Convite à prática pública de psicanálise

Num mundo mercantilizado e desigual, há espaço para uma escuta psicanalítica não mediada pelo dinheiro? Como ela se relaciona com a cidade psíquica, a confidencialidade, as relações complexas entre Estado, público e privado?

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Texto e imagem: Daniel Guimarães

Esta carta é um convite. Um pequeno conjunto de propostas para uma prática psicanalítica, política, artística no sentido de socializar a psicanálise e de pensar a prática psicanalítica a partir do público. É um convite para aqueles e aquelas que por ventura venham a se interessar por esse ângulo do trabalho. Muitos já praticam a psicanálise dessa forma, com suas variações particulares. A ideia deste convite é colocar em conversa aqueles e aquelas que veem na psicanálise um movimento na direção da emancipação e não aceitam as catracas que se colocam entre a psicanálise e a ampla maioria da população.

Os pontos aqui reunidos são questões surgidas durante alguns anos de trabalho a partir desse princípio, no consultório, na rua, em espaços públicos. Cada contexto, cada analista, cada grupo de analistas, cada analisando, cada análise farão emergir formas diferentes de prática pública de psicanálise. Ao mesmo tempo é preciso algum acordo com estes pontos para que possamos conversar a respeito e ampliar uma rede de trabalho. Para definir melhor esse conjunto de pontos comuns, somente através da própria experiência, da análise e reflexão da experiência.

A prática pública de psicanálise está inserida no contexto do movimento psicanalítico e seus arranjos, dos caminhos de formação: análise do analista, supervisão e o trabalho de uma escuta não dirigida pelo analista, a partir do entendimento da particularidade conflitiva da experiência humana. Ela se propõe a contribuir com a expansão do alcance popular da psicanálise e produzir pensamento a respeito da relação entre espaço psíquico, espaço social, espaço territorial, na constituição do sujeito e dos seus objetos, de suas subjetividades e transformações.

Da minha parte, insiro essa busca dentro de uma ideia mais ampla que chamo de direito à cidade psíquica. Me inspiro na leitura que David Harvey faz de Henri Lefebvre, ao afirmar que o direito à cidade não pode ser reduzido ao acesso a serviços, coisas e espaços existentes, significando, sobretudo, a possibilidade de a população fazer e refazer a cidade a partir de seus próprios desejos, sem a mediação de especialistas. Me interesso pela relação mútua entre a paisagem que nos precedeu e a forma como nos representamos e nos transformamos ao modificar essa paisagem, criando, assim, o espaço vivido, autoral, autêntico. O espaço é uma relação social que muda o tempo todo, como pensava Milton Santos. Isso me leva a refletir que investir pensamento e crítica a partir das consequências espaciais dos conflitos de nossa sociedade é um instrumento de compreendê-la melhor. Talvez mudar a cidade seja também uma interpretação psicanalítica? De qualquer forma, me parece que essa questão pode contribuir substancialmente tanto com a experiência clínica quanto com a experiência das transformações políticas.

No interior do movimento da escuta do sujeito, fazer também a escuta do lugar, a partir da nossa localização, situação atual e história, panos de fundo e cenários através dos quais nos subjetivamos. O contexto social mais amplo tem grande efeito em nós, produzindo as imagens e vocabulários com os quais criamos e nomeamos nossa vida psíquica mais íntima. Ao nascer recebemos uma história que nos precedeu e nos localiza no mundo. Tudo isso faz enorme diferença na trajetória de cada pessoa e merece ser levado em consideração.

Do jeito como vejo as coisas, estamos no Brasil, em 2020, em meio a uma pandemia cultivada pelo governo que adotou uma estratégia de contaminação total e simultânea da população, jogando, com enorme insensibilidade, para dizer o mínimo, um jogo em que pessoas são descartáveis. Sem atendimento médico suficiente, sem políticas de proteção social autênticas e suficientes, sem condições de moradia para suportar o isolamento social, quem sobreviver segue o jogo precário que já existia. Quem não tiver força o suficiente para suportar o vírus, paciência. A morte é aceitável para que os grandes negócios de poucos capitalistas não sejam perturbados. Trabalhar até morrer, trabalhar para morrer, morrer trabalhando. Estamos, enfim, no Brasil de intensa tragédia econômica que aprofunda a desigualdade da nossa sociedade dividida por classes e marcada pela desgraça da escravidão e me parece que o fim deste governo é também uma necessidade de saúde pública.

Estamos no Brasil em que as esferas pública e privada são propositadamente confundidas para benefício de uma parcela pequena da população. O direito de propriedade – inacessível para a esmagadora maioria – está acima do direito de existir com dignidade. Questões que tornam ainda mais difíceis as tentativas de tornar precisas as noções de coletividade e singularidade. O que está dentro, o que está fora, o que é meu, o que é teu, há mundo interno e mundo externo? O espaço público é a fronteira disso, é o que está “entre”? É outra coisa? Estar no centro, estar na periferia, importa? Como escutar a partir disso?   

Para nos colocarmos no lugar de escuta, é importante também escutar esses lugares. O lugar é uma fala que se expressa nas dinâmicas da vida e nos conflitos dos sujeitos.

Aqui está o convite e suas ideias de base:

Todos e todas as psicanalistas podem praticar a psicanálise pública. Não é necessário fazer parte de um grupo de analistas. Essa prática pode acontecer a partir de um psicanalista que deseja fazer esse trabalho dentro das suas próprias possibilidades. É possível que essa prática aconteça a partir de grupos de afinidades ou instituições. Ela pode acontecer em consultórios, praças, ruas, dentro de suas casas, onde for possível e necessário. A pandemia nos colocou também a interessante tarefa de trabalhar como psicanalistas fisicamente distantes dos analisandos. Pela internet, telefone, enfim, buscamos formas de tornar possível a psicanálise em meio à catástrofe comum que nos atinge de formas distintas. Mas a prática pública começou muito antes da pandemia e, depois desse fim do mundo, teremos de construir outro. O trabalho psicanalítico é, também, construir o espaço desse trabalho a partir de outra dimensão da presença. Exigir condições materiais para todas as pessoas poderem fazer suas análises nesse contexto é também uma interpretação psicanalítica da nossa sociedade que não proporciona essas condições para todos e todas. Por que não proporciona? Equipamentos, internet de qualidade, espaços de solidão que protejam e permitam a fala, pra já.

Assim como falar a partir da psicanálise exige uma relação, interesse e uma formação psicanalítica dedicada, a prática pública de psicanálise convoca a pensar o que é público. Que efeitos no psiquismo e no trabalho psicanalítico emergem quando nos colocamos a tarefa de trabalhar sob essa orientação, sob essa hipótese?

Deixo essa questão em aberto, apenas dizendo que nem tudo o que é estatal é público, nem tudo que é público é estatal. Público é o que não é privatizado. Público, no entanto, pode ser da ordem da intimidade preservada. Intimidade não é privatização. Aliás, a captura do público em nome da privatização e do interesse do mercado se dá também através do estado. Ao mesmo tempo, o estado ainda é um operador de manutenção das coisas públicas, das coisas que pertencem a todos e todas.

O que proponho, no entanto, é também uma subversão do espaço privado através do sentido socializante e público do trabalho realizado. Cito o arquiteto Paulo Mendes da Rocha: “Todo espaço deve ser ligado a um valor, a uma dimensão pública. Não há espaço privado. O único espaço privado que você pode imaginar é a mente humana.” Mesmo a mente humana não é tão privada como se poderia imaginar. Somos atados uns aos outros por múltiplos nós. Mas o arquiteto talvez estivesse se referindo à privação de imaginação de algumas mentes humanas. Não sei. De qualquer forma, aqui está uma proposta de que, seja lá onde estivermos, o trabalho orientado sob a ideia do público pode acontecer. E pode ressignificar o próprio lugar. Uma pequena subversão. É também subversivo realizar trabalhos públicos em espaços nomeados públicos, mas que na prática não o são. O que é público, o que deveria ser o público, são questões em aberto e em disputa.

Faço uma aposta de que a prática pública de psicanálise passa pela invenção mútua do espaço público. Ao contrário de um serviço, noção colonizada pelas relações de consumo, em que as pessoas são clientes, a prática pública se realiza apenas em colaboração. Um trabalho em conjunto em que os dois eixos estão em posições distintas, mas não tão assimétricas. Essa é uma das éticas da psicanálise, a meu ver, a inversão do poder das relações do saber médico e intelectual. A conquista da palavra diante de alguém que escuta verdadeiramente é um ato político. A realização dessa invenção de uma forma colaborativa do público só é possível quando analista e analisando constroem juntos essa experiência.

A confidencialidade, direito de preservação e não exposição do que for dito são fundamentais, e não são confundem com a privatização – o roubo daquilo é comum – das experiências. É antes o direito ao segredo como constitutivo de um eu independente, mesmo que relacionado ao mundo e aos outros eus. A psicanálise proporciona um espaço para a existência da intimidade, do reconhecimento daquelas nossas coisas que se chocam com os valores internalizados, ou os valores normatizados na vida social. Daí a importância crucial de uma escuta não moralista. Cabe aqui reflexão sobre os efeitos de uma psicanálise que se chama pública, especialmente se realizada em espaço dito público, sem a proteção da fala e da imagem proporcionada por uma sala.

Ainda que a prática pública de psicanálise possa ser feita singularmente, psicanalistas trabalham melhor em comunicação com outros psicanalistas e com pessoas que trabalham a partir de outras referências – o não-psicanalítico tem uma função provocativa muito importante. Sejam grupos de afinidade, coletivos, instituições formais ou informais, é importante criar espaços de supervisão clínica, debates e estudo entre colegas. Se estamos perto dos espaços-entre o público e o não-público, essa rede é importante. Se uma rede de trabalho for criada, é fundamental que a própria rede passe por experiências de escuta analítica, para que o trabalho grupal aconteça orientado pela própria psicanálise e, assim, seja possível elaborar as situações difíceis que o trabalho convoca.

A análise do analista é essencial tanto para os analistas quanto para os analisandos. A prática pública de psicanálise está evidentemente inserida nas práticas psicanalíticas reconhecidas no campo. É essencial que o analista analise suas motivações e desejos de praticar publicamente a psicanálise. Assim como é essencial que cada pessoa interessada em ser psicanalista analise seu desejo de se tornar psicanalista. Esses conteúdos atravessam as análises e demandam percepção. Essa prática que aqui compartilho pode facilmente cair em um lugar de assistencialismo, caridade e aquele que sai em busca de fazer o bem pode tropeçar nas suas próprias questões cobrando um preço alto de dependência de seus analisandos. É uma situação delicada, sutil e que deve ser enfrentada com delicadeza.

A prática pública de psicanálise que faço acontece sem a mediação do dinheiro como pagamento. Para mim faz sentido ser assim. Desse jeito posso aceitar um novo analisando considerando mais os critérios clínicos do que minhas necessidades financeiras. Não poder pagar por uma análise não deveria impedir alguém de ter acesso ao tratamento psicanalítico. Esse argumento estava no coração da experiência da Policlínica de Berlim, primeira clínica psicanalítica de orientação social, inaugurada em 1920 por membros da maior importância histórica para o movimento psicanalítico. Mas isso significa manter aberto o pensamento e a sensibilidade para os efeitos que a questão do não pagamento em dinheiro pode vir a ter no curso da análise. O analisando se sentirá em dívida com o analista? O analista se sentirá benevolente ou irá cobrar essa dívida com o analisando? Que outros enredos isso pode fazer surgir e onde se localizam na história dos conflitos do analisando? Se esse complexo de coisas não ficar impedido de ser analisado, é possível abrir um grande caminho na análise. É possível também se perguntar por onde passa o valor de troca nessa relação. Podemos até imaginar que é possível uma situação psicanalítica fora da sociedade de consumo e, oxalá, posterior ao capitalismo. Desmercantilizar o inconsciente.

Mas aparentemente os psicanalistas são pessoas com necessidades e têm todo o direito de continuarem vivos, bem alimentados e assim por diante. A quantidade possível de atendimentos não mediados pelo dinheiro cabe a cada analista saber. Não precisamos esgotar nossos esforços, nem sofrer, nem ceder nossa vida e, depois, nos ressentir disso. Aí estão as questões importantes para trabalhar em análise. Aliás, não deixa de ser interessante analisar também os motivos pelos quais alguém gostaria de viver do trabalho como psicanalista. A questão do dinheiro, do valor e da dependência, então, deve ser mantida permanentemente.

A escuta psicanalítica não é uma escuta moralista. Todas as pessoas podem ser escutadas sem julgamento. Essa é uma questão importante para que possamos escutar os sujeitos – e nós mesmos – lá onde a experiência humana é assustadora, contraditória, excessivamente violenta ou amorosa sem a pretensão de domesticação, correção, salvação, punição.

Da prática pública de psicanálise podem emergir pessoas interessadas em se tornar psicanalistas. Essa pode ser uma das grandes contribuições deste trabalho. Que cada vez mais pessoas oriundas da classe trabalhadora possam tomar a psicanálise para si e transformá-la. Isso também é a socialização da psicanálise, em busca de uma psicanálise popular.

A prática pública de psicanálise não está centralizada como organização voltada para si mesma, seu funcionamento é como um núcleo, a partir do qual se expande para outras direções.

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6 comentários para "Convite à prática pública de psicanálise"

  1. daniel guimarães disse:

    Que esse sonho possa ser minimamente realizado, Jeanne!

  2. daniel guimarães disse:

    Oi Beatrice, como tá? Posso falar de mim, que também não sou formado em psicologia e não tenho interesse em ser. Quando decidi, em análise, praticar a psicanálise do outro lado da poltrona, primeiro procurei a orientação de um psicanalista que respeitava e que já tinha vivido muitos e muitos anos na prática clínica. Ele me recomendou dois lugares que ofereciam cursos de psicanálise, tanto de introdução como de formação. Por coincidência fui descobrindo algumas amizades que também desejavam se tornar psicanalistas e criamos grupos de estudo. Então eu procurei o instituto, aqui em São Paulo, com que me identifiquei. Tão logo pude, comecei a atender sob supervisão de um analista já bastante experiente. Fui montando assim minha formação. Minha análise, estudo com colegas e em uma instituição, atendimento e supervisão. Talvez tu possa procurar alguma instituição. Talvez possa criar grupos de estudo e convidar algum psicanalista para coordenar esse processo. Está para ser criado um sistema de formação que seja acessível à população, tanto pela grana quanto pelo tempo. A questão da formação do psicanalista talvez seja o núcleo das grandes divergências que motivaram a criação de escolas de pensamento na psicanálise. Um livro introdutório muito bom que acompanha esse processo é o Cartas a uma jovem psicanalista, do Heitor de Macedo.

  3. daniel guimarães disse:

    Oi Renato, tudo bem? Acho que tu está certo, mas também acho que é preciso apostar na inteligência da população. Acho também que o melhor jeito da psicanálise se tornar popular é através do trabalho da psicanálise em contextos populares. O próprio trabalho nesses contextos vai criar o jeito de falar. Que acha?

  4. Beatrice disse:

    Daniel, achei muito pertinente seu texto! Como analisanda, qual seriam formas possíveis de começar a estudar a psicanálise, que não seja fazendo uma faculdade de psicologia antes?

  5. Jeanne Margaretha disse:

    Um sonho maravilhoso de sociedade verdadeiramente transformada. Um sopro de esperança! Que suas palavras tenham muito eco!

  6. Renato disse:

    Primeiramente quero destacar que concordo (e parabenizo pela exposição das ideias) com a prática e posicionamento da Psicanálise defendidos ao longo do texto porém preciso assinalar que o mesmo por vezes é deveras maçante. Se queremos que a Psicanálise, seus conceitos e práticas sejam objeto de auto-apropriação (individual e coletiva) emancipatória e revolucionária de subjetividades pela classe trabalhadora analisanda, modestamente sugiro que a abordagem seja um tanto mais concisa, numa linguagem acessível e objetiva (ao menos para um ou uns primeiros contatos).
    A meu ver esse é o mal da esquerda brasileira: enquanto que a direita brasileira se faz entender de forma mais direta e objetiva (e não digo que com isso deva se ter, permitir e/ou impulsionar o empobrecimento/esvaziamento de conceitos, teorias e estruturas de pensamento) a esquerda falha em alcançar o público que deseja influenciar e trazer para o debate justamente pela falta de um certo senso de prática de comunicação/linguagem mais acessível e inclusiva. Escreve-se e debate-se com e para a própria esquerda e seus adeptos e nichos, esquecendo-se que o público que ser quer alcançar não tem muitas vezes o arcabouço teórico para se inserir no debate e reflexões propostos.
    E essa também é uma crítica à própria Psicanálise que pelos mesmos motivos é vista infelizmente de forma bastante elitizada, e consequentemente é afastada pela imensa maioria da população de seu campo de conhecimento como uma possível ferramenta de reflexão sobre si e sobre o mundo que constrói.

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