Bicicletas: o luto de hoje e a luta de sempre

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Três mortes em grandes cidades brasileiras, num só dia. Protestos terça (6/3) em todo o país. Perseguidos pela ditadura do automóvel, ciclistas resistem e se multiplicam

Por Antonio Martins

Chamava-se Juliana (Julie) Dias a bióloga de 33 anos atropelada e morta na manhã de sexta-feira (2/3), na avenida Paulista (foto). Mudou-se há um ano para São Paulo, vinda de São José dos Campos, para trabalhar no banco público de sangue de cordão umbilical do Hospital Sírio-Libanês. Escolheu morar na Vila Mariana, de onde podia ir ao trabalho com autonomia e sem poluir o planeta: de bicicleta. “Era uma pessoa super alegre, para frente, que fazia tudo por um mundo melhor”, contou Luiza Calandra, sua vizinha, que compartilhava com ela a opção por pedalar.

As circunstâncias precisas do acidente seguem obscuras. A causa essencial parece certa: altares de uma adoração fundamentalista ao automóvel, as metrópoles brasileiras odeiam todos os outros meios de transporte — alguns, ainda mais profundamente. Juliana pedalava pela segunda faixa, a partir da calçada. As testemunhas dizem que foi fechada por um carro ou um ônibus, talvez ambos. Exasperada, gritou: “Eu tou aqui. Cuidado comigo”. Em meio ao fluxo frenético do trânsito, desequilibrou-se, tombou sobre a faixa de ônibus e foi colhida por outro coletivo. Morreu na hora.

No mesmo dia, duas outras mortes de ciclistas fizeram do Brasil um país mais árido. Em Brasília, um homem ainda não identificado não resistiu aos ferimentos e sucumbiu, depois de atropelado por um ônibus no Riacho Fundo — próximo à residência oficial onde, em 1976, o presidente Ernesto Geisel recebeu a notícia do assassinato por tortura do operário Manuel Fiel Filho, no DOI-Codi de São Paulo. Em Marituba (PA), região metropolitana de Belém, um  ciclista que se resignara ao acostamento da BR-316 foi morto quando um automóvel o atingiu, para se safar de outro veículo.

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Em São Paulo, uma das poucas cidades brasileiras onde há estatísticas periódicas sobre o uso das diferentes modalidades de transporte, o risco de morrer no trânsito, em bicicleta, é onze vezes maior que num automóvel, e três vezes superior ao de ser atropelado, a pé [1]. Para cada 240 quilômetros de ruas asfaltadas (metade da distância rodoviária entre a cidade e o Rio de Janeiro), há nove metros de ciclovias (o trecho que você percorre, a pé, em sete segundos). Metade delas situa-se às margens insalubres do rio Pinheiros.

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Mas nem o desprezo que a prefeitura devota aos ciclistas, nem os riscos de morte que eles enfrentam todos os dias, os faz desistir. Em São Paulo, a pesquisa origem-destino, realizada a cada dez anos pelo metrô, revela: entre 1997 e 2007, nenhum meio de transporte cresceu mais, em popularidade, que a bicicleta. O número de viagens diárias quase triplicou. Um paulistano, em cada 125 que se deslocam pela metrópole, cumpre o percurso pedalando.

A maior parte está nas periferias, e fez a opção há tempo, inclusive para poupar o preço proibitivo da passagem do ônibus. São trajetos curtos, para o trabalho ou, muito frequentemente, a escola. Mas é provável que a estatística não capte um movimento mais recente.  As bicicletas passaram a cruzar a cidade. Tornou-se comum vê-las em vias hostis, de tráfego rápido. Pedalar já não constitui um marcador de grupo social. Sobre as magrelas, há pernas negras e brancas, macacões e saias, rostos enrugados e peles protegidas por protetor solar. Pedala-se também por teimosia: “um lado da cidade não nos quer; insistimos, porque desejamos outra cidade”.

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Chama-se Pedal Verde o coletivo de ciclistas de que participava Juliana Dias. Surgiu há três anos, quando uma bicicletada homenageou Márcia Prado, que morreu em condições muito semelhantes às de Julie, a apenas trinta metros do desastre de hoje. Como dezenas de outros grupos em São Paulo, formou-se movido por um desejo particular. Mantém um site. Idenfica-se com um hino — paródia de Geraldo Vandré, intitulado Pedalando e Plantando. A cada mês, seus integrantes pedalam para plantar mudas de árvores brasileiras nativas. Um inventário revela embaúbas, guapuruxus, grumixamas, jaboticabeiras, cambucis, araçás e (para que não falte uma planta de nome indígena-asteca) abacateiros. Foram fincadas em pontos tão distantes, entre si, quanto a Praça Amundsen (nos sofisticados Altos de Pinheiros) e o Jardim Robru (no extremo Leste de São Paulo, próximo à Avenida dos Nordestinos e aos riachos que confluem às nascentes do Rio Tietê).

Uma galáxia de coletivos semelhantes ao Pedal Verde começou a preparar uma Bicicletada Nacional, para a próxima terça-feira, 6/3. Tem página no Facebook e atividades já programadas, até o momento, em dezessete cidades. Assim como em São Paulo (onde 2 mil pessoas protestaram sexta-feira, debaixo de forte chuva), a resistência à ditadura do automóvel cresce em diversas metrópoles. Não está, ainda, na agenda dos partidos, governos de esquerda ou movimentos sociais tradicionais. Contagia gente como a bióloga Juliana. Alguns morrerão pela causa — mas é possível que ela acabe triunfando. Aconteceu antes, no Brasil e em outros cantos. Você já ouviu falar?

 

[1] Obtive o dado comparando, para cada meio de transporte, a média diária de mortes por acidente (CET, 2010) com o número de viagens diárias (Cia. do Metrô, 2007). O risco de morrer, em cada deslocamento por automóvel, em S.Paulo, é de 0,39 em 10 milhões. O índice sobe para 1,36, no percursos a pé e para 4,42, nas viagens de bicicleta. As viagens em moto são ainda mais expostas, segundo este critério (18,16 / 10 milhões), mas é provável que sua utilização esteja subestimada na pesquisa “Origem-Destino”, o que distorceria o índice.

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29 comentários para "Bicicletas: o luto de hoje e a luta de sempre"

  1. Tadeu disse:

    belo texto, meu caro =)

  2. leones damasceno pereira disse:

    Sou ciclista, viajo sempre de bike e sei o perigo que corre, ainda mais aqui nesta cidade cheia de maquinas, mas o problemas nao sao elas e que esta sentado entre o banco e o volante por falta de paz e paciencia…lembrei da musica do lenine Paciencia….as pessoas se preoculpam mas com o errado do que com o certo……nao tem respeito ao proximo pra esses coraçoes faltam muita coisa…………………………………………………..

  3. Deise A.S Ribeiro disse:

    Quando vão aparecer as famosas ciclovias??????

  4. Fabio Issene Angelo disse:

    Fabio – Barra do Piraí-RJ
    Sou de uma cidade relativamente pequena; sempre pedalei; mas algo me fez parar ao menos temporariamente…Fui atropelado duas vezes em um espaço de tempo relativamente pequeno…Graças a Deus e minha agilidade tudo bem comigo…Creio que além da falta de vias e excesso de veículos há um crescente desrespeito a individualidade de cada um; será que não estamos esquecendo algo básico como direito a vida ?

  5. zuleica brito fischer disse:

    Obrigada Antônio por nos oferecer este têxto tão articulado,denunciador, impactante.
    Sou de Brasília, uma cidade feita para rodas, onde o atropelamento está quase se banalizando, mas…..não é sòmente os lugares por vc. citado que ocorre este tipo de mortes. Penso que no país inteiro existe um ranço em cima das duas rodas,sobretudo das motos. Não assimilamos ainda que seu usuário é em grande parte o trabalhador brasileiro na luta contra o tempo para obter maior produção e consequentemente aumentar seu arriscado salário.Certo dia no trânsito ouví , em paralelo, um motorista debochar de uma moto que estava buzinando. ” Lá vem êles, pi, pi,,pi …PÁ.” Cruel, né?

  6. Carolina Quixadá disse:

    Parabéns Antonio por não se calar! O respeito pela vida humana inexiste! Tenho uma filha de 9 anos e esse “mundo louco” em que vivemos me apavora! Gostaria imensamente que ela pudesse viver em um mundo melhor! Estou muito triste pela Juliana!

  7. Pereira disse:

    Não pedalo, jamais pedalarei. Pouco importa, pois a questão é outra. O que me move responde por cidadania. Pratico a sustentabilidade possível há décadas, sem alarme, leis ou imposições. Apenas cidadania. O que me comove? A luta silenciosa contra a violência, a ignorância, a estupidez… não importa sobre que veículos monte, dirija, pilote, navegue… A morte vã não é natural, nem devemos nos acostumar a ela. A cidadania sucumbe diante do corpo frio na Paulista ou do corpo quente daquela praça em Brasília… Triste sina? Não, é o fermento da impunidade onde tudo principia..

  8. Michel disse:

    Parabéns pelo texto. Existe uma revolução “silenciosa” acontecendo (no inconsciente coletivo), alguns já perceberam… em pouco tempo, todos veram!

  9. Cezar Busatto disse:

    Porto Alegre acaba de sediar o I Forum Mundial da Bicicleta, que abriu uma ampla discussao sobre a bicicleta e seu papel para a construcao de uma cidade mais humana e democratica. Esteve aqui presente o criador do movimento Massa Critica, Carlson. Muitos debates importantes e bicicletadas lembraram o primeiro ano de um atropelamento criminoso de ciclistas ocorrido na cidade e que teve repercussao nacional e internacional. Já foi anunciado pelos organizadores o II FMB no ano que vem. Grande inciativa!

  10. Eu ando com frequencia de bicicleta e gosto muito mas percebi que alguns motoristas principalmentes de onibus e de caminhões não góstão de ciclistas e por estarem em vantagem não pensão duas veses em jogar seus veiculos contra ciclistas eles tem um pensamento de vença o mais forte são verdadeiros covardes sei que não se déve andar de bicicleta em calsadas mas em sértos pontos é melhor correr o risco de atropelar alguem que não seria de grande gravidade do que ser morto em avenidas porque competir espaços e velocidade com veiculos automotor mais çedo ou mais tarde tera um fim muito feio infelismente no brasil sempre foi assim e sempre sera .

  11. Marcos Aurélio da Silva Prates disse:

    “As circunstâncias precisas do acidente seguem obscuras”. Pois é. Só quem já enfrentou o trânsito entre os carros sabe como são os comportamentos entre ciclistas e motoristas. Daí eu arrisco em dizer que a imbecilidade e a superioridade de certos motoristas, que se acham inatingíveis ao descumprir a leis de trânsito, e, pior, o senso de convívio entre seres humanos, foram as reais culpadas por este triste acidente.

  12. inês castilho disse:

    querido antonio, quelindo, tocante texto! quantos mártires de um mundo melhor!

  13. Katiúcia disse:

    Ciclovia e respeito JÁ!!!
    Dia 06/03 que horas?
    Abraço.

  14. Paulo disse:

    Num país com mais automóveis do que ruas e rodovias a coisa tende a piorar. O pedestre morre, o ciclista morre, o motociclista morre e até animais morrem … Já passou da hora de mudar essa mentalidade e humanizar as cidades que, faz tempo, deixaram de ser espaços de convivência e tornaram-se – como se vê – em espaços de competição e rivalidades.

  15. Parabéns pelo texto Antonio.
    Há 4 anos abandonei o veículo motorizado e faço com frequência esse trajeto de bicicleta, pois moro na Vila Madalena e trabalho na Vila Mariana. Passei a utilizar a Avenida Brasil com medo de ter um destino trágico como o da Juliana. Sinto um aumento cada vez maior de ciclistas nessas vias e um aumento proporcional de intolerância por trás dos volantes. Os ciclistas muitas vezes são vítimas do mesmo tipo de fúria contra os motoboys e são literalmente empurrados e ensanduichados para o canteiro ou meio-fio. A morte de Juliana já estava anunciada.
    Abs, LB

  16. Cristina Marques disse:

    Magnifico este texto… PARABÉNSSS!

  17. Muito lúcido seu texto. Os dados e pesquisas corroboram tudo que é pedido nos protestos: mais respeito, mais bike e menos carros! Terça-feira estamos juntos na Primavera das Bicicletas!!!

  18. Maria Lucia Gouveia disse:

    Muito triste uma vida terminar dessa forma. Espero que as pessoas conscientes de um mundo melhor, nao desistam. Há muito a fazer.

  19. Antonio Martins disse:

    Ótima pergunta. Acrescentei, no post, uma nota que explica a comparação. Cruzei os dados da CET (número de mortes, por modal), com os da Pesquisa Origem-Destino do Metrô (número de viagens em cada modal). Abração!

  20. Rafael Chaves disse:

    Parabéns pelo texto, Antonio: claro, presto.
    A chuva na Paulista não foi só forte, foi um dilúvio. Mas ainda insuficiente para lavar as almas. Para isso tem que ir além de São Pedro…
    Gostaria de saber qual é a fonte da estatística comparativa entre a segurança de cada modal em São Paulo.

  21. Rafael Rodolfo Aparecido disse:

    meu e mail é este o outro estava errado

  22. Rafael Rodolfo Aparecido disse:

    Parabéns pelo texto António e vamos mobilizar o pais neste dia 6 e parar para mostrar que nos não somos formigas,para sermos esmagados sem que nenhuma medida seja tomada(pois ainda não me calaram).
    Hoje novamente bate uma indignação no meu coração,ao ter que lembra de alguns fatos recentes na minha vida.Em três anos perdi três amigos ciclistas morto na estrada.
    E há seis anos(á ser completados 21 de abril)21 de abril de 2006,eu Rafael fui atropelado quando treinava na estrada por um carro que invadiu o acostamento na rodovia Carvalho Pinto;fui dado como morto por todos mas estou aqui e hoje não aguento mais,vou levantar uma bandeira contra isso e já tenho o cara para me ajudar,só me ajudem a chegar até ele se eu não conseguir.
    E também sou de São José dos Campos como a Julie(que Deus a tenha)e quem pode entrar nessa briga conosco também, pois ele tem a mídia e o nome dele é Jonas Almeida da vanguarda,com quem até já avia conversado sobre assunto semelhante e ele falou que estava aberto para ajudar pois também anda de bike.
    E os outros dois ciclistas eram Ricardo Lorente(de Jacareí) e Liberato(sr Liberato de São José dos Campos)e se depender de mim e dos amantes de bike de São José no dia 6/3 a cidade vai parar.
    Pois a morte de todos esses sitados não pode ser em vão.

  23. Ana Lira disse:

    Eu, que virei ciclista há menos de dois meses oficialmente (antes andava mais para ir na casa da minha avó e voltar) ando observando cada vez mais esse comportamento das pessoas que andam de carro. Fortalecer os movimentos que lutam por ciclovias e por normas de respeito aos ciclistas é urgente e significativo. Vamos nessa =)

  24. Vitoria disse:

    que lindo esse texto!!!!

  25. Emmanoel disse:

    Ótimo texto! Moro em Niterói/RJ, e enfrento as mesmas dificuldades por que passam ciclistas deste nosso país, que não incentiva em (quase) nada o uso das bicicletas. De fato, para o governo e para diversos setores da economia, bicicletas não são financeiramente interessantes: não pagam impostos, não pagam estacionamentos, e por aí vai. Triste, muito triste toda essa situação. E parabéns às iniciativas dos coletivos, das bicicletadas. Quem sabe um dia, numa galáxia não muito distante, não conseguimos mudar um pouco esta situação. E deixo aqui meus pêsames aos parentes e amigos das vítimas citadas no texto.

  26. Andre Deak disse:

    Grande texto Antônio, o melhor que li até agora. Estivemos lá na Paulista hoje, debaixo de chuva, eu Lígia e Cora, ela com dois anos e já grande companheira. Há um ano estou indo de bike pro trabalho, e fiquei muito mais feliz com isso. Dia triste hoje.

  27. Elaine disse:

    Antônio,
    Ufa! Que texto lindo.

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