América Latina mobiliza-se contra feminicídios

Começam em toda região — com força especial na Argentina — mobilizações de rua e ações culturais para enfrentar violência que vitima mulheres. Brasil participará?

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Por María Lekant, no RT | Tradução: Inês Castilho

Nada meno de 88 mulheres assassinadas por seus maridos ou pares na Colômbia; 83 no Peru, 71 na República Dominicana, 46 em El Salvador, 25 no Uruguai, 20 no Paraguai e 17 na Guatemala. Estas são só algumas das arrepiantes cifras apresentadas num informe da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) sobre o feminicídio em 2014, que demonstram quão distante se está de resolver o problema da violência de gênero na América Latina.

Em 3 de junho, milhares de cidadãos de várias cidades da região saíram às ruas para exigir o fim da violência contra a mulheres. Contudo, apesar das medidas que tomam os governos, apesar dos esforços dos defensores dos direitos humanos, apesar da crescente condenação da sociedade, parece que a batalha contra este flagelo social ainda está longe de acabar.

Argentina: “Ni una menos”

A manifestação principal e a mais ampla foi celebrada na Argentina, país onde, segundo organizações de direitos humanos, uma mulher morre a cada 30 horas por violência machista. Diante das portas do Congresso, na capital, reuniram-se dezenas de milhares de pessoas de todas as idades, mulheres e homens, representantes do oficialismo e da oposição. O protesto foi celebrado também em outras oitenta cidades da Argentina.

Com lágrimas de sangue pintadas nos rostos, cartazes, banners e camisetas com a legenda “Basta de feminicídios” e “Nem uma menos”, milhares de cidadãos do país latino-americano exigiram acabar com a violência de gênero. “Não queremos mais mulheres mortas por feminicídio. Queremos-nas vivas. Todas. Nem uma menos”, concluiu o ator Juan Minujín ao ler o manifesto da mobilização diante do Parlamento argentino.

Entre as principais demandas das manifestantes está a aplicação efetiva da Lei de Proteção Integral para Prevenir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, sancionada há mais de cinco anos, geração de dados oficiais sobe violência machista, criação de centros de refúgio para as vítimas e o acompanhamento dos agressores para que não violem as restrições de aproximação, assim como a inclusão da temática da violência machista nos conteúdos educativos de todos os níveis e da prevenção de namoros violentos.

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Gota d’água

Na semana anterior, haviam sido divulgados dois novos casos de feminicídio na Argentina: o assassinato de uma mulher de 53 anos e o de uma jovem de 22 anos. No caso desta última, seu par lhe atirou álcool e tocou fogo durante uma discussão. Contudo, a gota que entornou o caldo foi o caso de uma menina de 14 anos grávida assassinada no início de maio pelas mãos de seu namorado-noivo de 16, o qual a enterrou no seu jardim.

Chiara Páez desapareceu na madrugada de 10 de maio num local da província de Santa Fé. Depois de dias de busca, o assassino presumido confessou o crime a seu pai, agente da polícia, que o deteve e o colocou à disposição da justiça, segundo informa Notimerica.com. A autópsia confirmou que a jovem estava grávida de pouco tempo. Investigam-se também familiares do suspeito, que podem ter sido cúmplices no ocultamento do crime.

O caso de Chiara, que indignou a sociedade argentina, é um entre muitos. As informações recentes de organismos como a ONU, a Organização Mundial de Saúde e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) alertaram sobre o pico de violência contra as mulheres na região apesar de todas as medidas legais que estão sendo tomadas.

Cultura devastadora do feminino

Na véspera da manifestação, a presidente argentina, Cristina Fernández de Kirchner, somou-se à onda de indignação denunciando, através de sua conta no Twitter, que “estamos diante de uma cultura devastadora o feminino”. “Amanhã, milhares de mulheres marcharão sob a bandeira #niunmenos contra a violência de gênero”, destacou a mandatária em um dos tuites.

Conforme assinalou, ainda que a violência de gênero “encontre sua expressão máxima na agressão corporal, na agressão e na morte”, há “outras violências prévias, anteriores, que vão criando silenciosamente as condições do golpe final”, a partir de coisas cotidianas como a cantada-o fiu-fiu, o que pode ser “rude, vil, baixo”, até outros “mais sutis, como olhares e até mesmo rating“. “A mulher é convertida em objeto: E se então é apenas uma coisa, sempre haverá alguém que pense que pode destruí-la se não a possui”, denunciou a presidenta. Além disso, criticou o tratamento deste problema na mídia: “Quantas vezes você leu em letras impressas, ao descrever o assassinato de uma jovem, que roupa usava, ou se gostava de ir a boates?”, escreveu.

“Melhor nem falar de alguns juízes: apenas seis meses de condenação para um homem que moeu a mulher de pancada na rua”, agregou a chefa de Estado. Contudo, enfatizou que “não é apenas um problema judicial ou policial”. “Estamos diante de uma cultura devastadora do feminino”, concluiu.

Uruguai: “Se mexem com uma, mexem com todas!”

“Se mexem com uma, mexem com todas!” Sob este lema, o Uruguai marchou na mesma quarta-feira contra a violência de gênero. Mais de 5 mil pessoas ocuparam a principal avenida de Montevideu, além de manifestações em outras dez cidades uruguaias.

“Senhor, senhora, não seja indiferente / matam-se mulheres na cara da gente”, denunciaram os manifestantes, tanto mulheres como homens ou famílias inteiras com crianças. A mobilização somou cerca de 15 chamadas-convocatórias que foram feitas em Montevidéu do inicio do ano até agora, e coincidiu com a marcha na Argentina.

“Como nós já vínhamos com essa proposta, nos pareceu importante aproveitar a data para mostrar que é um problema que transcende as fronteiras, não é um problema de cada país, é um problema social”, explicou à agência Efe Yanina Azzolina, representante do movimento Coordenação de Feminismos do Uruguai.

Essa organização, que reúne feministas e instituições que lutam pelos direitos das mulheres, nasceu ano passado com um objetivo bem definido: mobilizar-se cada vez que se confirme o feminicídio, a morte de uma mulher por violência de gênero. “O primeiro dado [a morte da mulher] é tirado da imprensa e tratamos de confirmar com as fontes que temos se se trata de um feminicídio. Uma vez confirmado, lançamos o alerta e saímos às ruas 48 horas depois”, detalhou Azzolina.

E assim, de acordo com um comunicado não oficial que o movimento publicou na semana passada, 18 mulheres foram assassinadas vítimas da violência machista nos cinco primeiros meses do ano no Uruguai. Contudo, conforme denunciou Azzolina, desde então se registraram dois novos casos.

Em outros países

A mobilização cidadã contra a violência de gênero se estendeu a outros países latino-americanos como Chile, México ou Brasil, que também convocaram manifestações para denunciar esses crimes, exigir mais medidas de proteção para as mulheres e combater a desinformação midiática e a apatia social com relação ao fenômeno macabro.

No Chile, uma centena de pessoas se reuniu diante do Palacio de La Moneda, sede do Executivo, para protestar contra o feminicídio sob o lema “nem uma mulher menos, nem uma morta mais”.

Os manifestantes expressaram sua condenação à violência machista com gritos como “Basta de violência contra as mulheres” ou “Podia ser tua mãe, podia ser tua filha, a que está espancada, violada e ferida”.

“A indiferença, a apatia, a indolência da sociedade, da mídia e do Estado chileno refletem a subvalorização e menosprezo da vida das mulheres”, explicou a Rede Chilena contra a Violência às Mulheres, citada por El Ciudadano, que denuncia terem sido assassinadas por seus maridos, nos últimos 10 dias no Chile, cinco mulheres – uma jovem por seu companheiro, duas meninas por seu pai e uma idosa por seu sobrinho. Soledad Rojas, representante da organização, explicou à imprensa que a marcha não estava orientada a fazer demandas legislativas, mas para “sensibilizar a população”.

Tarefa de todos

“Erradicar o machismo é uma tarefa que todos devemos assumir”, afirmaram por sua vez as Juventudes Comunistas do Chile por meio do Twitter. A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, também condenou terminantemente esse tipo de crime, afirmando que “toda a sociedade é agredida quando se ataca uma mulher”. “Tolerância zero contra as agressões às mulheres”, declarou a mandatária depois da inauguração de um centro especializado na atenção às vítimas da violência machista em Brasília.

A presidente brasileira convocou a “todos e todas” a “denunciar sepre” cada caso de violência de gênero. Assinalou igualmente que, segundo os dados oficiais, entre 2009 e 2011 quinze mulheres foram assassinadas por dia no Brasil, e reconheceu que em 2014 foram recebidas 114 denuncias diárias de violência machista, apesar dos esforços do governo para acabar com esses crimes.

A luta é reforçada

À parte das mobilizações, a luta contra a violência machista se reforça na América Latina com a aprovação de leis mais duras em crimes como o feminicídio, os abuso sexual, o maus tratos e inclusive o assédio de rua.

Assim, para enfrentar o problema o Parlamento da Colômbia aprovou feminicidio esta semana uma lei que penaliza com penas de até 50 anos de prisão quem comete um feminicídio. A nova lei, conhecida como ‘Lei Rosa Elvira Cely’ em homenagem póstuma a uma vítima de violência de gênero, obteve aprovação no plenário por 104 votos a favor e 3 contra, e agora só falta a assinatura do presidente Juan Manuel Santos para entrar em vigor.

Além de reconhecer o feminicídio como crime, castiga as agressões psicológicas, físicas, sexuais a que são submetidas milhares de mulheres no país, conforme disse por meio de um comunicado a parlamentar Lucy Contento Sanz citada pela Efe. Segundo o diário El Tiempo, o novo regulamento prevê penalizar o feminicídio com penas que vão de 20 a 50 anos de prisão e não contempla o direito de redução de penas.

O governo do Uruguai, por sua vez, está preparando um projeto de lei para tipificar como crime o feminicídio. Segundo o Instituto Nacional de Mulheres (Inmujeres) do Uruguai, organismo do Ministério de Desenvolvimento Social, a idéia é apresentar o projeto de lei no marco do Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher, dia 25 de novembro, ou do próximo Dia Internacinal da Mulher, 8 de março.

No Brasil, foi sancionada em março a lei que tipifica o feminicídio como ‘crime hediondo’, endurece as penas, que vão de 12 a 30 anos, e impede que os acusados sejam liberados sob fiança.

Quanto à Argentina, em 2009 Buenos Aires sancionou uma lei sobre proteção integral para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres nos âmbitos em que se desenvolvem suas relações interpessoais. Uma lei que consagra uma série de direitos que protegem a mulher contra a violência de gênero. Em 2012 a pena por feminicídio foi agravada no país com pena de condenação perpétua. Contudo, os números mostram que apenas a sanção de uma lei cheia de direitos e reconhecimento não elimina esse flagelo social.

“Não se elimina com a legislação nem com a penalização, mas há que enfrentar uma mudança cultural e endereçar a educação”, assinalou à agência AFP Gabriela Alegre, deputada da Cidade de Buenos Aires, ao aplaudir as leis vigentes.

 

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