A Política Imigratória da Administração Trump. Quais bárbaros nos portões?

Em uma cerimônia de formatura de engenharia da Universidade da Califórnia, conheci um dos formandos, cujos pais não puderam estar presentes em função da política imigratória da Administração Trump. A conquista do diploma emitido ao jovem estrangeiro natural do Sri Lanka não pôde ser celebrada em sua plenitude

Por Neusa Maria Pereira Bojikian[1]

Enquanto pensava em um tema sobre política internacional para o blog Boletim Lua Nova, fui instigada por uma experiência pessoal que me colocou diante do contexto imediato da política imigratória dos Estados Unidos.

Verão de 2019, Califórnia.

Em uma cerimônia de formatura de uma das inúmeras turmas de engenharia da Universidade da Califórnia (UC), conheci um dos formandos, cujos pais não puderam estar presentes em função da política imigratória da Administração Trump. A conquista do diploma, emitido ao jovem estrangeiro natural do Sri Lanka, pequeno país localizado ao Sul da Índia, não pôde ser celebrada em sua plenitude. Apesar das soluções pragmáticas adotadas – uma família típica americana foi logo arranjada para cumprir o “papel de pais” e de outros familiares do formando –, como era de se esperar, a tristeza do jovem era revelada em seus olhos castanhos escuros, distintos pela melanina típica dos povos sul-asiáticos.

A campanha presidencial de Donald Trump amparou-se fortemente na questão imigratória. Em 2015, sem meias palavras, o então candidato republicano associou os imigrantes a criminosos violentos como estupradores e terroristas. Trump imprimiu como sua marca de campanha a promessa de construir um grande muro na fronteira entre Estados Unidos e México, obra a ser supostamente custeada pelo país hispano-americano.  Após o ataque de San Bernadino, Trum foi além ao também propor a proibição temporária de entrada de todos os muçulmanos no país. Na sequência, prometeu que interromperia a imigração originária de áreas envolvidas com atos terroristas contra os Estados Unidos, Europa e aliados.

Em 2016, em discurso no Arizona – estado emblemático da guerra contra a imigração ilegal, simbolizada pelo muro de ferro erigido sobre o marco fronteiriço que corta o estado, guardado por inúmeros agentes federais fortemente equipados e bastante dispostos a conter “os bárbaros”–, o candidato republicano enfatizou sua demanda para que o processo de seleção de pedidos de visto fosse restringido e se exigisse dos solicitantes a obtenção de uma “certificação ideológica”,[2] com o presumido intuito de garantir a admissão apenas de like-minded e admiradores do American way. Ou seja, pessoas que compartilham as mesmas opiniões, ideias e interesses apreciados entre os americanos.

Além disso, o candidato republicano expressou apoio a uma série de barreiras à imigração legal e à concessão de vistos destinados a trabalhadores convidados, incluindo uma suspensão na concessão de green cards. Essas iniciativas supostamente reduziriam os níveis recordes de imigração, recolocando-os em níveis históricos mais moderados. Com esse tom, a política de imigração tornou-se uma questão paradigmática desde sua campanha e as propostas de reforma apresentadas causaram muita controvérsia até mesmo entre os membros de seu próprio partido.

Em janeiro de 2018, Trump convocou uma reunião com os líderes do Senado para discutir a reforma das normas relativas à imigração. Mostrando sua impaciência, soltou logo uma de suas costumeiras frases-bombas: “Por que todas essas pessoas de shithole countries [de “buracos de m…”] vêm parar aqui?” [3] Na sequência, Raj Shah, seu porta-voz, ainda que com certo cuidado com o palavreado, alfinetou os congressistas, especialmente os democratas, dizendo que “alguns políticos preferem lutar por países estrangeiros” enquanto o presidente “prefere lutar pelo povo americano”. Tentando justificar a seletividade de Trump, que havia declarado suas preferências por imigrantes nórdicos, Shah disse: “Como outras nações que têm imigração baseada no mérito, o presidente Trump está lutando por soluções permanentes que fortaleçam nosso país ao receber aqueles que podem contribuir para nossa sociedade, aumentar nossa economia e assimilar nossa grande nação ”.[4]

Ao perceber as dificuldades para fazer avançar seu projeto de reforma no Congresso, no qual diversos membros, inclusive republicanos, tentam reagir à pressão constante sob aquela instituição para que verifique os atos extremamente voluntariosos do presidente, a Administração Trump resolveu agir por conta própria. Entre outras iniciativas, dias antes da formatura dos estudantes da UC na primeira quinzena de junho do ano corrente, o Departamento de Estado anunciou uma mudança significativa no Programa de Diversidade de Vistos para Imigrantes (DV).

O Programa DV, estabelecido em 1990, possibilita a obtenção de até 50 mil vistos de imigrantes por ano, selecionados aleatoriamente em um processo extenuante de triagem. Trata-se de uma loteria: sorteia-se entre todos os pedidos – em 2018, somava-se aproximadamente 14,7 milhões de candidatos, advindos de países que possuem baixas taxas de imigração aos Estados Unidos.[5]

De acordo com tal critério, o Sri Lanka, país de origem do formando, seria perfeitamente elegível para ingressar na loteria da diversidade. No ano fiscal de 2017, o maior número de vistos de diversidade coube a cidadãos de países africanos (aproximadamente 22.000), enquanto os cidadãos asiáticos receberam a segunda maior parcela (cerca de 15.700), deixando os europeus com o terceiro lugar (cerca de 11.300).[6]. Como se vê, um percentual significativo de contemplados são de lugares distantes da Europa setentrional e do Atlântico Norte, que, na opinião de Trump, deveriam ser as origens preferenciais.

Essas mudanças no programa evidenciam o quanto Trump e seus subordinados estão dispostos a imprimir uma marca própria na totalidade da política imigratória do país. A primeira nova regra requer que os candidatos já tenham um passaporte no momento da inscrição. Já a segunda determina que qualquer erro tipográfico na aplicação resulte na desqualificação imediata e inapelável. Com isso, o processo se torna ainda mais seletivo, eliminando os mais necessitados e com baixo nível de escolaridade,[7] alinhando-se inteiramente à ideia de evitar os indivíduos dos chamados shithole countries. Seu conceito de diversidade pode parecer qualquer coisa, mas certamente não tende a ser diverso, plural. O governo Trump alega que as pessoas que se apresentam para concorrer ao visto seriam rejeitadas pelos seus próprios países e, com isso, sugere que autoridades estrangeiras estariam selecionando aqueles de quem gostariam de se livrar, como que exportando o problema para os Estados Unidos, o que dificilmente faz sentido.

Além de tentar circunscrever através dessas mudanças no Programa DV, a imigração para os Estados Unidos somente dos interessados tidos como personas gratas, , a Administração Trump já havia limitado significativamente o número de refugiados admitidos no país e imposto uma proibição de viagens a cidadãos de países de maioria muçulmana, conforme havia prometido ainda durante  campanha.

Outra mudança impactante está relacionada às regras para aprovação dos vistos H-1B,[8] destinados geralmente a trabalhadores altamente qualificados em ciências, tecnologia, engenharia e matemática. Entre 2004 e 2011, mais de 85% dos novos detentores de visto H-1B trabalhavam em ciência da computação, ciências da saúde, contabilidade, arquitetura, engenharia e matemática.[9]

Com a Ordem Executiva (OE) “Buy America, Hire American”, emitida em abril de 2017,[10]  a obtenção de visto de trabalho para estrangeiros nas áreas acima citadas tornou-se mais difícil. E menos de um ano depois, novas alterações foram estabelecidas, limitando ainda mais o processo de solicitação de visto de trabalhadores de tais áreas. A agência de Serviços de Cidadania e Imigração dos Estados Unidos (USCIS, na sigla em inglês) emitiu um memorando que determinam que, a partir de 11 de setembro de 2018, um adjudicador pode negar um pedido ou petição sem antes ter que enviar uma solicitação de evidência (RFE) ou notificação de intenção de negar o respectivo pedido (NOID).[11] Ou seja, as exigências determinadas pelas autoridades do USCIS seguem na mesma linha daquelas contidas nas novas regras para aplicação ao Programa DV. O solicitante não pode cometer equívoco algum.

Com efeito, em 2018 houve uma redução de 10% no número de vistos emitidos sob a categoria H-1B.[12] E as novas regras estão desencorajando os empregadores a contratar estrangeiros, pelo menos aqueles que necessitariam de permissão para trabalhar. Segundo os formandos da UC, a dificuldade para se conseguir estágio parece ter aumentado no último ano. No momento em que se candidatam a uma vaga de estágio, a pergunta recorrente é se já possuem Lawful Permanent Resident Status. Uma hipótese é que as empresas não querem treinar um estagiário correndo o risco de não poderem efetivá-lo no futuro.

No segundo aniversário da OE “Buy America, Hire American”, em abril de 2019, a USCIS reportou uma “lista de realizações”, buscando comprovar a implementação efetiva da ordem do presidente “proteger os trabalhadores [americanos] e seus salários…”.[13] Para aumentar sua capacidade, a agência recomenda que todos os empregadores do país verifiquem antecipadamente a elegibilidade de todos os novos contratados por meio do E-Verify. Trata-se de um sistema eletrônico que permite que o empregador possa checar as informações fornecidas por funcionários mediante um formulário (I-9 – Verificação de elegibilidade de emprego), com registros disponíveis para a Administração da Previdência Social (SSA) e o Departamento de Segurança Interna (DHS).[14]

Com tais iniciativas, Trump afaga muitos de seus eleitores contrários a qualquer política minimamente concessiva aos imigrantes. O problema é que a Administração Trump, infelizmente, faz mais do que agradar esse eleitorado. Esses atos tendem a inflamar a xenofobia, já bem enraizada na história dos Estados Unidos, como exemplifica a controversa Lei de Imigração (LI) de 1924. O seu famigerado sistema de cotas, considerado insuficiente por alguns grupos, já que não se aplicavam aos mexicanos, instigou supremacistas a tomarem o controle da Patrulha de Fronteira, contemporânea à LI de 1924, e a transformá-la em “um instrumento da linha de frente da vigilância racial”. Relatos históricos mostram que recrutas da Patrulha agiam arbitrariamente e muitas vezes de forma bárbara – repito: barbaramente – por acharem que estados como o Texas, Arizona, Novo México, Califórnia não careciam de imigrantes mexicanos.[15]

  Passadas décadas, deparamo-nos com episódios inimagináveis para os dias de hoje. os quais, embora contem com leis de direitos humanos e civis, são marcados por violências de  todo tipo de arbitrariedade das patrulhas americanas. A crueldade praticada atualmente contra os imigrantes, incluindo menores e mulheres, tem raízes históricas, mas a forma como o presidente Trump aborda tal questão inflama os atos mais primitivos daqueles que deveriam zelar pela segurança. Contende os bárbaros!


[1] Pesquisadora do INCT-Ineu. Doutora e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC/SP. Autora do livro “Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros” (2009, Unesp) e Co-organizadora do livro “Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil” (2011, Unesp).

[2] Council on Foreign Relations. Transition 2017. Trump on the issues. Immigration. 2017. Disponível em: <https://www.cfr.org/interactives/campaign2016/&gt;

[3] De acordo com as pesquisas do PRC, em 2017, por região de nascimento, os imigrantes do Sul e Leste da Ásia somados representavam 27% de todos os imigrantes nos Estados Unidos, perto da proporção de imigrantes do México (25%). Outras regiões compõem parcelas menores: Europa/Canadá (13%), Caribe (10%), América Central (8%), América do Sul (7%), Oriente Médio (4%) e África Subsaariana (4%). %). Entre todos os imigrantes nos Estados Unidos, os do Sul e Leste da Ásia (53%) e do Oriente Médio (48%) são os mais propensos a ter um diploma em nível de bacharelado ou superior. Pew Research Center (PRC). Key findings about U.S. immigrants. 17 jun 2019. Por: Jynnah Radford. Disponível em: <https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/06/17/key-findings-about-u-s-immigrants/&gt;

[4] The Washington Post. Trump derides protections for immigrants from ‘shithole’ countries. By Josh Dawsey, Jan 12, 2018. Disponível em: < https://www.washingtonpost.com/politics/trump-attacks-protections-for-immigrants-from-shithole-countries-in-oval-office-meeting/2018/01/11/bfc0725c-f711-11e7-91af-31ac729add94_story.html?utm_term=.74d54a5ff655>

[5] U.S. Citizenship and Immigration Services. Green Card Through the Diversity Immigrant Visa Program. Disponível em: <https://www.uscis.gov/greencard/diversity-visa&gt;

[6] Além dos vistos de diversidade, foram concedidos outros tipos de vistos para residência permanente nos Estados Unidos. Então, somando as demais categorias, inclusive vistos de trabalhos, vistos para refugiados e asilados, além dos vistos relativos a familiares de americanos e familiares de contemplados, os cidadãos africanos ficaram com um total de 118.824; os asiáticos com 424.743; e os europeus com 84.335. Homeland Security. Table 10. Persons Obtaining Lawful Permanente Resident Status by Broad Class of Admission and Region and Country of Birth: Fiscal Year 2017. Disponível em: < https://www.dhs.gov/immigration-statistics/yearbook/2017/table10&gt;

[7] Conforme, pertinentemente, observou Sophia Tesfaye, vice-editora de Política do Salon, site pertencente ao Salon Media Group, grupo americano de comunicação. Disponível em: <https://www.salon.com/2019/06/10/trumps-new-approach-on-legal-immigration-only-the-privileged-need-apply/&gt;

[8]Introduzido em 1990, o visto H-1B fornece permissões temporárias para trabalhadores estrangeiros com formação superior destacada.

[9]PERI, Giovanni; SHIH, Kevin; SPARBER, Chad. STEM Workers, H-1B Visas, and Productivity in US Cities. Journal of Labor Economics, 2015, v. 33, n. 3, p. 225-55.

[10] USCIS. Buy American and Hire American: Putting American Workers First. Disponível em: <https://www.uscis.gov/legal-resources/buy-american-hire-american-putting-american-workers-first&gt;

[11]USCIS. Updates Policy Guidance for Certain Requests for Evidence and Notices of Intent to Deny. Disponível em: < https://www.uscis.gov/news/news-releases/uscis-updates-policy-guidance-certain-requests-evidence-and-notices-intent-deny>

Os RFEs e os NOIDs davam aos empregadores e a estrangeiros a oportunidade de corrigir informações, fornecer mais documentação e convencer o USCIS a aprovar a solicitação de visto antes que uma negação fosse emitida. Com a Administração, você tem uma única chance: “é pegar ou largar”.

[12] USCIS. 2018 Statical Anual Report. Disponível em: <https://www.uscis.gov/sites/default/files/USCIS/statistics/2018_USCIS_Statistical_Annual_Report_Final_-_OPQ_5.28.19_EXA.pdf>

[13] USCIS. 2nd Anniversary. Buy American and Hire American. Accomplishments. Disponível em: <https://www.uscis.gov/sites/default/files/USCIS/OPA_BAHA_Accomplishments_Infographic.pdf&gt;

[14] Disponível em: <https://www.e-verify.gov&gt;

[15] Greg Grandin. A Patrulha de Fronteira dos EUA: um culto à violência desde 1924. Disponível em: <https://theintercept.com/2019/02/15/patrulha-de-fronteira-eua-violencia/>

Referência imagética:

https://www.today.com/video/congress-in-immigration-gridlock-after-viral-photo-of-drowned-migrants-62775877830 (Acesso em 27 de junho de 2019)

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