“Irmão” Gaddafi, você acabou

“Todo o mundo árabe é agora a Tunísia”, sintetiza lapidarmente o colunista Pepe Escobar, do Asia Times Online.

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Por Pepe Escobar, do Asia Times Online | Tradução: Coletivo VilaVudu

O jogo não termina antes que acabe, mas você vê que chegou a hora do pega[1], quando um ditador bombardeia com aviões o próprio povo desarmado, civil, e ataca áreas da própria capital do próprio país. É ponte longe demais[2] até para os insuperavelmente alucinados padrões de ditadores apoiados pelo ocidente no mundo árabe.

Vê-se logo que a festa (macabra) pode ter acabado, quando Sheikh Yousef al-Qaradawi, uma das autoridades sunitas mais populares em todo o planeta, e não só porque mantém um programa de televisão na rede al-Jazeera, lança uma sentença de morte, uma fatwa ‘ao vivo’ – “Lanço aqui uma fatwa: [Muammar] Gaddafi deve ser morto. É dever de qualquer soldado, de qualquer homem que possa puxar o gatilho, fazê-lo e matar Gaddafi”. Dito o quê, reza ao vivo, pela rede al-Jazeera, pedindo a Deus o fim do ditador líbio (“‘Senhor, salvai os líbios desse faraó”. E ao terminar, o âncora da al-Jazeera diz “Amém”).

Você sabe que os sinos dobraram, quando sua “Brigada Abu Omar”, responsável por proteger você mantém-se perfeitamente alucinada como sempre, mas todos os seus embaixadores, pelo mundo, demitem-se em massa; até seu embaixador na ONU, Ibrahim Omar al-Dabashi, declara que o próprio governo que ele representa está cometendo genocídio; quando seus pilotos recusam-se a bombardear as próprias cidades; quando seus oficiais militares ordenam que todos os membros do exército dirijam-se à capital para depor… você; quando uma coalizão de líderes islâmicos dizem que é dever de todos os muçulmanos rebelarem-se contra você, porque você está cometendo “crimes de sangue contra a humanidade”; e quando, para depor você, a população está convocando uma “marcha de um milhão”, pelo modelo egípcio.

E quanto aos Falcões Malteses? Num dia de atividade vulcânica, nada superou a deserção espetacular de dois coronéis da Força Aérea Líbia, que voaram com seus Mirages para Malta. Recusaram-se a atacar os manifestantes em Benghazi. Disseram às autoridades de Malta que chegaram muito perto de fazer o que os mandaram fazer, tão perto, que viam a multidão nas calçadas. E entregaram informação secreta (dita “classificada”) sobre o que os militares líbios estavam fazendo.

E tudo isso, só num dia – na 2ª-feira.

Não bastou empregar “negros africanos” mercenários e dar-lhes ordem para matar em Benghazi. Já no domingo, Sheikh Faraj al-Zuway, líder da tribo al-Zuwayya, crucialmente importante no leste da Líbia, ameaçara interromper todas as exportações de petróleo para o ocidente em 24 horas, a menos que tivesse fim a “opressão dos manifestantes” (palavras dele) em Benghazi.

Akram Al-Warfalli, um dos líderes da tribo al-Warfalla, das maiores da Líbia, ao sul de Trípoli, disse a al-Jazeera que Gaddafi “já não é irmão. Deve deixar o país”. Os 500 mil poderosos berberes, tuaregues do deserto do sul, também estão contra Gaddafi. Quando quatro das suas principais tribos – espinha dorsal do seu sistema – estão marchando sobre Trípoli para livrar-se de você… melhor abrir o olho.

A história talvez eventualmente registre o modo como a inacreditável história de 41 anos de governo Gaddafi na Líbia (ele já estava no poder quando Richard “Dick, o Escamoso” Nixon era presidente dos EUA) acabou em apenas 24 horas. Correrá sangue – muito sangue; mas “o Irmão” está a um passo do fim.

“Rios de sangue correrão pela Líbia”

O começo do fim, foi negócio de ditador árabe clássico: Saif al-Islam al-Gaddafi, com cara de leão-de-chácara tamanho gigante, em terno e gravata, foi à televisão estatal da Líbia no domingo à noite, em lugar do pai, e fez discurso de ameaça/repelente/patético, que só enfureceu ainda mais as massas líbias, depois de seis dias de protestos na histórica região de Cyrenaica.

Depois de ameaçar “erradicar os bolsões de sedição” (ecos dos iranianos erradicando protestos semana passada) o filho “modernizante” de Gaddafi disse que os líbios arriscavam-se a acender uma guerra civil, na qual toda a riqueza do petróleo líbio “arderia”.

Em 2009, Said recebeu título de PhD da London School of Economics (LSE), com tese intitulada “O Papel da Sociedade Civil na Democratização das Instituições da Governança Global: do ‘Soft Power’ a Tomada Coletiva de Decisões”. Ano passado, fez uma conferência sobre o tema na LSE (podem ouvi-lo apresentado por alguém que diz que o conhece bem, há muito tempo, e o admira, em nome da LSE e calorosamente aplaudido por seus pares, em http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MB23Ak01.html.)

Não é maravilhoso? Os mais sanguinários ditadores do mundo mandam a prole estudar nas melhores escolas do mundo, nas quais eles afagam a má consciência do Ocidente, enquanto, em casa, abertamente ameaçam seu próprio povo e engatilham a metralhadora, as armas automáticas, a mais pesada artilharia aérea contra compatriotas desarmados?

Não se sabe se Saif aprendeu na London School of Economics a iniciar guerras civis só com alguns parágrafos de televisão. Mas não há dúvidas de que foi o que ele fez.

O escritor líbio Faouzi Abdelhamid – comparando o nome Saif al-Islam (“espada do Islã”) com Saif al-I’dam (“espada de execução”) saiu-se de espada desembainhada, chamando toda a clã Gaddafi de criminosos e ladrões: “Vocês nem têm o direito de viver entre nós, cidadãos comuns, porque vocês são culpados de crimes de alta traição”.

Enquanto Saif grunhia suas ameaças, a cidade oriental de Benghazi já estava sob controle dos manifestantes. Depois, na segunda-feira, foi Trípoli. Com o regime bloqueando todas as linhas de telefone, na segunda-feira as notícias só chegavam por raros, frenéticos tuítes, relatando os boatos mais terríveis e fatos – e sempre, ao fundo, ouviam-se tiros. Choviam balas sobre a multidão, de helicópteros que voavam baixo sobre as ruas. Jatos atiravam. Atiradores atiravam de cima dos prédios.

Escolas, prédios do governo e praticamente todo o comércio em Trípoli estavam fechados, com “Comitês Revolucionários” armados – leões-de-chácara do regime – patrulhando as ruas e caçando manifestantes na cidade velha de Trípoli. Segundo Salem Gnan, porta-voz baseado em Londres, da Frente Nacional de Salvação da Líbia, 80 manifestantes podem ter sido mortos quando os manifestantes cercaram a casa de Gaddafi e foram recebidos a bala, de soldados que atiravam de dentro do complexo.

A Sala do Povo – onde o parlamento reúne-se em sessão em Trípoli – foi incendiada e todas as cidades do sul do Líbano estavam sendo progressivamente “liberadas”, conforme a al-Jazeera conseguiu saber, seguindo a frequência de seu satélite Arabsat até um prédio da inteligência líbia no sul da capital.

Ahmed Elgazir, pesquisador de direitos humanos  que trabalha no Libyan News Center (LNC) em Genebra, contou depois a al-Jazeera que recebeu um pedido de socorro de uma mulher que estava assistindo a um massacre, e que teve acesso a um telefone por satélite. Testemunhas oculares relataram à Agence France-Presse outro massacre nos distritos de Fashloum e Tajoura em Trípoli. Tarde da noite da 2ª-feira, a conta dos mortos(não confirmada) só em Trípoli, chegava, no mínimo, a 250.

Entre os líbios, toda a informação só circulavam pelo boca a boca. Mas chegaram tuítes às redes al-Jazeera e BBC, que falavam da indignação profunda pelo ensurdecedor silêncio da “comunidade internacional” (“Só se lembram que existimos, quando o assunto é petróleo e terrorismo?”).

Rodada de condenações petrolizadas

A dita “comunidade internacional”. Só começou a falar da Líbia quando o jornal líbio Quryna noticiou que havia protestos em Ras Lanuf, ao norte, cuja refinaria processa 220 mil barris/dia.

Sim, exceto pelos trajes de Gaddafi, a mídia ocidental toma conhecimento da existência da Líbia também porque o país exporta 1,7 milhões de barris de óleo por dia. O PIB nacional é de 77 bilhões de dólares – 62º lugar no ranking mundial, o que implica renda per capita teórica de mais de 12 mil dólares ano, superior, por exemplo, a renda per capita do Brasil, um dos BRICs. Mas a desigualdade profunda é regra: mais de 35% dos líbios vivem abaixo da linha da miséria, com desemprego que alcança insustentáveis 30%. A riqueza do petróleo fica toda na Tripolitania. A Líbia Oriental – a Cyrenaica –, onde começou a revolução anti-Gaddafi, é miseravelmente pobre.

No front da altas apostas, a LIA (Libyan Investment Authority) – proprietária também de um hedge fund sediado em Londres – investiu mais de 70 bilhões de dólares e todo o mundo. É principal acionista, por exemplo, do Financial Times, da Fiat de um dos principais times italianos de futebol, o Juventus [o qual, para o Prof. C., em msg de e-mail, “nem consegue jogar direito, apesar disso” (NTs)]. A LIA investe – e planeja investir – bilhões na Grã-Bretanha.

Seguem os ministros do Exterior da União Europeia, com a condenação branda, burocrática, a de sempre. Na rabeira da fila, o primeiro-ministro italiano, louco por “bunga bunga” e amigo íntimo de Gaddafi, que dissera antes que não gostaria de “perturbar” o amigo, acabou tendo de declarar que o massacre de civis lhe parecia “inaceitável” e que estava “alarmado”. Em http://tv.repubblica.it/copertina/quando-berlusconi-bacio-la-mano-a-gheddafi/62547?video=&ref=HREA-1, vê-se Berlusconi literalmente beijando as mãos de Gaddafi. Nada menos que 32% do petróleo da Líbia é exportado para a Itália.

E há outro clássico – o ensurdecedor silêncio de Washington. A secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton lançou a condenação branda padrão. Naeem Gheriany, cientista líbio-norte-americano e ativista disse ao Institute for Public Accuracy que o governo Barack Obama, “que se disse consternado com a situação – de fato não condenou a Líbia, apesar da situação terrível. Pessoas estão sendo massacradas às centenas, Gaddafi está usando armamento aéreo para atacar multidões desarmadas. Em alguns dias, mais gente pode ter sido morta na Líbia, que em semanas, no Irã, Tunísia, Bahrain, Iêmen e até no Egito (cuja população é muito maior)… Só o petróleo explica esse silêncio.”

Para não lembrar que Washington e Gaddafi foram os mais solidários camaradas na “guerra ao terror”. Ibn al-Sheikh al-Libi, militante da al-Qaeda capturado – objeto de uma ordem de “tutela especial” para ser entregue ao ex-presidente Hosni Mubarak do Egito e ao seu “Sheikh al-Tortura” Omar Suleiman, que o torturou até conseguir que confessasse que havia conexão (que jamais houve) entre Saddam e a al-Qaeda no assunto “armas de destruição em massa” que o então secretário de Estado Colin Powell usou como “informação relevante de inteligência” no discurso à ONU em fevereiro de 2003 – foi depois localizado na Líbia pela organização Human Rights Watch, pouco antes de morrer por divulgado “suicídio”.

Uma villa em Milão, ou para Haia?

Ashour Shamis, escritor líbio de oposição, observou que “para Gaddafi é matar ou morrer”. A família disse ao jornal saudita al-Sharq al-Awsat que “todos morreremos na Líbia”. Gaddafi tem prole odiada.

O filho Khamis – comandante de uma unidade das forças especiais de elite, treinadas na Rússia – é a mente que está por trás da repressão em Benghazi. O filho Saadi também está lá, com o chefe da inteligência militar, Abdullah al-Senussi.

O filho Muatassim é o conselheiro de Gaddafi para a segurança nacional e, até agora, possível sucessor. Em 2009, organizou suas próprias forças especiais, para minar o poder de Khamis.

O filho Saif, o “modernizador”, pós-graduado na London School of Economics, não é bem visto pela velha guarda e pelos temidos “Comitês Revolucionários”.

O filho Saadi não passa de brutamonte, que gosta de armar brigas em clubes noturnos na Europa. Nisso, é igual ao filho Hannibal.

Tudo parece filme de gângsteres, dos que pingam sangue. O que dizer da bizarra aparição de Gaddafi, 20 segundo na TV estatal, cedo, na 3ª-feira (“Estou em Trípoli, não na Venezuela”), segurando um guarda-chuva, sentado dentro de uma microvan bege, e com gorro de inverno com orelhas penduradas, sem saber para onde ir? (Afinal de contas, apoiou seus camaradas Zine el-Abidine Ben Ali da Tunísia e Mubarak do Egito, até o último momento!). Definiu os canais de televisão – al-Jazeera, dentre outros – como “cães” (nos anos 1980s, já usara porretes para assassinar “cães vadios” exilados, que desafiaram sua revolução).

Com tudo isso, não se pode subestimar Gaddafi. Controla todo o hardware – a defesa, a segurança, os assuntos externos. Além de todos os mercenários/exterminadores “africanos negros” pagos em ouro. O iemenita Ali Abdullah Saleh disse que o Iêmen não é o Egito nem a Tunísia. Gaddafi disse que a Líbia não é o Egito ou a Tunísia. Mubarak disse que o Egito não é a Tunísia.

Todos erraram. Todo o mundo árabe é agora a Tunísia. As massas líbias odeiam “seu” líder. Até outros ditadores árabes – exceto a Casa de Saud – odeiam Gaddafi. Tem poucas opções de exílio. Hugo Chávez da Venezuela talvez seja louco o bastante para oferecer-lhe asilo e detonar, para sempre, sua credibilidade como “campeão dos pobres”.

Ora, sempre há Berlusconi. Uma villa agradável perto de Milão, grande pasta, e poderá armar sua tenda beduína em jardins luxuriantes. E se Berlusconi for mandado para a cadeia, no julgamento do caso “Rubygate” em abril, Gaddafi poderá até mudar-se para a casa principal.

Mas depois que usa aviões para bombardear seus próprios cidadãos, e contrata mercenários para matá-los, o caminho é um só: a Corte Criminal Internacional em Haia.

NOTAS

[1] No orig. “You know the fat lady is about to sing”. É expressão intraduzível, que reúne e supersintetiza vários campos semânticos confluentes. Aí, os tradutores tentaram dar jeito na coisa. Há outras vias. Só a luta ensina [NTs].

[2] No orig. “It’s a bridge too far”. É título de filme de 1977 (detalhes em http://www.imdb.com/title/tt0075784/). A expressão, aí, faz referência a plano audacioso demais, que beira a loucura [NTs].

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