O mais estranho nisso tudo: retratos de um país fragmentado

Após cruzarem caminhos durante as manifestações de 2013, três jovens de diferentes classes sociais têm suas vidas profundamente alteradas. Romance do jornalista Mauro Donato, levanta reflexões acerca de um país dividido. Sorteamos dois exemplares

Manifestantes ocupam o Congresso Nacional em junho de 2013. Imagem de Nelson Oliveira. Fonte: Agência Senado
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As manifestações que ocorreram no histórico mês de junho do ano de 2013, as chamadas Jornadas de Junho, deixaram profundas marcas na história de nosso país. Ainda mais profundas devem ter sido as que ficaram nos corpos e mentes daqueles e daquelas que estiveram no calor das chamas que se alastraram pelas ruas naqueles dias.

O romance O mais estranho disso tudo, de Mauro Donato, lançado em 2023, pela Editora Patuá, revisita esses dias explosivos a partir das lembranças de três jovens que se conheceram nas manifestações e que se reencontram anos depois.

Outras Palavras irá sortear 2 exemplares de O mais estranho disso tudo, de Mauro Donato, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 22/4, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

O anarquista de periferia Kleber; a politizada e incendiária fotojornalista Luísa; e o publicitário Alexandre, oriundo da classe média conservadora, preconceituosa e despolitizada. 

Tal encontro de personalidades advindas de contextos tão distintos, somado ao frenesi desgovernado que tomava o espírito daqueles tempos, sem dúvidas afetaria a vidas de todos os envolvidos.

O reencontro dos três, após brigas, bombas de gás lacrimogêneo, prisões, apaziguamentos e rancores, revela não só o estado de ânimo dos personagens, mas também constata os cortes e fragmentos que restaram na tecitura do tecido social brasileiro.

O escrito penetra nas diferenças de classe dos personagens expondo sua agudização anos depois. Um retrato eloquente de um país dividido. 

Leia, com exclusividade, o primeiro capítulo da obra.

Boa Leitura!


KLEBER

Ter amigos selvagens, não os domesticados. Quem sabe se a máxima retirada dos livros anarquistas tivesse sido seguida à risca, não teria sido tudo diferente. Até os livros poderiam estar consigo naquele momento. Mas Kleber não tinha mais nada.

Subia a rua da Consolação quando deu de cara com Luísa. Estava magro, os braços finos sobravam nas mangas da camiseta, fazendo-a parecer um ou dois números maiores. Ela quase não o reconheceu. O breve abraço que deram revelou um corpo ossudo, pontiagudo, rígido. Após se sentarem nos degraus da escadaria da praça Roosevelt, Kleber manteve-se quase o tempo todo curvado, olhando para o chão, sem esboçar emoção e expondo um princípio de calvície no cocuruto. Tinha comido o pão que o diabo amassou atrás das grades. Em alguns momentos da conversa, Luísa foi às lágrimas para, em seguida, incorporar seu inerente pragmatismo. Foi no instante em que ele afirmou que não tinha onde morar. Não perguntou se poderia ir para a casa dela, não implorou por ajuda. Desabafou como quem pensa em voz alta, como quem faz uma confidência mais para si do que para os outros.

Tempos depois, Luísa iria se penalizar por não ter estendido a mão. Na hora, o que instintivamente lhe ocorreu foi a preocupação com a perspectiva de ter sob o mesmo teto um egresso do sistema prisional. Quem poderia saber como Kleber estava psicologicamente depois de ter vivido um tempo trancafiado no inferno? Depois de tudo que aconteceu, como saber no que ele se transformara ao sobreviver em meio a bandidos de facções? Quais reflexos mentais o cativeiro poderia ter lhe causado? Receios legítimos, mas ela sabia que na verdade tinha sido egoísta. Estava empregada, com registro na carteira de trabalho pela primeira vez na vida, usufruindo da segurança que salário e plano de saúde lhe proporcionavam. Para completar, estava numa fase profissional excelente, suas fotos ilustravam as principais reportagens do jornal – com uma delas tinha sido finalista do prêmio Vladimir Herzog – e sua atenção andava voltada para a possibilidade de uma exposição individual no final do ano. Sem contar a retrospectiva feita habitualmente pelo jornal, na qual ela tinha certeza seria premiada em uma ou mais categorias, considerando os incontáveis elogios dos colegas quanto à sua capacidade de antever situações e clicar imagens que alguns profetizavam como candidatas a se tornarem icônicas da época. Então o que ela fez foi dar início a uma argumentação racional baseada na prudência, ocultando ter conjecturado sobre possíveis consequências negativas se abrigasse um ex-presidiário. Respondeu com obstáculos ao pedido que julgou estar mais que subentendido nas entrelinhas. Disse que não oferecia sua casa primeiramente por não haver espaço, mas não só por isso. Afirmou que não era boa ideia ficarem tão próximos a ponto de morar no mesmo endereço; que ela também tivera sua vida bisbilhotada por estar entre os contatos dele e de Alexandre nos celulares e notebooks levados pela polícia sob mandado de busca e apreensão; que chegaram a cogitar uma ação judicial obrigando-a a entregar um HD com todas as fotos; que a situação política ainda era delicada; que… que… que iria pensar em como ajudar; quem sabe poderia contribuir com parte de um aluguel de um quarto, algo assim.

“Agora você é da grande mídia, né?”, perguntou Kleber depois de ouvir a tudo cabisbaixo.

“Sou fotojornalista, esqueceu? Olha, cara, muita coisa mudou. Naquele ano em que você foi preso, recebi um prêmio importante e aquilo me abriu portas. As coisas foram dando certo, fui contratada por um jornal grande, sim. Não dá para recusar um trabalho que vai permitir que você pague as contas. Eu não aguentava mais viver naquele sufoco, correndo o risco de ter a água ou a luz cortada todo mês, de não saber se ia ter o que comer no dia seguinte. Eu ia ser despejada, estava com três meses de aluguel atrasado. Cobrir os protestos e movimentos sociais é minha vida, mas não paga os boletos, entendeu?”, ela respondeu com entonação que confirmava ter sido atingida num ponto de sensível dicotomia.

Kleber pediu um cigarro a um fumante qualquer que passeava com o cachorro em vez de perguntar se a própria Luísa não teria um maço na bolsa. Acendeu-o, encostando o seu na ponta da brasa do cigarro do desconhecido, tragou, tossiu e manteve o olhar fixo na avenida onde tantas vezes correra de cima a baixo com a polícia no encalço. Sua pele tinha ganhado uma coloração acinzentada e os olhos estavam amarelados, sinais de saúde debilitada e má alimentação, aspectos que deixaram Luísa comovida apenas internamente. Aquela pausa silenciosa a deixou igualmente tensa, sob a expectativa de qual caminho a conversa tomaria dali em diante. Cogitou oferecer pagar uma refeição, conceder pelo menos a oportunidade de um banho demorado. Porém silenciou, embaraçada. Não sabia se depois do que disse haveria uma explosão verbal da parte dele. Mas Kleber a espetou calma e cirurgicamente.

“Me tira uma dúvida, a foto que te tornou famosa foi de algum protesto daqueles? De algum flagrante de violência? Então acho que sei como você conseguiu o flagrante.”

“Não, não sabe. E não me transformei como você está pensando. Sou a mesma pessoa, Kleber.”

“Não parece”, disse ele, olhando de soslaio para os sinais exteriores dados pelas roupas, calçados, cabelos soltos e bem tratados de Luísa.

“Cara, muita coisa mudou de verdade enquanto você esteve enjaulado. Infelizmente quase nenhum daqueles coletivos de mídia independente que nasceram naquele tempo duraram muito. Sem dinheiro não tem como sobreviver. E sabe quais foram os que sobreviveram e cresceram? Os que foram fundados por endinheirados com a mesma cultura exploradora de costume. Uns espertos que se utilizam da cultura da celebridade em que as pessoas querem aparecer a qualquer custo e não pagam pelo conteúdo que essas pessoas produzem. Alegam estar dando visibilidade para a pessoa. Usam suas fotos sem pedir autorização e se você entra em contato para cobrar, dizem que ‘pegaram na internet’. Uns caras que adoram fazer discurso progressista, publicam matérias condenando o assédio e o preconceito contra mulheres, mas lá dentro fazem piadinhas machistas com a gente o tempo todo. Eu preciso comer, preciso morar. Não tenho família rica. Essa história de trabalhar de graça pela causa, pela luta, é muito bonito, mas não dá para pagar o supermercado com um panfleto pedindo ‘por uma vida sem catracas’. Eu ralei pra burro nas ruas durante anos, você sabe disso, a gente se conheceu antes daquele terremoto todo. Apanhei, perdi equipamento, trabalhava de domingo a domingo ganhando centavos por uma foto. Se eu almoçava, não jantava; se jantava, não almoçava. Se eu continuasse a trabalhar para a ‘mídia livre’ não tenho ideia de como estaria vivendo a essa hora.”

“Com dignidade, tenho certeza”, rebateu Kleber.

“Meu trabalho é digno, porra, e sou reconhecida por ele. Recebo um dinheiro justo e me dão estrutura para trabalhar. Isso é ser respeitada como profissional, isso é ser tratada com dignidade. Sabe o que aconteceu com quem era freelancer e foi ferido, em alguns casos até cegado de um olho naqueles protestos? Foi considerado culpado pela justiça por estar em área de risco. Foi considerado culpado por ter tomado um tiro da polícia enquanto estava trabalhando. Nem a conta do hospital foi custeada pelo Estado. E para quem era jornalista de empresa grande de mídia e tinha um departamento jurídico forte no apoio, teve toda assistência e ainda foi promovido, entende o que quero dizer? Vê a diferença?”

“Está se justificando? Cadê a mina engajada que dizia que os grandes jornais e TVs faziam o trabalho sujo do empresariado?”, disse Kleber, mantendo a serenidade enquanto ela ouvia, visivelmente irritadiça.

“Não estou justificando, estou só demonstrando que conheço os dois lados. Sim, respeito alguns sites que resistem bravamente quase sem dinheiro e fazem denúncias importantes que a grande mídia não faz. Existe pelo menos uma dúzia deles que fazem um trabalho sério e digno. Mas sem dinheiro, não tem como fazer jornalismo, digo jornalismo completo. Precisa viajar, gastar com passagens, diárias, comida, equipamentos, equipe para fazer apuração, advogados na retaguarda jurídica se não quiser falir com tantos processos e tal. Posso listar umas duzentas razões. Tem merda? Lógico que tem, mas tem respeito profissional mínimo.”

“Você sempre foi respeitada. Era considerada uma das fotógrafas mais foda por todo mundo. E era respeitada porque respeitava também, nunca foi vacilona.”

“Era respeitada, sim, menos por quem me pagava”, cortou Luísa, exaltada. “Percebe? É bacana ter o trampo reconhecido pela galera, mas aqueles para quem eu trabalhava, não estavam nem aí. Nunca me deram uma lente nova. Nem mesmo uma usada! O outro site para o qual eu cedia algumas fotos na camaradagem porque estava começando e me pedia que colaborasse pela ‘causa’, depois se desenvolveu, cresceu e nunca me pagou um puto.”

Nem Luísa nem Kleber disseram mais nada por alguns minutos, até que ele emitiu um “tudo bem” e se levantou. Não foi embora com raiva. Na realidade não estava com raiva de ninguém. Nenhum espírito de vingança, nada além do que normalmente sentia por todos os brancos. Sempre soube que Luísa, Alexandre e outros, talvez até Renato, um dia iriam desapontá-lo. Desapontado ele ficou quando constatou ser verídica a sentença proferida pelos céticos reacionários de plantão, de que a união da rua começava e terminava na rua. Que quem caia, pagava sozinho. Logo, tinha certeza de que não haveria ninguém o aguardando no portão da prisão, como nas cenas de filmes. Nos primeiros dias em que foi mantido num centro de detenção provisória na capital, soube que alguns amigos ex-integrantes da ocupa estiveram marcando presença na porta, protestando contra sua prisão, mas por pouco tempo. O medo imposto pelas autoridades, com leis duríssimas e métodos fora da lei ao mesmo tempo, fizera efeito, ninguém queria arriscar ser preso também. Então desde que fora transferido para um presídio no interior do estado, não teve mais contato nem recebeu visita de ninguém.

A bem da verdade, visitas foram umas três ou quatro em todos aqueles anos: o advogado Renato Ferreira, bem no início; depois sua irmã acompanhada do marido, um cristão que, longe da igreja, destilava ódio até pelos cotovelos, bradava “bandido bom é bandido morto” e detestava ativismos, sindicalismos, vandalismos, marxismos; por último um advogado porta-de-cadeia, curiosamente pago pelo marido da irmã. Esse sujeito chegara com uma conversa estranha. Disse que trazia um “recado/proposta” referindo-se à possibilidade de o “batismo” proporcionar o pagamento de  custas processuais e até de transporte e estadia para que sua irmã pudesse visitá-lo mais vezes. “Trazer o jumbo, essas coisas”, dissera. Fortemente pressionado e ameaçado lá dentro para entrar na facção que comandava o presídio e que, de posse de sua ficha, acreditava ser ele um hacker habilidoso, especialista em deep web, além de um útil conhecedor da fabricação de explosivos, Kleber se revoltou com a proximidade daquele advogado com as facções. Mandou que ele fosse tomar no cu e ordenou que o mesmo fosse retransmitido para sua irmã e para “aquele pobre de direita marido dela”.

Depois, ninguém mais foi lá. Líderes internos que cuidavam do tráfico de drogas e dos bondes de guerra deram-lhe uma surra de gente grande, cruel, e Kleber foi transferido mais uma vez. Um promotor o enviou para onde iam “acusados de crimes que não encontram aceitação no sistema prisional”, conforme o requerimento em que alegava “medida necessária para que o acusado cumpra a pena com garantia de sobrevivência”. Na outra cadeia, em outro estado, viveu um inferno ainda pior e mais duradouro, até que um belo dia sua soltura foi anunciada. Um sexto da pena já havia sido cumprida, até bem mais que isso, e um advogado se esforçara para que ele não se tornasse mais um dos milhares abandonados eternamente atrás das grades brasileiras. A petição estava assinada por Renato Ferreira. “Esse maluco foi ponta firme”, foi o que seu senso de justiça formulara em sua mente.

Portanto, em relação aos demais, desapontar nem era o termo apropriado. Já esperava que uma hora suas origens sairiam pelos poros e as diferenças entre eles – de todo históricas, ancestrais – viriam à tona. Ele sabia o que o esperava na “liberdade”: pessoas afirmando que se foi preso é porque mereceu; que nem mesmo era digno de voltar ao convívio com a sociedade; que deveria mofar na cadeia, não importando as superlotações e as condições sub-humanas; que se houve motivo para prendê-lo, não merecia segunda chance; que ele deveria ter pensado antes de fazer merda; que se estivesse na fila do emprego nada daquilo teria acontecido. Sabia de cor e salteado o que ouviria, mesmo sem nunca ter passado por experiência prévia. Aliás, estranho mesmo era alguém como ele nunca ter sido preso antes.

Assim Kleber foi embora da praça Roosevelt e largou Luísa lá, sem que ela pudesse imaginar o porvir.


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