Anjo exterminador

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As cidades latino-americanas não querem parecer-se com Amsterdam ou Florença, mas com Los Angeles, e estão conseguindo converter-se na horrorosa caricatura daquela vertigem

Por Eduardo Galeano

Em 1992 houve um plebiscito em Amsterdam. Os habitantes da cidade holandesa resolveram reduzir à metade o espaço, já muito limitado, que ocupam os automóveis. Três anos depois, proibiu-se o trânsito de carros privados em todo o centro da cidade italiana de Florença, proibição que se estenderá à cidade inteira à medida em que se multipliquem os bondes, as linhas de metrô, as vias para pedestres e os ônibus. Também as ciclovias: será possível atravessar toda a cidade sem riscos, por qualquer parte, pedalando em um meio de transporte que custa pouco, não gasta nada, não invade o espaço humano nem envenena o ar e que foi inventado, há cinco séculos, por um vizinho de Florença chamado Leonardo da Vinci.

Enquanto isso, um informe oficial confirmava que os automóveis ocupam um espaço bem maior que as pessoas, na cidade norte-americana de Los Angeles, mas ali ninguém pensou em cometer o sacrilégio de expulsar os invasores.

A quem pertencem as cidades?

Amsterdam e Florença são exceções à regra universal da usurpação. O mundo motorizou-se aceleradamente, à medida que iam crescendo as cidades e as distâncias, e os meios públicos de transporte recuaram diante do automóvel privado. O ex-presidente francês George Pompidou comemorava, dizendo que “é a cidade que deve adaptar-se aos automóveis, não o contrário”, mas suas palavras assumiram sentido trágico quando se revelou que haviam aumentado brutalmente as mortes por contaminação na cidade de Paris, na greve geral do finzinho de 1995: a paralisação do metrô havia multiplicado as viagens de automóvel e esgotado as máscaras anti-smog.

Na Alemanha, em 1950, os trens, ônibus e bondes realizavam três quartos do transporte de pessoas; hoje, representam menos de um quinto das viagens. A média europeia caiu a 25%, o que já é muito comparado com os Estados Unidos, onde o transporte público, virtualmente exterminado na maioria das cidades, só chega a 4% do total.

O ruído dos motores não deixa ouvir as vozes que denunciam o artifício de uma civilização que te rouba a liberdade para depois vendê-la e que te corta as pernas para obrigar-te a comprar automóveis e aparelhos de ginástica. Impõe-se no mundo, como único modelo possível de vida, o pesadelo de cidades onde os carros mandam, devoram as áreas verdes e apoderam-se do espaço humano. Respiramos o pouco ar que eles nos deixam; e quem não morre atropelado, sofre gastrite pelos engarrafamentos.

Henry Ford e Harvey Firestone eram amigos íntimos, e ambos davam-se muito bem com a família Rockefeller. Este carinho recíproco desembocou numa aliança de influências que muito teve a ver com o desmantelamento das ferrovias e a criação de uma vasta teia de auto-estradas, em todo o território norte-americano. Com o passar dos anos, tornou-se cada vez mais avassalador, nos Estados Unidos e no mundo todo, o poder dos fabricantes de automóveis e empresas de petróleo. Das 60 maiores companhias do mundo, a metade pertence a esta santa aliança, ou está de alguma maneira ligada à ditadura das quatro rodas.

Dados para um prontuário

Os direitos humanos terminam ao pé dos direitos das máquinas. Os automóveis emitem impunemente um coquetel de muitas substâncias assassinas. A intoxicação do ar é espetacularmente visível nas cidades latino-americanas, mas muito menos intensa em algumas cidades do norte do mundo. A diferença se explica, em grande medida, pelo uso obrigatório dos conversores catalíticos e de gasolina sem chumbo, que reduziram a contaminação mais notória de cada veículo, nos países de mais desenvolvimento. No entanto, a quantidade tende a anular a qualidade, e estes progressos tecnológicos vão reduzindo seu impacto positivo diante da proliferação vertiginosa do parque automotor, que se reproduz como se fosse formado por coelhos

Visíveis ou dissimuladas, reduzidas ou não, as emissões venenosas têm uma longa folha corrida de crimes. Para apontar apenas três exemplos, os técnicos do Greenpeace denunciaram que provém dos automóveis não menos da metade do total de monóxido de carbono, de óxido de nitrogênio e de hidrocarbonetos que tão eficazmente contribuem com a demolição do planeta e da saúde humana.

“A saúde não é negociável. Basta de meias medidas”, declarou o responsável por transportes em Florença, no início deste ano, enquanto anunciava que esta será “a primeira cidade europeia livre de automóveis”. Mas em quase todo o resto do mundo parte-se da base de que é inevitável que o divino motor seja o eixo da vida humana, na era urbana.

Copiamos o pior

Copiamos o pior. As cidades latino-americanas não querem parecer-se com Amsterdam ou Florença, mas com Los Angeles, e estão conseguindo converter-se na horrorosa caricatura daquela vertigem. Estamos treinando há cinco séculos como copiar, em vez de criar. Já que estamos condenados à copiadite, poderíamos escolher nossos modelos com um pouco mais de cuidado. Anestesiados como estamos pela televisão, a publicidade e a cultura do consumo, acreditamos no conto da chamada modernização, como se este chiste de mal gosto e humor sórdido fosse o abracadabra da felicidade.

Publicado originalmente em La Jornada, 31/31996

 

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17 comentários para "Anjo exterminador"

  1. cecilia lara disse:

    tem muita gente. tem muito carro. acabar com carro ou com gente? acho que a resposta é facil, não é?

  2. Matheus disse:

    Patético, pequeno, mesquinho, sem capacidade argumentativa – “o meu”, “o dele”!? -ou de raciocínio pra entender que se trata de uma crítica a um modelo de sociedade e não especificamente ao carro enquanto meio de transporte. Ignorância típica daqueles que não querem evoluir enquanto cidadãos no sentido de respeitar o espaço do outro, tanto quanto deseja que respeitem o seu próprio. E não vou nem falar da incapacidade crítica em avaliar uma análise sociológica do modelo de cidade e ocupação urbana da qual Galeano faz referência…aprenda a ler e a viver em sociedade, seu verme de classe média.

  3. Dr. Traffic Calming disse:

    Parabéns pelo artigo.
    À quem pertencem as cidades?
    Às máfias que dominam os governos municipais, estaduais e federal.
    Às máfias que fazem com que empresas mistas travestidas de órgãos públicos e que supostamente gerenciam, por exemplo, o trânsito de cidades, imponham os interesses comerciais acima do interêsse publico. Exemplos: estabelecer e insistir por quase dez anos em limites de velocidade irresponsáveis in vias inadequadas, sem se preocupar e ignorar as consequências, inclusive como fator contribuinte para acidentes fatais. Corrigir parcialmente o erro, reduzindo por exemplo de 80KM para 70Km e 70km para 60Km na Ruben Berta/ 23 de Maio e Av. Paulista respectivamente, e utilizar-se da máquina da publicidade para cínicamente informar recentemente que estão reduzindo os limites para aumentar a segurança. Aproveitar para inundar a cidade de com placas de sinalização sem observar o principio da Suficiência, recomendado pelo DENATRAN; Placas de limite de 60Km p.ex. em vias inapropriadas e a cada 150mts, o que, nessa velocidade demoramos 10 a 12 segundos para encontrá-las; Semáforos duplicados no mesmo poste; verbas publicitárias anuais de 12 milhões como SP, onde se torra dinheiro publico em factóides, campanhas falaciosas, filminhos idiotizantes como dos motoqueiros, etc. Muita firula , gastos dirigidos e resultados mínimos para a cidade. Os gastos e prejuízos são socializados e os lucros distribuidos como dividendos aos acionistas. Rasgam-se bairros residenciais com trânsito para atender projetos imobiliários de dez anos. Toda incompetência e irresponsabilidade encobertos pela mídia amestrada e campanhas falaciosas.
    Os interesses são outros que não os da cidade. Quem se preocupa com a cidade e e seus cidadãos, não estimula a Velocidade ao invés da Fluidez, não estimula o desentendimento entre os grupos potencialmente conflitantes que compõem o trânsito de um cidade, não entope a cidade com placas de 60KM, indiferentemente das consequências. Um verdadeiro Circo de Ilusões. E por aí vai o domínio das máfias. SP, pobre cidade rica, cheia de ratos que falam, ilusionistas e dominada pelas máfias

  4. Arthur Araujo disse:

    É impressionante constatar que ainda existem pessoas com mentalidade igual a desse que , de forma arrogante defende o direito de sair de seu prédio, no seu carro, com ar condicionado etc, etc. Aliás, ao falar dos EUA, quje ele tanto idolatra pergunta-se: Por que ele não vai morar lá, já que, segundo ele, aquilo é uma maravilha ?
    Ao dizer que conhece bem a terra do já esfarrapado Tio Sam, ele se esquece de dizer, ou faz de conta que não sabe, que desde 2008 , grande parte da população vive um drama social com desemprego e perda de sua residências, pois não tiveram condições de pagar as hipotecas, sendo que a solução para muitos foi dormir em carros velhos.
    Felizmente pessoas com essa forma de pensar e de agir vão aos poucos perdendo espaço, até mesmo em função da crise que o sistema capitalista tem provocado no mundo todo.

  5. Rubens disse:

    Egle Siqueira, sobre a violencia americana, nem adianta discutir, ela é absurdamente menor que a nossa (sendo que boa parte das gangues jovens nos EUA sao de latinos, inclusive).
    Ao falar de “espigões horripilantes”, percebe-se que voce sequer conhece os EUA, nunca esteve lá na vida, pois é um país onde a maioria esmagadora das cidades é formada por casas, a maioria delas bem confortaveis e espaçosas. Esse negocio de espigoes sao apenas para predios comerciais e so em algumas poucas cidades como Nova York as pessoas moram em apartamentos.
    Por ultimo, voce encontra mais verde em qualquer bom suburbio americano de classe media, do que na maioria das cidades latinas.
    Queria eu que o Brasil fosse realmente uma copia das cidades americanas. A começar que os servicos publicos funcionariam, as ruas nao seriam entupidas de buracos, as calçadas estariam conservadas, existiria muito mais segurança e etc.

  6. Rubens disse:

    O que eu quis dizer é que quem defende essas ideias disfarçadas de “pensar no coletivo”, na verdade prefere ignorar completamente as normais aspirações humanas de conforto, de subir na vida. Vejam como eles adoram colocar toda a culpa em “poder das corporações automotivas”, mas ignoram solemente que são as pessoas (como eu e voce) que aspiram ter o seu proprio automovel, meramente porque essa é a melhor solucao (ou alguem aqui GOSTA de andar de onibus em percursos irracionais e demorados, parando em tudo quanto é ponto? Du-vi-de-o-dó!).
    Muito inclusive, como o Luciano, deixam bem claro que não são contra o automóvel em si, são sim contra o fato que aqui na America Latina pobre (portanto, nada tem a ver com os EUA rico) a maioria da populacao é obrigada a andar de onibus, enquanto parte das pessoas pode andar de carro. Ou seja, ele não é contra o carro e a favor do onibus, so tem raiva que nem todos aqui no Bananão possam ter esse mesmo conforto (e talvez queira ver todos igualmente dividindo a mesma miseria).
    Eu prefiro ter o sonho americano, onde TODO mundo tem direito ao mesmo conforto (como carro), se trabalhar duro para obte-lo.

  7. tiago barufi disse:

    Que patético. Hoje de manhã eu ultrapassei, na subida, de bicicleta umas três centenas de adeptos do livre-arbítrio, sentados ridículos em suas carroças, à espera que o trânsito fluísse e pudessem avançar, no conforto dos seus ares condicionados e músicas prediletas, uns poucos metros, para continuarem sentados logo adiante.
    O seu egoísmo repulsivo, a sua atitude mesquinha e miserável diante da condição enfrentada pelos seus semelhantes é felizmente minimizado pela realidade, que vai continuar cada vez mais a confinar cidadãos, com sua PRATICIDADE INCOMPARÁVEL, em seus caixões de aço estacionados.
    Minha revolta diante da sua atitude é diariamente aplacada pela sua irritação inútil, pelo sofrimento auto-inflingido que, diferente de compaixão, em mim desperta um saudável e bem-condicionado sarcasmo.
    E numa coisa tenho que concordar: na medida em que seu caráter mimado e egocêntrico é a única medida a guiar suas ações… DANEM-SE os seus desejos e aspirações individuais.

  8. luciano festinalli sena disse:

    Caro Rubens, logo de cara você deixa claro que pertence a CLASSE se é que posso assim chamar, que se acha no pleno direito de fazer o que melhor lhe aprouver, independente de estar afetando o TODO com está sua minúscula atitude egoista e irresponsável. Parabéns continue PENSANDO e AGINDO assim que a humanidade agradece!

  9. egle e siquera disse:

    Concordo plenamente.
    Copiamos mesmo o q há de pior: a cultura da violência americana, e suas gangues.
    Os espigões horripilantes, e o mar de carros entupindo as ruas, narinas e pulmões, c a poeira particulada lançada no ar.
    E o cinza- chumbo,derrotando o verde q timidamente ainda insiste em aparecer entre o cimento.
    Abrs,
    Egle.

  10. luciano disse:

    A sociedade liberal-individualista cria no Terceiro Mundo justamente aquilo que deveria combater. Enquanto milhões de pessoas são obrigadas a pegar ônibus ou trem sem ar-condicionado, ouvindo músicas que não querem e convivendo com o cheiro dos outros, apenas uma parte da população tem a possibilidade de andar de carro com todo o conforto possível. Isto é, a sociedade de mercado cria privilégios que acabam com os direitos civis. Quando alguém defende que o direito das maiorias é negado, aí aparece um defensor da liberdade para combater as “ideias ditatoriais de esquerda”.

  11. luciano disse:

    A sociedade liberal-individualista do Terceiro Mundo cria justamente aquilo que deveria combater. Enquanto milhões de pessoas são obrigadas a pegar ônibus ou trem sem ar-condicionado, ouvindo músicas que não querem e convivendo com o cheiro dos outros, apenas uma parte da população tem a possibilidade de andar de carro com todo o conforto possível. Isso é, a sociedade de mercado cria privilégios que acabam com os direitos civis. Quando alguém defende que o direito das maiorias é negado, aí aparece um defensor da liberdade para combater as “ideias ditatoriais de esquerda”.

  12. Rubens disse:

    Só de ler o texto, dá para perceber que o autor é esquerdista. E por que? Porque ele se acha nao apenas dono de todas as respostas, como ainda se acha o porta-voz dos desejos do “resto” do povo. DANEM-SE os desejos e aspiracoes individuais, certo?…
    Pois eu prefiro o conforto e a praticidade INCOMPARÁVEL do automovel. Normalmente saio da garagem do meu predio (no instante que EU quiser, com a musica que eu escolhi, o ar condicionado na temperatura que eu determinei, etc.) e, com RAPIDEZ e todo conforto, so paro no estacionamento do local para onde vou. Sem tumultos, sem apertos, sem esperas, sem paradas a todo instante, sem pessoas inconvenientes e cheirando mal…
    Se o autor gosta de andar de onibus/trem/bonde/bicicleta, com todos os seus inconvenientes, é uma opcao DELE! Nao tenho nada a ver com isso. Mas, por favor, não venha impor a mim, como bom ditadorzinho esquerdista, as SUAS preferencias. Pode deixar que eu faço as minhas escolhas por mim mesmo. Vá cuidar da SUA vida! (estou falando com o autor original do texto, e para todos que concordam com ele).

  13. Paulo disse:

    Como vencer o poderio das corporações e montadoras ligadas ao setor automobilístico ? O primeiro passo é desprivatizar as cidades; devolvê-las – sim – ao povo !

  14. dinoquinha disse:

    olha, apesar de achar que temos carros além da conta, não esqueçamos do montão de prédios e mais prédios, além de gente concentrada em pequenas areas que também é demais.Andar numa calçada na Av.Brigadeiro Luiz Antonio e outras onde existam ponto de onibus é um sufoco,um pouco melhor na Av. Paulista que tem calçadas mais largas, tudo na minha adorada São Paulo ficou demais,no tempo da minha infância ,andava de Bonde,onibus por ruas mais tranquilas,arborizadas….que saudade!

  15. Cláudio Ribeiro disse:

    Prezado Galeano,
    Você soube sintetizar de maneira extraordinária o caos urbano em que foram transformadas as nossas cidades pela ditadura do complexo industrial automobilístico. A comparação com Los Angeles muito oportuna. Que saudade do trem, do bonde…

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