Crescem alertas sobre crise na saúde mental com pandemia
Mas há fatores estruturais: vulneráveis social e economicamente devem ser mais afetados.
Publicado 19/08/2020 às 08:30
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A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) alertou ontem para uma epidemia que, se já existia antes, pode estar pior e mais silenciosa desde que o novo coronavírus começou a se espalhar: a de distúrbios relacionados à saúde mental. Carissa Etienne, diretora-geral do organismo, não mencionou pesquisas específicas sobre as Américas, mas afirmou que há por aqui “uma crise de saúde mental como nunca vimos antes“. De acordo com ela, metade dos adultos dos Estados Unidos, Brasil e México estão sob estresse por conta da pandemia. “Muitos estão usando drogas e álcool, o que pode gerar um ciclo vicioso para as doenças mentais”, disse, ressaltando que se trata de uma ‘tempestade perfeita’: por um lado, necessidades crescentes de apoio e, por outro, recursos reduzidos para atendê-las.
Algumas pesquisas começam a medir o tamanho desse problema. Um trabalho divulgado ontem mostra que entre maio e julho dobraram os sinais de depressão entre estudantes de pós-graduação nos EUA, em comparação com o mesmo período do ano passado. Foram feitas entrevistas com mais de 15 mil estudantes a partir de questionários usados para rastrear sintomas de transtornos e ansiedade e depressão – 39% dos entrevistados mostraram sinais de ansiedade e 32% de depressão (contra 26% e 15% em 2019). Também relacionada a alunos de pós, um levantamento de menor escopo (1,4 mil entrevistas) da associação de estudantes da Universidade de Toronto apontou que 72% dos entrevistados disseram experimentar um agravamento da saúde mental nos últimos meses, e cerca de 75% afirmaram que a pandemia tem impedido “notavelmente” sua capacidade de conduzir pesquisas.
Evidentemente, o problema não se restringe à academia, tampouco às Américas. Na Grã-Bretanha, os sintomas de depressão entre adultos dobraram em comparação com o ano passado, conforme dados do Office for National Statistics publicados ontem. Fazem parte do levantamento 3,5 mil pessoas acompanhadas ao longo de um período de 12 meses; em junho deste ano, quase 20% delas preencheram critérios para depressão (com base em perguntas sobre alterações no sono ou apetite, perda de interesse e prazer em fazer as coisas e dificuldade de concentração, por exemplo), contra 10% em junho de 2019. Além disso, 13% das pessoas desenvolveram sintomas recentes de depressão “moderada a grave”.
Nenhuma dessas pesquisas trata de diagnósticos de depressão ou de qualquer outro distúrbio – as perguntas dos questionários são usadas em ambientes clínicos para triagem e identificação de quem possa precisar de apoio, mas não identificam claramente os transtornos mentais e, portanto, os resultados não podem ser usados para determinar a prevalência real desses problemas entre os participantes. Mas permitem comparar esses sinais entre os anos, detectando tendências.
No entanto, nem todo sinal indica a presença de um transtorno. “É importante evitar patologizar demais o que pode ser visto como uma resposta razoável à atual pandemia”, lembra Charley Baker, professor da Universidade de Nottingham, na BBC. Além disso, a pesquisa feita na Grã-Bretanha indica que os problemas podem estar ligados ao grau de proteção social que as pessoas têm durante a pandemia: jovens, mulheres, pessoas com deficiência e aqueles com menor segurança financeira foram os que mais tiveram sintomas de depressão.
Daí que, para alguns especialistas, a crise de saúde mental não poderia ser manejada apenas com apoio para diagnóstico, tratamento e acompanhamento – além disso, os Estados precisariam investir em direitos como moradia, alimentação e renda básica universal. A ideia, exposta numa carta aberta publicada na Wellcome Open Research, é resumida no Mad in Brasil por Ayurdhi Dhar, professora de psicologia na Universidade de West Georgia: “As circunstâncias difíceis e as consequências socioeconômicas da covid-19 levam ao sofrimento normal, que não é patológico em si mesmo, mas que pode se transformar em problemas de saúde mental no longo prazo se as estruturas formais e informais de apoio social não forem protegidas e melhoradas (…). Sem abordar os determinantes sociais da saúde mental, todas as tentativas de fornecer apoio psicológico especializado (neurológico, psiquiátrico, farmacológico, genético, psicológico, etc.) são mal orientadas”, diz ela. E mais: “Os trabalhadores da saúde devem ser treinados para pensar criticamente e abordar a importância dos fatores estruturais que influenciam a saúde mental das pessoas. Estas perspectivas alternativas que se concentram nas preocupações materiais e práticas são um desafio para o paradigma dominante na psiquiatria, o paradigma biomédico de doença”.