Perdemos um pioneiro da utopia agroecológica

João Benko, que partiu aos 74 anos, foi criador da fazenda Jerivá e deixa legado de amor pela Terra. “Cientista camponês” demonstrou que é possível produzir alimentos com saúde, respeito à natureza e valorização de conhecimentos tradicionais

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Por Ivo Poletto

Sei que muitos cultivadores de alimentos agroecológicos partiram antes da hora, mas hoje quero destacar um deles: João Benko, que nos deixou ontem, em Goiânia, depois de um longo tempo de internação por pneumonia bacteriana. Pela sua história de amor à Terra, ao Cerrado de modo especial, e pela paixão com que buscou abrir caminhos para produzir alimentos sem produtos químicos e venenos, não tenho dúvida que ele se torna, no mundo dos Encantados e Encantadas, um padroeiro da agroecologia.

João, sua esposa Divina e os filhos assumiram a frase da fazenda para a sua mesa como atração verdadeira para a diversidade de produtos disponibilizados nos restaurantes Jerivá. Ouvi algumas pessoas colocando a afirmação em dúvida, com certeza vacinados contra as normais mentiras do marketing, mas quem teve oportunidade de conhecer a fazenda referida constatou a verdade da afirmação. Melhor ainda, o gosto dos alimentos revela sua origem e qualidade.

Em diversas oportunidades, nos muitos encontros que tivemos, sonhamos em contar em livro a rica história escondida nos produtos jerivá, os que vêm diretamente da roça e os que vêm da cozinha. Não conseguimos tempo para tornar real o sonho, e agora será mais difícil, porque muitos dos segredos se foram com João. No artigo de hoje vai um pouco do muito que deve ser contado.

De uma comunidade de jovens

O casal João e Divina veio da cidade de Uberlândia, Minas Gerais. Faziam parte de uma comunidade de jovens que desejavam fazer uma experiência de vida comunitária integral. Experiência abortada, como muitas outras, porque os que na época se identificavam e se valiam da ditadura militar levantaram suspeitas de que se tratava de uma célula perigosa de comunistas. Na crise e antes dela, a comunidade contou com o apoio humano e espiritual de Frei Mateus Rocha, e por isso, como ele estava iniciando uma fase nova de sua vida, morando e convivendo com camponeses numa pequena propriedade perto de Abadiânia, em Goiás, o casal aceitou o seu convite de viver com ele e participar da aventura de gerarem a renda necessária para sua vida através do trabalho camponês.

Antes de seguir, uma palavra sobre Frei Mateus. Mineiro, sua renúncia a um segundo período de superior da Congregação dos Dominicanos foi aceita pelo conselho para que pudesse assumir, com diversos educadores e educadoras de primeira linha, liderados por Darci Ribeiro, a construção da UnB com seu projeto de ser referência para a reforma universitária, proposta pelo movimento estudantil e apoiada por muitos educadores. De jeito simples, como bom mineiro do interior, Mateus, na verdade, dialogava como educador e como dominicano com as pessoas de referência reunidas para abrir novos caminhos de formação universitária a partir de sua capacidade e liderança. Pouco antes de ser perpetrado o golpe militar de 1964, como Darci Ribeiro assumiu o Ministério da Educação, Mateus o substituiu na reitoria da nascente UnB, e, uma vez destituído pela ditadura, permaneceu em Brasília para apoiar os que lutaram pela continuidade do projeto da universidade, e de modo especial para estar perto e apoiar os perseguidos pela ditadura.

Quando achou não ser mais tão necessário ficar em Brasília, propôs, e a Congregação aceitou, que fosse morar e viver entre camponeses de Abadiânia – e foi para ser parte de sua comunidade com os camponeses que ele convidou João e Divina.

Aprendendo com a teoria e a prática

João era engenheiro agrônomo, e Divina, a esposa, educadora. É na casa de Frei Mateus, e depois numa casa vizinha, que os dois vão tendo e criando seus filhos e, junto com Mateus, vão fazendo tentativas de produção camponesa para gerar alimentos e renda. Minha primeira lembrança foi a de ver, na beira da estrada entre Goiânia e Brasília, um quiosque em que eram oferecidas folhagens e depois, aos poucos, alguns produtos agrícolas. Soube depois que foi uma medida necessária porque o projeto de criação de suínos não prosperou como se esperava, e por isso, cresceu a necessidade de buscar alternativas.

Desse primeiro quiosque até chegar ao primeiro restaurante jerivá de beira de estrada, à compra da terra e à fazenda agroecológica, houve um longo e persistente caminho. João se sentiu desafiado a usar seus conhecimentos e, ao mesmo tempo, dar passos novos de pesquisa, experimentação e confirmação de práticas agroecológicas no Cerrado. Foi preciso conhecer melhor as características deste bioma, por um lado, e dar passos que confirmassem ser possível a produção agroecológica num espaço relativamente grande, numa fazenda. Mais ainda, ser possível relacionar criatório de animais com agricultura, evitando o uso de produtos químicos e venenos em toda a produção.

Foi preciso, como primeiro passo, recuperar o solo, revitalizando-o com apoio de cobertura vegetal e uso de minhocário e de adubo orgânico. Com o aumento da produção agrícola, utilizá-la para produzir os alimentos para a criação de frangos e galinhas poedeiras, bem como de suínos e vacas leiteiras. Nada de oferecer alimentos industrializados, sem condição de controlar sua qualidade. Para oferecer subprodutos do leite, carne de frango e de suínos sem produtos químicos de qualquer espécie, a condição foi gerar a capacidade de preparar seus alimentos com produtos agroecológicos.

Sempre foi com intensa curiosidade e alegria que escutava o amigo João contar o que ele considerava vitória, bem como os passos em falso que o ajudaram a elaborar novos conhecimentos e novas práticas. Sempre foi um cientista camponês: gostava de valorizar os conhecimentos tradicionais e, ao mesmo tempo, era aberto a novos conhecimentos. Foi assim, por exemplo, que ele incluiu a planta nim como uma poderosa e diversificada fonte natural de defensivos agrícolas e de cuidado dos animais. Em diferentes dosagens de extrato, passou a ser utilizado até para manter saudável a pele das vacas leiteiras. E foi assim também que ele assumiu a prática da coleta da água das chuvas em cisternas, e o fez trazendo do Nordeste construtores das cisternas caseiras promovidas pela Articulação do Semiárido brasileiro – ASA – como estratégia básica para a convivência com a Caatinga semiárida. Por fim, foi assim que ele acolheu a proposta de produzir energia com o uso do sol, diminuindo custos e a emissão de gases de efeito estufa.

O reconhecimento

Há pouco tempo, a fazenda jerivá, depois de visitada e avaliada minuciosamente por técnicos da Embrapa, foi escolhida como demonstração de que é possível uma produção agroecológica em escala relativamente grande, e foi visitada como oportunidade de formação teórica e prática por participantes de um encontro internacional.

De fato, vivemos num país em que só é valorizada a produção de commodities agrícolas, pecuárias e avícolas. Pesquisas públicas reconhecem que mais de 70% dos alimentos que chegam nas mesas dos brasileiros são produzidos pelas pequenas propriedades camponesas, mas quase todo o recurso destinado ao incentivo da produção é repassado às grandes propriedades do sistema do agronegócio. E mesmo existindo reconhecimento científico de que os produtos agroecológicos são garantia de saúde pública, é praticamente inexistente o apoio a essa forma de produção.

Com certeza para evitar que o crescimento da produção agroecológica signifique uma crítica teórica e prática do quanto é destrutiva dos biomas e da saúde das pessoas a produção química e envenenada do agronegócio, repete-se como um mantra – na verdade como um marketing difamador, uma fake news – que a produção agroecológica só é possível em pequenas ou micropropriedades, e que é cara. A existência da fazenda jerivá e de outras com tamanho parecido desmontam o mantra, provando que é possível a produção agroecológica em espaços e em quantidades maiores. E se a agroecologia fosse reconhecida como a produção de alimentos saudáveis para as pessoas e como a prática de melhor e mais cuidadosa relação com a Natureza – a Mãe Terra –, não há dúvida que estes alimentos teriam preços mais acessíveis. O que falta em nosso país não são conhecimentos em agroecologia nem práticas demonstrativas, e sim vontade política.

Invocação

Diante do foi apresentado, resta-nos concluir que os movimentos sociais que lutam em favor do reconhecimento da agroecologia têm, por causa da pandemia, mais padroeiros e padroeiras no mundo dos Encantados. São camponeses e camponesas que ajudarão de outras formas as pessoas a despertarem e se livrarem das mentiras do marketing do agronegócio e da grande mídia, a descobrirem que é melhor valorizar os alimentos verdadeiros, produzidos em diálogo amoroso com o solo dos biomas da Terra de forma agroecológica.

De minha parte, torno público meu reconhecimento de que João Benko, vítima da política necrófila que domina o Brasil e desmonta a Saúde pública, é um padroeiro de todas as pessoas e comunidades que cultivam alimentos com agroecologia.

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7 comentários para "Perdemos um pioneiro da utopia agroecológica"

  1. Considero que o titulo pode ser depreciativo como propaganda mais efetiva a agroecologia. Nao perdemos pela morte porque todas as pessoas grandes de atitudes, deixam legados sólidos. Sua vida material reciclou transcendeu!

  2. Adriano Picarelli disse:

    Que belas histórias, memórias…

    Entretecidas…

  3. josé mário ferraz disse:

    Já a papagaiada de microfone baba ovos do agribiuzinesse garante que bacana mesmo é comer veneno.

  4. josé mário ferraz disse:

    A papagaiada de microfone baba ovos do agribiuzine garante ser legal comer veneno.

  5. Porque Ivo Poletto afirmou: “João Benko, vítima da política necrófila que domina o Brasil e desmonta a Saúde pública” no excelente artigo da perda do pioneiro defensor da agroecologia? Atenciosamente

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