Quadrinhos underground com sotaque nordestino e rock'n'roll

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Coletânea de autores cearenses do final do século XX retrata pessimismo da época, em linguagem rica e desconcertante

Por Gabriela Leite, com contribuições de João Rabello

Os anos 90 foram sombrios sob o sol quente do Ceará. Pelo menos é assim que mostra a coletânea Seres Urbanos, antologia de quadrinhos lançada esse ano, com trabalhos de 1991 a 1998, organizada por eles mesmos. O livro, que conta com uma auto-entrevista de 2014 com os autores, foi vencedor do Prêmio Miolo(s) de Publicações Independentes. Weaver, Marcílio, Elvis, Lupin, Kaos, Galba e Mychel formavam um importante grupo de artistas da época, em Fortaleza, que publicava seus próprios quadrinhos underground em zines feitas em Xerox preto e branco. Isso em uma época na qual a produção era praticamente toda manual, a impressão não era tão fácil e a distribuição menos ainda. Os garotos publicavam seus próprios zines e vendiam a preço de custo. Mesmo assim, influenciaram sua geração, em ressonância com a cena alternativa em outros estados.

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“Eu lembro que um dia o Kaos chegou pirado lá em casa — Cara, eu preciso falar contigo, Tá vendo isso aqui? Isso aqui não é nada! Eu posso rasgar porque eu posso imprimir mil cópias disso e…” conta Galba, sobre quando os integrantes do grupo começaram a ter contato com a máquina de fazer fotocópia. Parece absurdo hoje, que estamos tão imersos na cultura digital e a reprodutibilidade é algo completamente comum. Mas na época era uma maneira acessível e contestadora de se expressar e fazer um contraponto ao meio de comunicação de massa principal: a televisão, criticada em muitas tiras do Seres Urbanos.

Mas a possível empolgação com a produção facilitada não se reflete nos temas dos quadrinhos. Muito ligados à cena rock’n’roll da época, os quadrinistas criavam personagens pessimistas e egocêntricos, desesperançosos, prepotentes, imersos em um mundo dominado pela TV, com vistas a um futuro eletrônico e frio. Em uma interessante mistura de figuras populares com a juventude roqueira e radical chic cearense, gírias em inglês se intercalam com sotaque nordestino.

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Críticas severas ao governo, à pobreza e ao status quo, com uma pegada existencialista e niilista, dão o tom a Seres Urbanos. Mas a multiplicidade de temas e estilos artísticos é o que deixa o livro mais interessante: Jesus em forma de privada, dois garotos punks que odeiam tudo ao seu redor e não querem se adequar ao modo de vida capitalista, uma banda poser de grunge, duas mulheres que conversam enquanto caminham pelas ruas quentes fortalezences, um homem atropelado que observa o movimento ao seu redor, jovens alternativos e egocêntricos em uma festa badalada, cartuns inspirados em poesia — esses são apenas alguns dos quadrinhos que estão em Seres Urbanos.

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Cada quadrinista tem seu traço, do mais sujo, passando pelo mais cartunesco ao mais realista. Algumas histórias são mais longas, outras são tiras curtas, mas que continuam ao longo do livro. Há frequentemente referências a ícones da cultura alternativa da época, como David Lynch, Sonic Youth, Joy Division, e também são citados autores como Bertold Brecht, Fernando Pessoa e Balzac.

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É muito interessante a maneira com que Seres Urbanos marca o pensamento jovem e irreverente de uma época, mas ao mesmo tempo tem quadrinhos muito atuais. O contato com criações com mais de vinte anos, que vieram de um local distante do eixo Rio-São Paulo, é muito enriquecedor — e também ajuda a quebrar preconceitos. A antologia é essencial para quem deseja compreender a rica trajetória dos quadrinhos brasileiros.seres05

 

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