A valsa brasileira – do boom ao caos econômico

O que aconteceu com a economia brasileira? Como passamos do boom econômico do final da década de 2000 para o atual cenário de verdadeiro caos? E mais importante, o que poderia ter sido evitado? Essas são algumas das perguntas que a economista Laura Carvalho procura responder em seu recente Valsa brasileira – do boom ao caos econômico.

Por Rômulo Manzatto[1]

O que aconteceu com a economia brasileira? Como passamos do boom econômico do final da década de 2000 para o atual cenário de verdadeiro caos? E mais importante, o que poderia ter sido evitado? Essas são algumas das perguntas que a economista Laura Carvalho procura responder em seu recente Valsa brasileira – do boom ao caos econômico, publicado em 2018 pela Editora Todavia.

Em suas quase duzentas páginas, o livro de Laura Carvalho se dedica à difícil tarefa de analisar o vaivém de nossa história econômica recente. A proximidade dos fatos, ao mesmo tempo que facilita a reconstituição, acaba por dificultar a análise sobre o que de fato ocorreu.

Dada a dificuldade da empreitada, seria a hora de Gildo Marçal Brandão arguto analista da conjuntura política de sua época, nos lembrar da metáfora hegeliana da coruja de minerva, que só levanta voo ao anoitecer  (BRANDÃO, 2005, p. 235).

Não obstante, Laura Carvalho conduz com leveza sua crônica da política econômica dos últimos anos. A qualidade do texto torna seu conteúdo acessível. Algo importante para uma área do conhecimento, a Economia, ainda vista como pouco simpática aos não iniciados.

Já os comentários de contracapa dão testemunho do alcance das ideias da economista e da diversidade de seus leitores. Os elogios são assinados por Maria da Conceição Tavares – das mais importantes figuras do pensamento econômico crítico brasileiro, por Mônica de Bolle, reconhecida economista de orientação liberal e Gregório Duvivier, popular ator, humorista e apresentador. Para completar, o texto de orelha é de autoria de Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e candidato à presidência da República nas últimas eleições pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Não por acaso, a capacidade de promover o diálogo em bases amplas é uma das principais qualidades desse livro, que pretende explicar a economia do país para seus principais interessados, isso é, os próprios brasileiros.

A autora PhD em Economia pela New School for Social Research, é professora do departamento de economia da FEA-USP. Também ocupa o posto de colunista semanal do jornal Folha de São Paulo, de onde acompanha semanalmente a conjuntura econômica e política do país, exercício do qual esse livro certamente se beneficiou.

Em ritmo de crônica, a reconstituição do dia a dia da política econômica brasileira traz de volta cenas de um passado recente. Ainda estão frescas na memória de todos as votações do impeachment em TV aberta, assim como os vazamentos de áudios com menção a grandes acordos nacionais, logo seguidos de delações bombásticas.

Elementos que fizeram parte do cotidiano dos brasileiros, desde que a crise política do país adquiriu um ritmo capaz de deixar qualquer um aturdido, com menção justificada no livro pelo impacto que tiveram nos rumos da política econômica do país.

Grosso modo, pode-se dividir o livro de Laura Carvalho em dois planos. Um da reconstituição histórica, outro da análise. Nesse caso, a reconstituição tem caráter acessório, dá cor e concretude para a tese que o livro procura avançar.

A tese é a seguinte: na transição do primeiro para o segundo governo Lula, sua gestão teria colocado em pé um modelo de desenvolvimento capaz de conciliar expressivo crescimento econômico com um processo de inclusão social de grande magnitude. Um verdadeiro milagrinho econômico, nos termos da autora.

Já a política econômica do período posterior não seria tão bem-sucedida. No governo de Dilma Rousseff, o modelo de crescimento com inclusão que havia viabilizado o milagrinho seria progressivamente abandonado, com sensível piora no desempenho da economia do país.

Na tentativa de corrigir os rumos, a gestão de Dilma Rousseff teria depositado todas as suas fichas em uma aposta equivocada. Tudo isso para logo depois mudar de direção, aplicando um severo ajuste fiscal no início de seu segundo mandato, o que acabou por comprometer os pilares que haviam sustentado o milagrinho, abrindo caminho para a debacle econômica que viria a seguir.

Avançando sua tese, Laura Carvalho desenvolve em detalhes o que considera como os principais acertos da política econômica dos dois governos de Luís Inácio Lula da Silva. A economista recorda que, se é evidente que o governo Lula se beneficiou do excepcional impulso externo é também verdade que soube surfar com habilidade a onda do superciclo das commodities.

Foi nesse período, afirma Carvalho, que se construíram os três pilares de sustentação do modelo de desenvolvimento do milagrinho. O primeiro, da distribuição de renda. O segundo, do acesso ao crédito. E o último, dos investimentos públicos.

Ocorre que o sucesso do milagrinho na promoção do crescimento com inclusão, deixava em evidência os limites do próprio modelo, assim como os limites estruturais da economia brasileira ao final da primeira década desse século, cuja superação talvez exigisse um milagre de maior tamanho.

Carvalho reconhece que o modelo do milagrinho não poderia se manter indefinidamente. Pelo contrário, no final daquela década, os desafios a serem então superados já podiam ser divisados com alguma clareza. Eram também três: o desequilíbrio externo e a estrutura produtiva; a persistente inflação de serviços e o aumento da concentração de renda no topo.

Dentre os caminhos possíveis para atacá-los, o novo governo de Dilma Rousseff parece ter escolhido os menos promissores. Entra então em cena o que a autora chama de Agenda FIESP, levada a cabo com determinação pela nova presidente.

Essa nova agenda de desenvolvimento tinha como principais objetivos a desvalorização da moeda brasileira – visando tornar mais competitivas as exportações do país. A contenção de gastos e investimentos públicos, assim como uma ampla política de desonerações tributárias, complementada pela grande expansão do crédito subsidiado via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Não por acaso, antigas reivindicações dos representantes da grande indústria do país.

Os resultados, como se sabe, foram desastrosos. O câmbio desvalorizado contribuiu para o aumento da inflação, colocando mais pressão sobre o custo de vida das famílias, com efeito adicional de inviabilizar o esforço para baixar a taxa básica de juros.

A pouco criteriosa política de desonerações teve grande efeito negativo na arrecadação do governo, o que, por sua vez, diminuiu ainda mais o espaço fiscal para o investimento público em infraestrutura física e social, debilitando também a demanda agregada.

Seguiram-se tentativas malsucedidas de micro gerenciar os problemas econômicos decorrentes, com grandes efeitos negativos em importantes cadeias de produção, como a do setor sucroalcooleiro. Por fim, a precipitação de uma crise econômica cujo legado parece ser o de outra década perdida ao país.

Como atenuante, é preciso lembrar que o impulso externo se mostrou bem menos favorável que no período anterior, ainda que seja forçoso reconhecer que o governo de Dilma Rousseff usou muito mal a margem de manobra de que dispunha.

Nem por isso a autora ignora as potencialidades não aproveitados do período de crescimento anterior, do milagrinho. O modelo não estava livre de problemas, mas havia sido capaz de construir três sólidos pilares que poderiam ter sustentado uma construção mais ambiciosa.

Vale lembrar, foi no período do milagrinho que, pela primeira vez desde a década de 1980, se adotou um modelo de desenvolvimento capaz de garantir níveis expressivos de crescimento econômico.

Em visada mais ampla, é preciso destacar que o período do milagrinho foi conduzido por um governo democraticamente eleito pelo voto direto, o que não é pouca coisa. Afinal, a última vez que esses três elementos se combinaram – governo democrático, expressivo crescimento econômico e inclusão social foi ainda antes de 1964.

Do livro de Laura Carvalho não nasce uma caracterização que demonize ou criminalize todos os aspectos da política econômica dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Tampouco a obra procura fazer um ajuste de contas com governos que teriam traído o mandato popular ao não avançar um projeto de reformismo forte. Nem por isso deixa de se posicionar.

A autora, por exemplo, considera que o impeachment de Dilma Rousseff foi aprovado tendo como base um casuísmo jurídico, mas não defende as más práticas de contabilidade pública que se tornaram comuns no segundo governo Dilma. Reconhece o câmbio sobrevalorizado como causa importante da falta de competitividade da indústria, mas não sugere a desvalorização da moeda nacional como condição suficiente para o estabelecimento de uma política industrial bem-sucedida. Identifica as limitações do modelo que sustentou o milagrinho, mas não considera que os erros posteriores teriam ocorrido somente por um suposto desvio da política econômica ortodoxa.

Ao construir suas posições com cuidado, a obra de Laura Carvalho vai criando para si um espaço em que transitar. A autora também desobstrui pontos do debate, com o intuito de propor senão um caminho, ou plano, ao menos alguma direção que possa orientar a retomada do crescimento com inclusão.

Seria o momento de um hegeliano como Gildo Marçal Brandão nos lembrar de levar até o fim a metáfora da coruja de Minerva, e assim reconhecer que toda reflexão, quando madura, anuncia algum amanhecer (BRANDÃO, 2005, p. 236). Que possa esse ser o caso da Valsa brasileira de Laura Carvalho.


Referências bibliográficas

BRANDÃO, G. M. Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol 48, n. 2, 2005.

CARVALHO, L. A valsa brasileira – do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018.

[1] Economista (FEA-USP) e mestre em Ciência Política (FFLCH-USP).

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