⏯️ Para pensar o pós-pesadelo: Reforma Tributária

Paulo Gil Introini abre os Diálogos por Outro Brasil. Ele mostra: país precisa de um choque de serviços públicos e direitos sociais. Isso exige vasta redistribuição de renda e riquezas. Há caminho para fazê-la por meio de impostos justos

Cortar. Contrair. Ajustar. Economizar. Conter. Controlar. Reduzir. Desde 2015, o imaginário político brasileiro é dominado por termos que expressam o que Marx chamou certa vez de as “águas gélidas do cálculo econômico”. Num país onde cinco bilionários reúnem tanta riqueza quanto 100 milhões de empobrecidos, os serviços públicos – que poderiam assegurar vida digna às maiorias – são atacados, sem descanso, por governo, máfias políticas, poder econômico e mídia. Estes grupos querem bloquear a emergência do Comum, por intuírem que expressa uma lógica civilizatória muito mais humanizadora e refinada que a sua – baseada em desigualdades, exploração e privilégios. Congelaram o gasto público, por vinte anos. Atacam o SUS, em múltiplas frentes. Reduziram as aposentadorias e pensões, que amenizam a desigualdade e sustentam a atividade produtiva em milhares de cidades. Atacam a Educação e a Ciência. Esta cantilena não tem, até o momento, oposição. A esquerda institucional parece ter desistido do confronto de projetos. Preocupa-se, sobretudo, com seus interesses particulares.

Uma iniciativa lançada no início deste ano – mas muito pouco divulgada, até o momento – pode contribuir para furar este bloqueio. Um conjunto de pensadores e ativistas, articulado pela Plataforma Política Social apresentou uma proposta de Reforma Tributária Solidária. O projeto opõe-se frontalmente à “reforma” que Bolsonaro, Paulo Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tentam aprovar no Congresso. O trio quer destroçar o que resta de Estado Social, para isentar ainda mais de impostos os muito ricos e as grandes corporações. A Reforma Solidária tem sentido oposto, e por isso luta contra silêncios poderosos. É impulsionada por gente como o economista Paulo Gil Introini. Auditor da Receita, ex-presidente (entre 1998 e 2002) da Unafisco, o sindicato nacional da categoria, e membro do Instituto de Justiça Fiscal, ele foi um dos coordenadores da equipe que costurou o projeto. Sua entrevista, em vídeo, inaugura a série Diálogos por Outro Brasil, que Outras Palavras desenvolverá em 2020. Três hipóteses centrais organizam sua fala.

Primeira: A Reforma necessária é a da Igualdade e do Comum

Os sistemas tributários, gosta de frisar Noam Chomsky, expressam o grau de justiça social em cada sociedade e os esforços dos diversos grupos sociais para ampliar ou restringir a igualdade. É sintomático que as propostas de “reforma” tributária tramadas pelos conservadores sejam debatidas com plateias restritas, em seminários discretos. Seus motes são o Estado mínimo e a “simplicidade” fiscal. Sob estes pretextos, elas procuram desonerar as empresas (em especial da contribuição previdenciária) e transferir mais impostos para o conjunto da população – que não poderá arcar com eles. Se adotadas, estas mudanças provocarão o desmonte acelerado da Seguridade e a redução drástica do gasto social. Por isso, não há debate público a respeito.

O Brasil precisa de uma Reforma Tributária de sentido oposto. Seu objetivo é dotar o Estado de condições financeiras para promover um grande choque de serviços públicos e de direitos sociais. A realização do projeto original do SUS. A escola pública inovadora e de excelência. A transformação urbanística das periferias. As cidades dotadas de transporte fácil e livres da ditadura do automóvel. A reconstrução de uma rede ferroviária. O estímulo à produção científica e tecnológica. A Renda da Cidadania.

Há vasto espaço fiscal para isso, porque o grande poder econômico e os privilegiados não contribuem com o Estado de acordo com sua possibilidade. Os impostos sobre a renda e o patrimônio – exatamente os que incidem sobre os mais ricos – podem ser elevados, porque suas alíquotas estão muito abaixo mesmo das existentes no grupo de países capitalista que compõem a OCDE. As finanças, para onde migrou a grande riqueza no capitalismo pós-moderno, quase não são tributadas. Atividades econômicas privilegiadas pelas condições de território e subsolo do país – a produção agrícola e mineral, por exemplo, são sub-tributadas. A propriedade agrícola, ainda mais concentrada que a renda e a riqueza gerais, paga imposto simbólico.

No debate com a opinião pública, o primeiro esforço, portanto, é superar a armadilha do discurso técnico. Só será possível vencer as propostas do governo, da maioria conservadora do Congresso e do poder econômico colocando claramente em choque dois projetos. Diante da contrarreforma “simplificadora”, é preciso propor a Reforma Solidária, afinada com a Igualdade e o Comum.

Segunda: Os impostos são instrumentos essenciais de Justiça Social

Ao menos desde a Constituição de 1988, os conservadores e o poder econômico sustentam o mito segundo o qual a carga tributária brasileira é “a mais alta do mundo”. É uma falsidade absoluta. A arrecadação do Estado brasileiro equivale a 32% do PIB. A média, na OCDE, é 34% – e sobe para quase 40%, se excluídos países de tributação baixa, como o Chile e o México.

Além de seu caráter arrecadador, os tributos têm o papel de redutores da desigualdade. Eles podem ser orientados pela busca da Justiça Social, algo de que os mecanismos “de mercado” são totalmente incapazes. Se o fizerem, evitam que certos setores sociais tornem-se capazes de tornar inacessíveis bens essenciais a uma vida digna. Um exemplo é a especulação imobiliária. O enorme apetite do grande capital financeiro pelo investimento em terra e propriedade urbana inflaciona o preço dos imóveis e o dos aluguéis, a ponto de torná-los insuportáveis. Impostos urbanos adequados podem inibir com eficácia esta tendência. Os tributos podem ter também caráter ambiental, ao dissuadirem ou moderarem ações contaminantes, como o uso de automóveis ou a extração de minérios.

Por tudo isso, um esforço estratégico, neste tema que ocupará o centro do debate político em 2020 é desdemonizar os tributos, desfazendo uma mistificação interesseira promovida há anos.

Terceira: Há amplo conhecimento técnico para as mudanças

A entrevista de Paulo Gil Introini e a leitura do documento Reforma Tributária Solidária revelam o quanto avançou a formulação concreta de alternativas para um novo sistema de tributos no Brasil. Eles não se limitam a produzir princípios vagos: avançam para o terreno das mudanças políticas necessárias. Tome alguns exemplos. Para tornar o sistema fiscal mais justo, o documento sugere a redução do peso do ICMS – anormalmente alto no Brasil. Os autores lembram que este tributo, por seu caráter indireto, é incapaz de discriminar segundo a capacidade contributiva. Um bilionário paga, sobre a tarifa do celular, a passagem de avião ou a compra de uma geladeira, a mesma alíquota que um assalariado. E a carga dos mais pobres é, proporcionalmente, maior – já que eles consomem (e portanto são tributados) sobre tudo o que ganham, enquanto os endinheirados refugiam-se nas aplicações financeiras.

Mas a Reforma Tributária Solidária lembra que o ICMS sustenta hoje as finanças dos Estados. Por isso, não se limita à crítica; sai em busca da alternativa. Nesse caso, sugere um imposto sobre o Patrimônio, capaz de gerar idênticos recursos, recaindo porém sobre os mais ricos. Algo semelhante ocorre com o Cofins e o PIS. Embora pagos pelas empresas, são facilmente transferidos aos consumidores, e por isso assumem caráter injusto. É preciso reduzi-los, propõe o documento. Porém, lembra que eles ajudam a sustentar a Seguridade. Por isso, propõe substituí-los por uma Contribuição sobre as rendas mais altas e sobre as atividades que produzem danos ao ambiente.

Vasto, porém muito bem redigido e por isso atraente, Reforma Tributária Solidária é um documento indispensável para as lutas políticas que se aproximam. Na fala de Paulo Gil para Outras Palavras, você terá uma excelente síntese e um guida de leitura de enorme utilidade.

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