Francisco de Oliveira: um intelectual público e as contradições de um país

É difícil mensurar a durabilidade de uma obra intelectual. Muitas vezes, aqueles autores muito lidos e citados em seu tempo, desaparecem na poeira da história. Outros, cuja recepção foi discreta, quando não refratária, no momento mesmo em que produziram seus textos, são retomados em tempos futuros, recebendo consagração tardia.

Por Fernando Perlatto[1]

É difícil mensurar a durabilidade de uma obra intelectual. Muitas vezes, aqueles autores muito lidos e citados em seu tempo, desaparecem na poeira da história. Outros, cuja recepção foi discreta, quando não refratária, no momento mesmo em que produziram seus textos, são retomados em tempos futuros, recebendo consagração tardia. Nesse sentido, ainda que seja impossível estabelecer qualquer previsão sobre a solidez de uma obra, é sim factível pensar que alguns autores irão, de algum modo, permanecer. Não tanto por terem acertado diagnósticos e interpretações sobre a realidade social – ainda que isso muitas vezes seja verdade –, mas por estabelecerem uma determinada forma de pensar e de se portar intelectualmente, que deixam um legado para as gerações futuras. Este é, sem dúvida, o caso de Francisco de Oliveira.

Sua produção acadêmica – ainda que vasta e diversificada – teve como característica central uma busca permanente em mapear os sentidos da nossa modernização, desnudar os avanços e os retrocessos da construção da cidadania no país e compreender as contradições de um Brasil cujo o moderno e o atraso, o novo e arcaico se conjugaram historicamente de forma intrincada e complexa.

Nos anos 1970, durante a ditadura militar, a obra de Francisco de Oliveira teve papel fundamental no sentido de analisar as contradições da “revolução burguesa brasileira” e as características da nova etapa da modernização conservadora e autoritária do país. Ao lado de outros intelectuais que produziram trabalhos em direção semelhante nesta conjuntura crítica – a exemplo de Florestan Fernandes (A Revolução Burguesa no Brasil, 1975), Simon Schwartzman (São Paulo e o Estado Nacional, 1975), José de Souza Martins (Capitalismo e Tradicionalismo, 1975) e Luiz Werneck Vianna (Liberalismo e Sindicato no Brasil, 1976) – a produção intelectual de Oliveira neste período se orientou no sentido da compreensão da natureza do processo de modernização do país, com o intuito de decifrar o caráter do capitalismo que então vigia sob o regime autoritário. Datam deste período trabalhos como O Banquete e o Sonho. Ensaios sobre a Economia Brasileira (1976), Elegia Para Uma Re(li)gião (1977), A Economia da Independência Imperfeita (1977), além do clássico A Economia Brasileira. Crítica à Razão Dualista, primeiro publicado em forma de artigo em 1972, e depois como livro.

Apesar das singularidades dos trabalhos dos intelectuais acima mencionados, todos eles convergiam no sentido de destacar o caráter conservador da revolução burguesa brasileira, conduzida a partir do estabelecimento de uma coalizão entre as elites modernas e tradicionais. Dessa forma, ao contrário do que sustentara grande parte da bibliografia produzida no período anterior, sobretudo aquela elaborada por intelectuais vinculados à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ancorada em interpretações “dualistas”, a modernização brasileira não teria resultado no desaparecimento das antigas elites agrárias, tendo representado, pelo contrário, um processo de renovação de sua participação no controle político do país. O moderno, portanto, não vinha a partir da superação do atraso, mas era o próprio arcaico, nas suas mais diversas formas, que impulsionava a modernização brasileira.

A Crítica da Razão Dualista é o trabalho de Francisco de Oliveira que consagra esta crítica à perspectiva “dualista” e a interpretação que vislumbra os vínculos irremediáveis entre atraso e moderno na revolução burguesa brasileira. Escrito quando Oliveira já se encontrava vinculado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e em meio a debates com outros intelectuais que discutiam o tema do (sub) desenvolvimento e da modernização naquele período, a exemplo de Fernando Henrique Cardoso, Paul Singer, José Serra e Maria da Conceição Tavares, este ensaio marca um rompimento mais evidente do autor com a vertente cepalina e um diálogo mais aberto com o marxismo. Ao formular uma intepretação articulando as dimensões da política e da economia, que antes eram compreendidas quase como que dimensões separadas, Oliveira elaborou um questionamento das teses dualistas, destacando a existência, no processo de expansão do capitalismo no Brasil, da articulação entre atraso e moderno. O “arcaico”, nesse sentido, é que teria sido responsável por alavancar os movimentos de acumulação e de expansão do capitalismo moderno brasileiro, com todas as consequências daí advindas.

Nas décadas posteriores, no contexto da redemocratização e dos governos que se seguiram à Constituição de 1988, Francisco de Oliveira deu continuidade à sua busca no sentido de analisar as contradições da modernização brasileira. Nas décadas de 1980 e 1990, é possível perceber dois direcionamentos mais gerais da sua produção acadêmica, que acabavam por se articular: de um lado, tratava-se de continuar inquirindo dialeticamente os contrates do capitalismo periférico e os conflitos entre capital e trabalho em torno do chamado “fundo público” – o que se vislumbra em obras como O Elo Perdido. Classe e Identidade de Classe na Bahia (1987), Os Direitos do AntiValor: A Economia Política da Hegemonia Imperfeita (1998) e Os Cavaleiros do Anti-Apocalipse. Reestruturação Produtiva e Novos Padrões nas Relações Capital-Trabalho na Indústria Automobilística (1999, organizado com Álvaro Comin) –, e de outro buscava-se compreender os desafios para construção da democracia, em um contexto de avanço do neoliberalismo – a exemplo do que se vê em obras, como Collor. A Falsificação da Ira (1992) e da coletânea Os sentidos da democracia. Políticas do dissenso e hegemonia global (1999, organizado com Maria Celia Paoli).

No início dos anos 2000, no começo do governo Lula, Francisco de Oliveira realizou duras críticas à experiência do PT à frente do governo federal. Estas objeções levaram, inclusive, ao seu rompimento com o partido e sua filiação subsequente ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em sua carta de desfiliação do PT, publicada na Folha de São Paulo, em 14 de dezembro de 2003, Oliveira caracterizava o governo como um “terceiro mandato de FHC”, em decorrência da condução de “uma política econômica desastrosa, uma reforma da Previdência anti-trabalhador e pró-sistema financeiro, uma reforma tributária mofina e oligarquizada, uma campanha de descrédito e desmoralização do funcionalismo público, uma inversão de valores republicanos em benefício do ideal liberal do êxito a qualquer preço (…), uma política de alianças descaracterizadora, uma ‘caça às bruxas’ anacrônica e ressuscitadora das piores práticas stalinistas, um conjunto de políticas que fingem ser sociais quando são apenas funcionalização da pobreza”.

O trabalho mais importante deste movimento de ruptura com o PT foi o livro Crítica à Razão Dualista. O Ornitorrinco. Atualizando o ensaio clássico “Crítica à razão dualista” publicado nos anos 1970, Oliveira formulava diversas críticas ao governo de Lula. Ao mobilizar a imagem do ornitorrinco, “animal que não é isso nem aquilo”, o autor destacava as “recentes convergências programáticas entre PT e PSDB” que teriam se aproximado no papel de administradores da expansão do capitalismo desigual brasileiro. Para Oliveira, nos governos de tucanos e petistas, teria surgido uma “nova classe social” no país, “que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e operários transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT”. “A identidade dos dois casos”, segundo ao autor, residiria no “controle do acesso aos fundos públicos”.

Nos anos seguintes dos governos do PT, Francisco de Oliveira deu sequência às suas críticas. Em artigo publicado em 2006, na revista Novos Estudos, do Cebrap, intitulado “O Momento Lênin”, o autor problematizou a submissão do governo Lula às políticas de desestatização e de expansão do capital financeiro, reforçando a posição subordinada do país na globalização capitalista contemporânea. Para Oliveira, ao assumir o governo, o PT teria se transformado “em partido da ordem, no sentido rigoroso do termo”, substituindo a política pela administração e abdicando da possibilidade da disputa real pela “direção moral” da sociedade brasileira.

Em dois textos importantes publicados na revista Piauí nessa conjuntura – “Hegemonia às avessas” e “O avesso do avesso” –, Francisco de Oliveira aprofundou suas objeções ao “lulismo”. No primeiro deles, publicado em 2007, o autor caracterizou o governo petista como sendo responsável por impulsionar um processo que ele denominou de “hegemonia às avessas”, que consistiria na abdicação do poder por parte da classe dominante a favor dos “dominados” – que Lula, em tese, representaria –, sob a condição de que os fundamentos estruturais da sua dominação não fossem questionados de forma significativa. Desse modo, ainda que as classes dominadas pudessem assumir a “direção moral da sociedade”, a “dominação burguesa” se manteria de forma “mais descarada”, sem quaisquer questionamentos efetivos à exploração capitalista.

Já em artigo de 2009, intitulado “O avesso do avesso”, Oliveira destacava o quanto o governo Lula teria aprofundando ainda mais “a autonomia do capital, retirando às classes trabalhadoras e à política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática”. Enquanto FHC teria destruído “os músculos do Estado para implementar o projeto privatista”, o governo petista teria destruído “os músculos da sociedade”, mediante a cooptação dos movimentos sociais. Ao assumir o “Bolsa Família” como carro-chefe de seu programa, o lulismo – a “vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda” – teria despolitizado a questão da pobreza e da desigualdade, abdicando por completo do enfrentamento do conflito de classes na sociedade brasileira.

No decorrer dos anos 2000, Francisco de Oliveira deu sequência à sua produção acadêmica em articulação com pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), como Maria Célia Paoli, Vera da Silva Telles, Cibele Rizek, André Singer e Ruy Braga, no âmbito do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC), núcleo de pesquisa fundado nos anos 1990, após sua saída do CEBRAP, do qual foi presidente entre 1993 e 1995. No âmbito do CENEDIC, Oliveira foi um dos responsáveis pela organização de duas coletâneas importantes – A Era da Indeterminação (2007, com Cibele Rizek) e Hegemonia às Avessas. Economia, Política e Cultura na Era da Servidão Financeira (2010, com Cibele Rizek e Ruy Braga) –, que reuniam artigos preocupados em compreender as causas e os impactos do capitalismo contemporâneo na sociedade brasileira sobre a política e sobre os direitos sociais.

Ao mencionar as experiências de Francisco de Oliveira em espaços como o CEBRAP e o CENEDIC, é importante destacar esta sua dimensão de um intelectual coletivo, que construiu parte significativa de suas reflexões em diálogo crítico e permanente com colegas destes institutos. Em tempos nos quais as universidades caminham cada vez mais para um individualismo exacerbado, com pesquisadores autocentrados voltados apenas para suas próprias produções, esta sua faceta merece ser lembrada e valorizada pelas novas gerações.

Além disso, não se pode deixar de destacar outra marca fundamental da trajetória de Francisco de Oliveira, relacionada à sua construção como um intelectual público. Além de ter produzido artigos seminais sobre o tema – entre os quais destacaria o texto “Intelectuais, conhecimento e espaço público” (2001) e o capítulo “No silêncio do pensamento único: intelectuais, marxismo e política no Brasil” (2006), publicados, respectivamente na Revista Brasileira de Educação e na coletânea O silêncio dos intelectuais, organizada por Adauto Novaes –, Oliveira se portou como um intelectual público naquilo que o termo traz de mais forte, participando de debates e intervindo na esfera pública em torno de temas fundamentais. Nesse sentido, é possível dizer que ele se vinculou ao mesmo tempo em que ajudou a construir uma tradição da sociologia brasileira, marcada historicamente por uma produção acadêmica responsiva à agenda pública do país.[2]

Seria não apenas possível, mas necessário, problematizar, do ponto de vista substantivo, algumas das interpretações de Francisco de Oliveira sobre a história do Brasil e várias de suas leituras da conjuntura política do país. O tom apologético não combina com a obra de um intelectual como Oliveira atravessada pela preocupação em dialogar criticamente com seus interlocutores. Em uma conjuntura marcada pelo avanço de uma agenda abertamente reacionária no país, sob a condução do governo Bolsonaro, soam, por exemplo, um tanto quanto exageradas muitas de suas objeções realizadas ao período lulista. Além disso, parte de sua produção acadêmica parece muitas vezes flertar com uma perspectiva hipercrítica, permeada por um pessimismo excessivo, que não abre caminhos para se vislumbrar uma perspectiva emancipatória.

Essas pequenas observações, contudo, são secundárias diante de uma obra que se faz tão atual e necessária nos tempos difíceis que a democracia brasileira atravessa. A forma de pensar e de se portar intelectualmente são os principais legados que Francisco de Oliveira deixa para aqueles dispostos a resistir e a pensar criticamente sobre um país que parece se desmanchar a olhos vistos em meio às suas contradições.


[1] Um dos editores da Revista Escuta. Texto publicado em parceria e também disponível em:https://revistaescuta.wordpress.com/2019/07/11/francisco-de-oliveira-um-intelectual-publico-e-as-contradicoes-de-um-pais/

[2] Sobre o tema, ver, entre outros, meu livro A imaginação sociológica brasileira: A sociologia no Brasil e sua vocação pública (CRV, 2016).

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