servem exatamente a esse propósito: celebrar a diversidade como um dos principais pilares da sabedoria de nossa espécie. Há ferramentas de origem africana, europeia, indígena, australiana, indiana, norte-americana e brasileira. Aqui convivem ciência, arte, filosofia, mitologia, antroposofia, sabedoria indígena e aborígene, antropologia e espiritualidade.

Com tudo isso nasceu o Kit. O “livro mãe” da Educação Fora da Caixa continua sendo escrito. O Kit, tendo surgido antes, é a primeira entrega mais robusta do projeto. Um filho nascido de surpresa. Tenho convicção que as ferramentas do Kit poderão ajudar educadores, gestores, pesquisadores, estudantes e entusiastas por uma educação livre e humana.

Vale mencionar que a principal diferença entre uma caixa de ferramentas e um livro de receitas é que receita a gente segue e ferramenta é pra gente inventar. Com ferramentas inventamos novas realidades porque elas nos fazem mais confiantes para começar a agir. Por isso, não proponho nenhum desses instrumentos como fórmulas prontas, mas sim como pequenas provocações capazes de descortinar mundos imprevisíveis.

Mas, venhamos e convenhamos: do que trata Outras Palavras senão de um conjunto de provocações capazes de descortinar mundos imprevisíveis? Ao abrir mais os olhos, passamos a enxergar o frutífero encaixe entre instrumentos para uma educação mais autônoma e governos, economia e política. Na verdade, de muitas outras coisas importantes se fala por aqui, mas a minha miopia inicial me conduziu à simplificação. Este mesmo erro acontece no modelo educacional tradicional: achamos natural tratar a todos como alguns poucos, reduzindo a importância singular de cada um. Não podemos mais tolerar tamanha simplificação. Precisamos, conforme aponta Valéria Gianella, apostar “na ideia de que o despertar do sonho e da paixão do sujeito, individual e coletivo, é primordial para desengatilhar a aprendizagem e a mudança”. É para isso que servem as ferramentas que a partir de agora serão apresentadas aqui. Sua utilização não se restringe a escolas: universidades, empresas, governos, ONGs e pessoas físicas também podem aplicá-las. Basta ampliar o olhar.

O Menininho

(Como epígrafe de todo o livro, recorro a um poema de Helen Buckley)

Uma vez um menininho foi para a escola.

Ele era só um menininho

E a escola era bem grande.

Mas quando o menininho

Descobriu que ele podia ir até sua sala

Andando direto da porta da frente

Ele ficou feliz;

E a escola não parecia

Tão grande como antes.

Numa manhã

Quando o menininho já tinha conhecido melhor a escola,

O professor disse:

“Hoje nós vamos desenhar”.

“Que bom!”, pensou o menininho.

Ele gostava de desenhar de tudo;

Leões e tigres,

Galinhas e vacas,

Trens e barcos;

E ele pegou sua caixa de giz

E começou a desenhar.

Mas a professora disse, “Espere!”

“Não é hora de começar!”

E então ela esperou até que todos parecessem prontos.

“Agora”, disse a professora,

“Nós vamos desenhar flores”.

“Que bom!”, pensou o menininho,

Ele gostava de fazer flores muito bonitas,

Com o seu giz rosa e laranja e azul.

Mas a professora disse “Espere!”

“Eu vou te ensinar como fazer”.

E era uma flor vermelha, de galho verde.

“Olhem só”, disse a professora,

“Agora vocês já podem começar”.

O menininho olhou para a flor que a professora desenhou

E depois olhou para a sua flor.

Ele gostava mais da sua flor,

Mas ele não disse isso.

Ele apenas virou a folha

E fez uma flor igualzinha à da professora.

Vermelha, de galho verde.

Noutro dia

Quando o menininho tinha conseguido abrir

A porta da frente da escola sozinho,

A professora disse:

“Hoje nós vamos trabalhar com argila”.

“Que bom!”, pensou o menininho;

Ele gostava de argila.

Ele podia fazer todo tipo de coisa com argila:

Cobras e bonecos de neve,

Elefantes e ratos,

Carros e caminhões

E ele começou a amassar e espremer

Sua bola de argila.

Mas a professora disse, “Espere!”

“Não é hora de começar!”

E então ela esperou até que todos parecessem prontos.

“Agora”, disse a professora,

“Nós vamos fazer um prato”.

“Que bom!” pensou o menininho,

Ele gostava de fazer pratos.

E ele começou a fazer pratos

De todas as formas e tamanhos.

Mas a professora disse “Espere!”

“Eu vou te ensinar como fazer”.

E ela mostrou a todo mundo como fazer

Um prato bem fundo.

“Olhem só”, disse a professora,

“Agora vocês já podem começar”.

O menininho olhou para o prato da professora;

E depois olhou para o seu prato.

Ele gostava mais do seu prato,

Mas ele não disse isso.

Ele apenas enrolou sua argila de novo

E fez um prato bem fundo igualzinho ao da professora.

Beeeeem fundo.

Não demorou muito

E o menininho aprendeu a esperar,

A assistir

E a fazer as coisas igualzinho à professora.

Não demorou muito

E ele não fazia suas próprias coisas mais.

E então

O menininho e sua família

Foram morar em outra casa,

Numa outra cidade,

E o menininho

Teve que ir para uma outra escola.

Essa escola era ainda maior

Do que a primeira.

E não tinha uma porta da frente

Que ia direto pra sua sala.

Ele precisava dar alguns longos passos

E andar num corredor bem grande

Pra chegar na sua sala.

E no primeiro dia

Lá estava ele,

E a professora disse:

“Hoje nós vamos desenhar”.

“Que bom!” pensou o menininho.

E ele esperou a professora

Dizer o que deveria ser feito.

Mas a professora não disse uma palavra.

Apenas andou um pouco pela sala.

Quando ela veio até ele

Ela perguntou, “Você não quer desenhar?”

“Sim”, disse o menininho.

“O que é que nós vamos fazer?”

“Eu não vou saber até você fazer”, disse a professora.

“Como é que eu devo desenhar?” perguntou o menininho.

“Do jeito que você quiser”, disse a professora.

“Com qualquer cor?” perguntou o menininho.

“Qualquer cor”, respondeu a professora.

“Se todos nós fizermos o mesmo desenho,

E usarmos as mesmas cores,

Como eu saberia quem fez o quê,

E qual é qual?”

“Eu não sei”, disse o menininho,

E começou a fazer uma flor vermelha, de galho verdei.

Parte I:

APRENDER CONSIGO MESMO

O que se aprende ao olhar para dentro?

“O Nascimento do Homem Novo”. Leunam Max. Fonte: Imagética Digital.

“O Nascimento do Homem Novo”. Leunam Max. Fonte: Imagética Digital.

 

1. Pensar, Sentir e Querer

 

O equilíbrio entre pensamentos, emoções e atitudes

Os arquétipos são sabedorias surgidas na infância da humanidade. De certo modo, podem ser entendidos como imagens que estão presentes no nosso inconsciente coletivo desde os tempos antigos. Para a antroposofiaii – uma filosofia e ciência espiritual sistematizada inicialmente por Rudolf Steiner – os arquétipos têm uma grande importância por permitirem uma compreensão ampliada a respeito dos fenômenos psíquicos e sociais. Uma dessas imagens arquetípicas é a do ser humano trimembrado, dotado das dimensões do Pensar, do Sentir e do Querer.

O Pensar, Sentir e o Querer são consideradas ferramentas da alma porque dão forma e concretizam nossa experiência de vida.

Por quê?

Entender melhor como nós operamos essas três capacidades é um passo firme de autoconhecimento. Pense um pouco nas pessoas que você conhece: existem aquelas que expõem de forma acurada um raciocínio e formulam conceitos com facilidade. Em geral, essas pessoas são ancoradas no Pensar. Há aqueles mais sensitivos, que falam muito das emoções e são mais sonhadores, isto é, têm a dimensão do Sentir aflorada. Existem ainda as pessoas completamente voltadas para a ação, mas que costumam refletir pouco quanto às consequências do que fazem. São voltadas para o Querer.

Um processo de aprendizagem focado no desenvolvimento humano, segundo a antroposofia, precisará buscar o equilíbrio entre essas três dimensões. A Pedagogia Waldorf, por exemplo, baseia-se justamente nisso. Reflita um pouco: como você se enxerga no Pensar, Sentir e Querer?

Ao tomar consciência do arquétipo do ser humano trimembrado, torna-se mais fácil pensar e propor soluções educativas que deem conta da integralidade das pessoas. Além disso, trata-se de uma forma de perceber a si mesmo que pode ajudar muito em percursos de aprendizado autônomos. Para que o conhecimento encontre a sabedoria, é necessário que encarar a aprendizagem de forma uma – isto é, equilibrando pensamentos, sentimentos e intenções/atitudes.

Como?

As faculdades do Pensar, Sentir e Querer podem ser associadas respectivamente à mente, ao coração e aos membros. A mente trabalha com percepções, conceitos, argumentos e ideias; o coração vibra por meio das emoções, vivências, do humor, do astral e dos valores; os membros conectam-se com as vontades, intenções, motivações, a energia e as ações.

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Fonte: Programa Germinar, turma de Belo Horizonte, MG, 2013.

 

Pensar

Quando pensamos, necessariamente estamos visualizando o passado. No entanto, não tratamos de fatos, e sim de nossas percepções sobre os fatos. O cérebro trabalha somente com o imaterial, o que significa que para todas as coisas físicas com as quais fazemos contato com os nossos sentidos, nossa mente cria representações.

O cérebro é a parte mais fria do corpo humano, o que sinaliza para algumas das características do pensar: racionalidade, lógica e clareza. Usualmente pode ser que tentemos ler os outros por meio da dimensão do Pensar. O risco, neste caso, é utilizarmos as representações do nosso passado para “enquadrar” a outra pessoa.

A tomada de consciência no nível do Pensar ocorre ao nos abrirmos para compreender de fato as experiências, a biografia e a visão de mundo do outro, evitando julgamentos baseados nos nossos pensamentos.

Sentir

O Sentir está intimamente ligado ao tempo presente e é bastante volátil, de modo que frequentemente alternamos entre as polaridades de simpatia e antipatia. Nossos sentimentos fazem a ponte entre o pensar (cabeça) e o querer (membros).

A temperatura do Sentir é quente e sua localização no corpo humano é no sistema rítmico, composto pelo coração, sistema circulatório e pulmões. Para trabalhar a dimensão do Sentir é necessário ter uma percepção mais apurada do que se passa em si e no outro: por um lado, entender como podemos melhorar nossa autopercepção e comunicar assertivamente nossas emoções; por outro, procurar ter plena atenção para acessarmos sentimentos que vêm à tona de maneira fugaz.

Uma peça-chave para lidar bem com o nível do Sentir é buscar desenvolver a empatia. Aqui, empatia pode ser entendida como a suspensão de nossas reações habituais de julgamento (simpatia e antipatia) ao acessarmos as experiências do outro. Melhoramos nossa empatia ao percebermos e frearmos nossas reações imediatas, praticando a escuta cuidadosa.

Querer

A dimensão do Querer conecta-se com o futuro e está localizada no sistema metabólico-motor (músculos, mãos, sistema digestório, pernas etc). Ela pode ser considerada uma polaridade em relação ao nível do Pensar: se este trabalha por meio da “desmaterialização” do mundo físico, o Querer dá forma concreta às imagens e representações da nossa mente.

O nível metabólico é a matriz do inconsciente: nossos instintos e desejos mais escondidos (até de nós mesmos). Por isso, compreender os quereres de si e do outro não é fácil: requer experiências capazes de revelar as intenções e necessidades mais profundas. Duas perguntas importantes são: o que está por trás dos pensamentos e sentimentos envolvidos em dada situação? Por que quero isso? Ainda que o Querer possa ser trabalhado por meio da conversa e da escuta, suas manifestações não costumam vir por meio da fala. A intuição desempenha um papel fundamental.

Para aplicar o Pensar, Sentir e Querer a contextos educativos, uma possibilidade é associá-los aos seus “objetos de trabalho”. O Pensar conecta-se fortemente ao conteúdo; o Sentir é muito influenciado pelas nossas interações; e o Querer trabalha com procedimentos e formatos. O balanceamento e o fluir entre esses três elementos são essenciais para propiciar estratégias pedagógicas adequadas.

As ferramentas contidas neste livro podem ser bastante úteis para ajudar a pensar diferentes alternativas de conteúdo, interação e procedimento, de modo a atender distintas necessidades educativas.

Para mergulhar

“Educação Integral”, Cosme D. B. Massi. Educacional. Link

“Waldorf integra o querer, o pensar e o sentir”, Ana Elizabeth Diniz. O Tempo. Link

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3 comentários para "Educação Fora da Caixa — agora, num kit de ferramentas"

  1. Almir Paraka disse:

    Muito Bom Alex. Trabalho instigante, provocador, veredas para desinstalar acomodados.

  2. Alex Bretas disse:

    Oi Geraldo, você pode baixar o livro completo do qual o texto faz parte neste link: http://www.alexbretas.com.br/kit
    Abraço!

  3. Geraldo Franco disse:

    O que eu penso do que li até agora (confesso que rapidamente!) Está bem organizado como forma explanatória e mostra caminhos que podem ser desenvolvidos (sem cansar muito o leitor, e à maneira de Hemingway, em curtas sentenças e parágrafos). Estou gostando mas sinto falta de exemplos concretos, de modo a jogar o pensar e o raciocinar no ato de fazer e retratar o fazimento e a coisa feita, juntando e amalgamando “querer” e “pensar” concretamente. Quero ler mais, mas nesse momento sem tempo de voltar e rever as obras citadas, coisa que é importante pois reafirma e ressegura a construção da teoria. E depois me falta uma biblioteca (das grandes) às quais me viciei (!) como fonte imediata de combate à sede . . . do saber! A ideia de ter a educação desencaixada e redistribuída (pode até em pensar em mochilas e em pochetes de modo a carrega-las conforme o necessário, mas com um uso imediato possível e fácil. Quero mais. Se quiser me mandar pelo correio e não faça cerimônia, e sabedor que se fizer uso terá garantido a citação, cf. os figurinos acadêmicos. Como estou aposentado não vejo isso muito fácil, mas, quem sabe, né? Afinal estamos num momento — e eu sinto isso daqui, tão longe de sampa e dos meninos afoitos e espertos , em suas escolas depreciadas por um governador fdp . . . mande ver!

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