A precarização já chega aos goleiros de aluguel

Em sinal singelo de como as plataformas tornam-se ubíquas, uma delas propõe terceirizar uma função ingrata em partidas amadoras. Há 100 mil goleiros cadastrados. Em sua avaliação, humores do jogo pesam mais que a qualidade do trabalho

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> Este artigo integra as discussões sobre o espraiamento do processo de digitalização da economia, sobretudo no que se refere às empresas-plataforma de trabalho, no Brasil. São publicadas semanalmente em Outras Palavras e fazem parte de duas edições da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho. A publicação é fruto de parceria com a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Leia outros textos desta série sobre as várias faces da precarização do trabalho.

> Título original: A plataforma de trabalho invade jogo de futebol

O futebol, e suas variações (de campo, futsal, society ou futebol 7, de areia etc.), continua sendo o esporte mais praticado no país pelos homens, em espaços públicos ou privados1, seja ele de forma amadora ou profissional. E dentro desse grande espetáculo, a esmagadora maioria desses praticantes prefere jogar na linha, poucos abnegados optam em jogar no gol.

O goleiro é visto como função ingrata por alguns dentro do futebol, e em jogos amadores normalmente não se encontra pessoas dispostas a desempenharem este papel. Assim, muitas vezes não se tem um goleiro de ofício para as partidas amadoras, então, é preciso que os jogadores de linha se revezem por um determinado tempo para assumirem a posição de goleiro. Ao perceber tal necessidade, uma plataforma para smartphones foi criada por um grupo de amigos para convocar seu goleiro de forma prática e rápida.

A plataforma “Goleiro de Aluguel” – por enquanto a única no setor – conta com um número de aproximadamente 100.000 goleiros cadastrados2 e, no ano de 2019, após quatro anos atuando no mercado, um goleiro atingiu a meta expressiva de jogar 1000 partidas pela plataforma. Ela funciona da seguinte forma: primeiro o interessado descarrega o aplicativo no smartphone e, então responde se a intenção é convocar alguém para jogar na posição de goleiro ou ser convocado para atuar como goleiro. Se o usuário da plataforma escolher a opção “quero ser um goleiro”, deve preencher seus dados pessoais e escolher a região de atuação, bem como a distância máxima que está disposto a percorrer para jogar. Em seguida, deve informar seus dados bancários.

Para finalizar o cadastro, o goleiro deve responder a um questionário com oito perguntas, devendo acertar todas. Isto porque, se ele errar uma delas, o aplicativo indica que o goleiro realize uma nova leitura das “Dúvidas Frequentes” para, em seguida, recomeçar a preencher o cadastro. O conteúdo das perguntas abrange temas desde a porcentagem do valor que fica com o goleiro até as punições que este pode sofrer caso não compareça a um jogo. Após responder corretamente ao questionário o interessado já estará apto para jogar e o aplicativo mandará uma notificação para as partidas que forem ocorrer dentro do seu raio de atuação.

Para goleiros iniciantes, quando completam os dez primeiros jogos, a plataforma envia uma camisa oficial de presente. Trata-se de uma camisa que possui uma cor bem chamativa e que possibilita identificar, de longe, os goleiros de aluguel. Como forma de incentivar a permanência na plataforma e parabenizá-los, a cada cem jogos realizados, o goleiro recebe uma nova camisa oficial de presente, com o número de partidas feitas pelo goleiro aplicado às costas da camisa, como nos mostra a seguinte notificação enviada para um goleiro: “estamos orgulhosos por você fazer parte do Goleiro de Aluguel e para reconhecer sua conquista, enviaremos uma camisa personalizada com sua marca de 600 partidas”. Além disso, como veremos a seguir, o uso da camisa aumenta a nota do goleiro na plataforma.

No que se refere à remuneração, o valor a ser recebido é definido pela plataforma e o “trabalhador do gol” fica com apenas 60% do valor pago por quem convocou o goleiro. A cada 10 jogos realizados, a remuneração é aumentada, podendo o trabalhador receber até 75% do valor pago pelo demandante. Os valores são depositados na conta do trabalhador goleiro até 15 dias após a confirmação do demandante de que o goleiro efetivamente jogou aquela partida e de ter atribuído uma nota pelo desempenho geral do profissional.

Na hora de convocar o goleiro, o demandante possui as opções a convocar um goleiro aleatório ou um goleiro específico. Se a opção for por um goleiro aleatório, a plataforma convocará os goleiros de acordo com critérios estabelecidos pelo gerenciamento algorítmico, e o primeiro que aceitar será escalado para a partida, como dito anteriormente. Mas após esta definição aleatória o contratante ainda poderá acessar o ranking e ver a avaliação do escolhido e, caso julgue necessário, pode solicitar outro goleiro – este processo é chamado de contratação exclusiva de um goleiro específico. Ou o demandante pode, primeiramente, acessar o ranking e, depois, convocar um goleiro específico. Na hora da “contratação” ainda é necessário definir o tempo de duração da partida.

A pesquisa nos mostrou que um goleiro mais presente na plataforma e com um número maior de partidas acaba recebendo mais chamadas exclusivas do que aleatórias. Além disso, na época em que as quadras esportivas estavam funcionando com horário restrito e o número de jogos era bem inferior ao normal, devido à insegurança dos participantes em função da pandemia da covid-19, aqueles goleiros que já atuavam pela plataforma e possuíam um grupo fixo que os contratava de forma específica, conseguiram ter um número maior de jogos.

De uma forma geral, como em outras plataformas, estar à disposição e conectado o maior tempo possível aumenta as possibilidades de se conseguir um trabalho, considerando que, quando há uma demanda, a plataforma manda esta notificação para mais de um goleiro e, o primeiro que confirmar presença, estará automaticamente escalado.

E para incentivar, ainda mais, que os trabalhadores-goleiros permaneçam na plataforma, no ano de 2021 foi criado o sistema de cashback, em que um percentual de todo o dinheiro recebido pelos goleiros nas partidas é convertido na forma de créditos que, por sua vez, podem ser utilizados em compras nas lojas parceiras da plataforma. Também as compras realizadas pelos goleiros nestas lojas parceiras geram um percentual que é, igualmente, convertido em crédito para a realização de novas compras.

Nossa pesquisa também revelou que a plataforma, caso aconteça algum imprevisto durante o jogo ou a caminho do mesmo, possui um seguro contra acidentes pessoais com uma cobertura de até R$ 1.000,00 para despesas médicas hospitalares/odontológicas e de até R$ 10.000,00 por morte acidental e invalidez.

O gerenciamento algorítmico realizado pela plataforma, que leva em conta diversos fatores, como localização, avaliação, assiduidade, dentre outras dimensões não tão explícitas, pode resultar em decisões, por parte das plataformas, que nem sempre são benéficas ao trabalhador. Além do gerenciamento algorítmico, a empresa delega ao demandante fiscalizar e avaliar o trabalhador. Porém, esta avaliação nem sempre condiz com o serviço prestado, fazendo com que o goleiro seja prejudicado. E, como em outras plataformas, se o goleiro de aluguel possuir muitas avaliações negativas, ele passa a ser acionado com menos intensidade e pode até ser suspenso.

A nota atribuída ao goleiro de aluguel pelo demandante, após cada partida, pode chegar a até 30 pontos e envolve, basicamente, os seguintes aspectos e pontuações: pontualidade vale 5 pontos, personalidade de 1 a 5 pontos e técnica de 1 a 10 pontos. E se o trabalhador goleiro utilizar a camisa do aplicativo, então ele ganha mais 10 pontos.

A questão da avaliação chama atenção pois, em diálogo com outras análises já realizadas nesta série, vemos que há muitos questionamentos feitos por parte de trabalhadores no que se refere à qualidade do processo de avaliação. No caso da plataforma “goleiro de aluguel”, por exemplo, podemos pensar que a avaliação será influenciada fortemente pelo humor do demandante, em função deste ter ganho ou perdido o jogo de futebol. Porém, também existem casos onde o goleiro, após receber uma avaliação que não estava de acordo com o ocorrido na partida, entrou em contato com o suporte da plataforma explicando a situação e não teve sua avaliação prejudicada.

Assim como em outras plataformas digitais de trabalho, a plataforma Goleiro de Aluguel, além de alegar que os trabalhadores não possuem vínculo empregatício com ela, pois ela não cobra exclusividade, joga a responsabilidade por eventuais penalidades aos requerentes do serviço ou mesmo aos algoritmos. Portanto, empresas que atuam nesse modelo uberizado passam a ideia de que o usuário é quem determina a jornada de trabalho do trabalhador (prestador de serviço), bem como a sua remuneração. Logo, a figura do “patrão” seria o próprio usuário.


1 PNUD – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Movimento é vida: atividades físicas e esportivas para todas as pessoas. Brasília, DF: 2017.

2 Informação fornecida pelo CEO da plataforma em 27/01/2022.

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3 comentários para "A precarização já chega aos goleiros de aluguel"

  1. Cristiane disse:

    Se há 100 mil goleiros cadastrados, média de 2.000 convocações por semana, será que é tão ruim quanto você mostra ?

  2. Cristiane disse:

    Jogo pelo aplicativo e acho ótimo. Se você puder expor com quanto goleiros vc fez esta pesquisa e a data da mesma, seria ótimo para sua credibilidade, já que, quando se apresenta um trabalho assim você precisa mostrar números e evidências da sua tese. Caso contrário não há credibilidade somente em “achismo”.
    No aguardo

  3. José Mario Ferraz disse:

    Entre os muitos “é preciso” da imprensa falta o é preciso uma reforma agrária, acabar com a farra do pão e circo, botar uma enxada na mão desses vagabundos e colocá-los num trabalho produtivo.

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