Como a Espanha reverteu a contrarreforma trabalhista

Não foi tudo o que os trabalhadores queriam. Mas após negociações, governo anulou precarizações, ampliou direitos e regulamentou novas atividades. A base foi alcançar compromisso entre interesses divergentes. Será caminho para o Brasil?

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Por Clemente Ganz Lúcio

A Espanha concluiu, em março de 2022, a implementação das mudanças do sistema de relações de trabalho e dos direitos laborais celebradas em um acordo social histórico, depois de nove meses de negociação tripartite envolvendo o governo espanhol, as entidades sindicais (CCOO e UGT) e as empresariais (CEOE e CEPYME). Esse acordo foi transformado em lei pelo Congresso espanhol no início de fevereiro desse ano. No dia 01/04, os presidentes das centrais sindicais brasileiras estiveram reunidos em São Paulo com a Ministra do Trabalho e Economia Social da Espanha, Yolanda Díaz, e o Secretário de Estado do Emprego e Economia Social, Joaquín Pérez Rey, em evento promovido pela Fundação Perseu Abramo.

Yolanda Díaz destacou o processo para mudar a trajetória e o sentido da regulação do mundo do trabalho na Espanha, depois de quatro décadas, quando mais de 50 iniciativas de reformas laborais foram implementadas para flexibilizar formas de contratação e jornada de trabalho, reduzir o poder de representação dos sindicatos e dos acordos setoriais, favorecendo contratos de curtíssima duração (menos de sete dias) e a redução dos salários, sem diálogo com a representação dos trabalhadores. O governo espanhol, desde 2019, vem atuando na construção e promoção das transformações.

Destaque-se que a base da mudança se assenta em uma política de desenvolvimento produtivo e socioambiental que tem o objetivo de gerar emprego de qualidade para todos, como elemento estruturante da política de incremento da produtividade de toda a economia. Aposta-se na relação virtuosa entre inovação, tecnologia e trabalho e na construção dos mecanismos de partilha dos ganhos econômicos alcançados, gerando crescimento da renda do trabalho, aumento da massa salarial e sustentação da demanda oriunda do consumo das famílias.

O fundamento considera que a produtividade, para além dos fatores tecnológicos e de inovação, entre outros, será incrementada pela qualidade das condições de trabalho que recepciona a força laboral mobilizada, pela segurança gerada pelos vínculos laborais de prazo indeterminado, pela política de proteção dos empregos, pelo investimento em formação profissional contínua, refletindo na segurança que trabalhadoras e trabalhadores terão para projetar seu futuro, organizar seu orçamento familiar e investir na educação dos filhos. Para promover a partilha do resultado econômico do trabalho de todos, há que se ter sindicatos fortes, de ampla base de representação, com capacidade de construir acordos coletivos setoriais que sejam duradores, renováveis, bem como promover proteção efetiva e plena para todos que estão inseridos em ocupações mediadas por novas tecnologias dos aplicativos e plataformas e para os que estão na informalidade ou terceirizados.

Esse novo acordo marco do sistema de relações de trabalho e de direitos laborais espanhol tem sua história marcada e sustentada pelo diálogo social mobilizado pelo governo. Trata-se claramente de uma escolha política essencial: fazer transformações cujos conteúdos e trajetórias sejam fruto de uma construção coletiva e compartilhada entre os atores sociais, neste caso, empresários e trabalhadores.

O governo fez uma escolha política que visa renovar e fortalecer a própria democracia e suas instituições e, com elas, construir vínculos de confiança para pactuar compromissos com a implementação das transformações enunciadas no projeto do governo e formuladas no espaço das diferenças e divergências entre interesses representados. Método de concertação que se assenta no princípio da lealdade com o espaço de diálogo e com o reconhecimento e respeito pelo outro que é diferente e, por vezes, divergente. Metodologia de construção propositiva que tem como base o aporte do conhecimento técnico e científico, para compartilhar diagnósticos e formular prospecções e proposições, construindo pela mediação do debate político os campos de possibilidades para caminhos, objetivos e metas, para fazer escolhas e planejar o processo de construção econômico, social e político.

A escolha política do diálogo social como método contém a declaração de qual é a intencionalidade do projeto do governo, bem como o convite para efetivamente realizar um processo de construção conjunta.

A experiência espanhola de diálogo social recupera para o campo político sua atividade essencial de mediação de interesses, de maneira a alçá-los à conformação negociada do interesse coletivo e do bem comum.

Trata-se também de recolocar a democracia participativa no centro dinâmico da renovação da vida política e das suas instituições, afirmando sua finalidade de processar pactuações capazes de firmar as regras do jogo social e das relações sociais de produção econômica.

A Espanha recoloca o diálogo social como metodologia da política participativa que enuncia a escolha pela política da esperança e da construção, em contraposição à política do ódio e da destruição, que esperamos que fique no passado. Por incrível que pareça, essa é uma escolha que deveria ser óbvia, mas é relativamente escassa na história humana.

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