A música popular brasileira vista por Tinhorão

Em livro essencial, crítico musical traça um panorama da cultura popular no país – da era colonial ao século XX – e de como o subdesenvolvimento desestrutura identidades culturais. Quem apoia nosso jornalismo concorre a dois exemplares

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Há aproximadamente um ano, no dia 3 de agosto de 2021, falecia José Ramos Tinhorão, um dos principais ensaístas e críticos da música popular brasileira. Alinhado à tradição marxista, propôs uma análise da nossa produção cultural enquanto historicamente localizada na sociedade de classes e, por isso, submetida às mazelas advindas da posição subalterna do Brasil no capitalismo global. 

Seguindo essa linha investigativa, História social da música popular brasileira, publicado pela primeira vez em 1990, descreve simultaneamente os elementos da cultura popular em cada época e as forças sociais que os engendraram, assim como suas transformações. Tinhorão analisa como a separação entre decisão econômica e poder político, característica das economias capitalistas dependentes, se reflete na cultura e gera novas tensões de caráter ideológico e produtivo entre as classes dirigentes, médias e populares — aqui, relacionados aos meios de comunicação e à indústria cultural.

Outras Palavras e Editora 34 sortearão 2 exemplares de História social da música popular brasileira, de José Ramos Tinhorão. Também será disponibilizado cupom de 30% de desconto. O formulário para concorrer será enviado por e-mail. As inscrições ficarão abertas até sexta-feira, 29/07, às 14h.

Em seus capítulos, o livro traça um panorama abrangente da música popular com base nas grandes fases da história brasileira, partindo da marca portuguesa no século XVI e delineando os traços sociais da canção popular no decorrer do Império, da República e dos principais acontecimentos políticos do século XX — dentre eles, o nacionalismo varguista do Estado Novo e o movimento tropicalista durante a Ditadura Militar. 

Para relembrar a obra de Tinhorão e marcar a retomada da parceria editorial entre Outras Palavras e Editora 34, quem contribui com o jornalismo de profundidade do Outras Palavras agora concorre a dois exemplares do livro e garante 30% de desconto em todo catálogo da editora. A seguir, publicamos a introdução da obra, escrita pelo próprio autor. Boa leitura!

História social da música popular brasileira, por José Ramos Tinhorão

Em exemplo de absoluta excepcionalidade — mas por isso mesmo carregado de muita significação — o presente livro, escrito por brasileiro para explicar o fenômeno da criação e evolução da música popular no Brasil, apareceu pela primeira vez em Portugal em maio de 1990, lançado pela Editorial Caminho, de Lisboa.

Praticamente esgotada essa edição “estrangeira” responsável pela expansão do conhecimento do livro não apenas nos países de expressão portuguesa na África, mas aos grandes centros interessados na produção cultural da Europa, a História social da música popular brasileira aparece agora em sua primeira edição destinada ao mercado nacional. Nesta oportunidade, o autor espera que seu trabalho continue a cumprir, no Brasil, os mesmos objetivos propostos na apresentação originalmente escrita no exterior, que aqui se reproduz.

Destinado basicamente a procurar o nexo entre a existência de uma música do homem das cidades e a realidade social que desde o século XVI a explica, este livro acaba por oferecer uma série de indicações não apenas sobre esse problema de cultura popular — objeto da pesquisa — mas sobre características da própria cultura.

A primeira dessas indicações oferecidas pela história da evolução da música popular urbana no Brasil é a de que, numa sociedade diversificada, o que se chama de cultura é a reunião de várias culturas correspondentes à realidade e ao grau de informação de cada camada em que a mesma sociedade se divide.

Assim como nos países capitalistas, entre os quais o Brasil se enquadra, o modo de produção determina a hierarquização da sociedade em diferentes classes, a cultura constitui, em última análise, uma cultura de classes.

Como os fatos historiados no livro demonstram, essa diversidade cultural é normalmente simplificada através da divisão da cultura em apenas dois planos: o da cultura das elites detentoras do poder político-econômico e das diretrizes para os meios de comunicação — que é a cultura do dominador — e a cultura das camadas mais baixas do povo urbano e das áreas rurais, sem poder de decisão política — que é a cultura do dominado.

Acontece que nas nações em que a capacidade de decisão econômica não pertence inteiramente aos detentores políticos do Poder, como é o caso de países de economia capitalista dependente — e entre eles o Brasil em estudo —, a própria cultura dominante revela-se uma cultura dominada.

Em resultado, a cultura das camadas pobres acaba sendo submetida a uma dupla dominação: em primeiro lugar, porque se situa em posição de desvantagem em relação à cultura das elites dirigentes do país; e, em segundo lugar, porque esta cultura dominante não é sequer nacional, mas importada e, por isso mesmo, dominada.

Assim, como os fatos alinhados no livro demonstram, quando se assume o ponto de vista da cultura que traduz a realidade da maioria do povo — que é inegavelmente a regional ou urbana mais ligada ao gosto e às expectativas das camadas pobres —, essa dupla dominação revela o impacto de uma agressão insuportável. É que a cultura realmente representativa da realidade do país como um todo — que são as culturas da gente pobre, sem oportunidade de escola e sem recursos — tem de enfrentar não apenas a concorrência da cultura da elite (que, por ser oficial, dispõe de escolas, teatros, conservatórios, orquestras, programas e verbas), mas ainda a da classe média que, enquanto consumidora de produtos da indústria cultural (e, assim, também ligada a modelos estéticos importados), se identifica mais com as elites do que com o povo, o que lhe garante maior espaço nos meios de divulgação.

Admitido que os fatos expostos no livro demonstram a realidade de tal observação, não se pode deixar de concluir que o problema da cultura é um problema político. No caso do Brasil, em especial, quando se considera o grau de dominação a que atualmente se submetem as maiorias com a imposição de modelos — e não apenas musicais — de cima para baixo, e de fora para dentro, a conclusão que parece impor-se é a de que, do ponto de vista da cultura dominada, a única forma de escapar à agressão seria a mobilização dos prejudicados no sentido de uma luta de libertação. Como, porém, conforme o livro demonstra, as elites e grande parte da classe média urbana se identificam mais com os interesses internacionais — por sua maior participação nos resultados do capitalismo — do que com os interesses das camadas menos favorecidas, tal luta só poderá vir a ser ao mesmo tempo insurrecional (pela necessidade de derrubar no campo interno os grupos interessados na continuação do modelo dependente) e de libertação nacional (pela necessidade de enfrentar a reação estrangeira que tal mudança das estruturas certamente acarretaria).

O que os fatos historiados no presente livro parecem demonstrar, pois, tomando o problema da música popular urbana como tema, é que as possibilidades de representatividade da cultura brasileira, dentro do próprio país, se ligam diretamente à realidade de um estado de dominação que resulta — até por herança colonial — do atrelamento do Brasil a um tipo de proposta de desenvolvimento que o torna necessariamente caudatário de decisões que escapam aos seus dirigentes. Tal fato é claramente comprovado no presente livro quando se demonstra que o colonialismo cultural, no campo das várias músicas brasileiras, se revela sob a forma da dominação econômica nos meios de comunicação e da indústria do lazer, com o objetivo capitalista estrito de obtenção de lucro.

Esse colonialismo cultural estrangeiro, na área da música popular, é imposto ao povo do país economicamente dominado — e o livro mostra-o com fatos — sob a forma de duas realidades: a de caráter econômico, propriamente dito, representada pela circunstância de a música popular destinada ao lazer urbano se prender a um complexo industrial eletroeletrônico de grande peso na economia mundial; e a de caráter ideológico, representada pelo fato de a música popular, graças às novas modas fabricadas por tais grupos industriais, projetar para os consumidores subdesenvolvidos uma ideia de modernidade, de conquista de status e de integração no que “de mais novo se produz no mundo”.

Ora, como a divulgação das produções musicais, para além das salas ou comunidades regionais em que são ouvidas, depende da divulgação pelos meios de comunicação, principalmente o rádio e a televisão, é a ocupação desses espaços que permite a universalização de sons musicais por todo o território do país e, em certa medida, também por todas as classes sociais. Acontece que, como tais canais de divulgação pertencem a empresários que dividem os espaços em tempo, que é vendido conforme determinados preços o segundo ou o minuto, será esse custo econômico das horas de veiculação das músicas que irá determinar quais, entre todos os gêneros ou estilos produzidos — no país ou no estrangeiro —, os que vão ser ouvidos.

É assim, pois — como no livro se demonstra —, que se fecha o círculo que, evidenciando a relação direta entre produção cultural e produção econômica no mundo capitalista, permite a projeção das leis de mercado para o campo da produção e divulgação das músicas populares. E isso porque, como dentre os muitos tipos de música existentes apenas os produzidos pelos grupos econômicos capazes de pagar sua divulgação pelo rádio e pela televisão serão dados a conhecer ao público e, por nenhuma coincidência, tais grupos econômicos são sempre as grandes fábricas de disco multinacionais, resulta daí que os únicos tipos de música passíveis de chegar aos ouvidos das maiorias serão os de escolha dessas mesmas empresas internacionais. E, por consequência, como uma das leis do capitalismo industrial, em termos de obtenção de lucro máximo, é a da busca de mercado mais amplo possível ao preço de custo de produção mais baixo capaz de ser obtido, a escolha desses tipos de música — que logo serão vendidos com a chancela de atual, de nova onda e de universal — serão aqueles que, já tendo sua produção paga no país de origem, terão a sua mensagem promovida nos países colonizados sem riscos de capital.

Assim — e esta História social da música popular brasileira deixa claro —, do ponto de vista cultural e ideológico tal realidade de dominação econômica traz para o povo dependente uma consequência cruel: é que, ao envolver a ideia de modernidade e de universalidade (quando se sabe que o que se chama de universal é o regional de alguém imposto para todo mundo), o som importado leva os consumidores nacionais ao desprezo pela música do seu próprio país, que passa então a ser julgada ultrapassada e pobre, por refletir naturalmente a realidade do seu subdesenvolvimento.

Essa espécie de vergonha da própria realidade, desenvolvendo-se principalmente entre as camadas de classe média com caráter de autêntico complexo de subdesenvolvimento, conduz, assim, a uma progressiva perda ou desestruturação da identidade cultural, o que desemboca no ridículo de, ao procurarem tais consumidores colonizados apresentar-se como modernos, só conseguirem aparecer como estrangeiros dentro do seu próprio país.

Essa é a realidade que esta História social da música popular brasileira conta: quem achar que não, que conte outra.

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