Negligência pode derrotar Brasil na Economia de Dados

Enquanto o lobby das Big Techs atua para bloquear qualquer regulação externa, pairam dúvidas sobre a eficiência da recém-criada Autoridade Nacional. Instituído com atraso em relação a outros países, órgão ainda é tímido com flagrantes abusos

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Este artigo foi publicado originalmente na revista Aurora, número 47, que contém um dossiê sobre Inteligência Artificial. O título original é “Novos desafios regulatórios: a recém-criada Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em face da investigação do compartilhamento de dados entre Whatsapp e Facebook”.

Introdução

A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) instaurou uma investigação para avaliar o compartilhamento de dados pessoais entre WhatsApp e as empresas do grupo Meta (detentor das redes sociais Facebook e Instagram), com o intuito de apurar a adequação aos termos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A recomendação foi publicada em maio de 2022 na nota técnica n°49/2022/CGF/ANPD,1 que conclui a fase de avaliação das alterações realizadas na política de privacidade do WhatsApp.

A ANPD analisou as versões da política de privacidade de todas as ferramentas do WhatsApp (WhatsApp Messenger, WhatsApp for Business e WhatsApp for Business – API) e sua adequação à LGPD. A nota técnica também foi examinada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). Importante notar que a Meta finalizou a aquisição do WhatsApp no ano de 2014, após receber aprovação regulatória na Europa, pagando um valor de US$22 bilhões2 à época.

A principal mudança prevista na nova política do WhatsApp, datada de 4 de janeiro de 2021,3 em relação à sua versão posterior, de 20 de julho de 2020, é de que dados gerados em interações comerciais poderão ser utilizados pelas empresas para direcionar anúncios no Facebook e no Instagram,4 posto que todas as plataformas pertencem ao grupo Meta.

A análise da ANPD resultou na recomendação de procedimento específico para avaliar o compartilhamento de dados pessoais entre WhatsApp e as empresas do grupo Facebook, visando apurar sua adequação à LGPD. A autoridade notou que o compartilhamento ocorre desde 2016 e não foi objeto da última atualização da política de privacidade. O documento de maio de 2022 é a terceira nota técnica da ANPD sobre o tema desde janeiro de 2021, quando o WhatsApp anunciou mudanças em sua política de privacidade com o compartilhamento de informações com o Facebook. Em março do mesmo ano, a ANPD publicou a primeira nota técnica referente ao assunto, com uma lista de recomendações e possíveis consequências das alterações promovidas na política de privacidade e termos de serviço da empresa. Em vista disso, a ANPD, o CADE e o MPF emitiram recomendação conjunta ao WhatsApp para que adiasse a entrada em vigência da nova política até a análise dos reguladores. Por outro lado, foi recomendado ao Facebook que não tratasse de dados pessoais compartilhados pelo WhatsApp, com base nas alterações da política de privacidade, até que houvesse um posicionamento das autoridades.

A segunda nota técnica foi publicada em junho de 2021, com análise dos termos de uso e políticas do WhatsApp Business, categorias de dados e bases legais para esses tratamentos. O documento abordou também informações relativas aos direitos dos titulares, dados sensíveis e dados de crianças e adolescentes, e medidas de prevenção de segurança e privacidade. A terceira e última nota, de maio de 2022, concluiu a análise da alteração da política de privacidade, e estabeleceu a abertura da investigação adicional.

Na página de perguntas frequentes do WhatsApp,5 a empresa exalta sua tecnologia de criptografia com o lema “Privacidade e segurança estão em nosso DNA”. A empresa explica que protege as conversas dos usuários no WhatsApp Messenger, apontando que “ninguém pode ler ou ouvir suas conversas, nem mesmo o WhatsApp”, através de um processo que ocorre automaticamente, sem que seja necessário ativar configurações especiais para garantir a segurança das mensagens. Em relação a conversas com empresas, o WhatsApp alega que todas as mensagens contam com a segurança de ponta-a-ponta e do protocolo de criptografia Signal, que protege as mensagens antes que elas saiam do aparelho. Outro ponto alegado é que “a Meta (controladora do WhatsApp) não usará automaticamente suas mensagens para exibir anúncios direcionados, mas as empresas poderão usar as conversas com você para fins de marketing, incluindo anúncios na Meta”.

Enquanto o Brasil ainda está em fase de recomendações, a União Europeia está mais avançada no quesito de regulação das plataformas. No dia 25 de abril, o bloco estabeleceu que a Meta, junto a outras empresas de grande porte do setor como Apple, Amazon, Google, Twitter e TikTok, terão quatro meses para entrar em conformidade com a Lei de Serviços Digitais (DSA na sigla em inglês).6 Os infratores poderão ser multados em até 6% da receita global anual. Anteriormente, em setembro de 2021, a Comissão de Proteção de Dados da Irlanda aplicou uma multa de 225 milhões de euros ao WhatsApp por não informar aos usuários de que as informações pessoais seriam compartilhadas com o Facebook.7 A própria atualização da política de privacidade do WhatsApp “recebeu uma atualização com conteúdos substancialmente distintos de outras regiões do globo”, segundo relatório da ANPD,8 pontuando que esta distinção pode ser por conta da vigência e do elevado grau de detalhamento do Regulamento Europeu de Proteção de Dados – RGPD.

Já na China, os reguladores locais flexibilizaram o prazo para que as empresas multinacionais cumpram com as novas regras sobre dados de usuários, inicialmente estabelecido para 1º de março de 2023.9 As empresas de tecnologia, no entanto, alegaram que a data era inatingível, devido à extensa documentação a ser entregue.

Nos Estados Unidos, o Congresso discute a aprovação da American Innovation and Choice Online Act, introduzida pelo deputado democrata David Cicilline em junho de 2021.10 O projeto visa a proibir que as plataformas de Big Tech favoreçam seus próprios produtos e serviços, e inibir que estas plataformas usem dados não públicos coletados de seus usuários de negócios para adquirir vantagens indevidas para seus próprios serviços. As proibições têm o intuito de adquirir ramificações que resultariam em um novo formato para a indústria digital. As sanções previstas poderiam chegar a multas de até 10% do faturamento das Big Techs nos Estados Unidos durante o período de violação ocorrida.

Entre os possíveis tipos de condutas a serem enquadradas na lei estão:

  • A exibição de conteúdo do Google Maps pela busca do Google e posicionamento favorável de outras verticais da empresa;
  • O favorecimento da Amazon para seus próprios produtos nos resultados de pesquisa do seu marketplace, em detrimento de comerciantes terceirizados;
  • A pré-instalação de certos aplicativos nos celulares da Apple;
  • A priorização da Microsoft de seus próprios videogames na Microsoft Store para o Xbox.

A fundação da ANPD no Brasil em meio ao contexto de liberdade das Big Techs

A ANPD foi criada pela Medida Provisória n. 869 de 27 de dezembro de 2018, durante o final da gestão Michel Temer, e posteriormente convertida na lei n. 13.853 de 8 de julho de 2019, sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro. A criação da ANPD estava prevista na Lei Geral de Proteção de Dados, sancionada pelo presidente Michel Temer em 14 de agosto de 2018 e entrando em vigor dois anos depois, em setembro de 2020.11 A função do órgão, que estava vinculado à Presidência da República e passou a ser vinculado ao Ministério da Justiça em janeiro de 2023,12 é fiscalizar a aplicação da LGPD. O presidente da autoridade, o coronel Waldemar Ortunho, foi nomeado pelo presidente Bolsonaro, e tem mandato até novembro de 2026. A diretora da ANPD Miriam Wimmer também foi reconduzida ao cargo após sabatina no Senado e aprovação do presidente Bolsonaro em um de seus últimos atos de governo.

A principal característica da lei brasileira de proteção de dados é a definição de categorias, hipóteses de coleta e tratamento de informações, além de instituir um regime diferenciado para o poder público, e estabelecer sanções em casos de violação. A definição adotada pelo regulamento para dados pessoais são “informações que podem identificar alguém”. Dentro deste conceito, a categoria de dado sensível corresponde a informações sobre origem racial ou étnica, convicções religiosas, opiniões políticas, saúde ou vida sexual. A lei pretende impor maior nível de proteção a esses registros e, assim, evitar formas de discriminação. A lei vale também para coletas operadas em outros países, desde que relacionadas a bens ou serviços ofertados a brasileiros, ou que tenham sido realizadas no Brasil. A exceção se aplica para obtenção de informações pelo Estado para segurança pública, defesa nacional e investigação e repressão de infrações penais – temática que deverá ser objeto de legislação específica. A outra exceção da lei está em coletas para fins exclusivamente particulares, e não econômicos, jornalísticos, artísticos e acadêmicos.

Em suma, a coleta e armazenamento de dados deverá ocorrer por meio da obtenção do consentimento do titular, em primeiro lugar, ou autorizações para cumprimento de obrigações legais, estudos, proteção da vida do titular ou de terceiros, tutela da saúde por profissionais ou autoridades da área. A administração pública também pode coletar dados para a consecução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos respaldadas em convênios. Os órgãos públicos, no entanto, devem informar as hipóteses de tratamento de dados dentro da base legal. Já a obtenção do consentimento deve estar relacionada a uma finalidade determinada, não podendo estar relacionada para a posse simplesmente de uma informação, sendo que é possível a qualquer momento revogar o consentimento fornecido. A pessoa pode requisitar das empresas a confirmação da existência de tratamento e acesso aos dados, bem como a portabilidade de dados a outro fornecedor, e informações sobre quais entidades públicas determinada empresa compartilhou informações (exemplo: polícia, Ministério Público, etc.). Também cria normas próprias para o tratamento de dados de crianças, em que é preciso obter o consentimento dos pais. A LGPD lista um conjunto de sanções para o caso das violações das regras com possibilidades de medidas corretivas, multas de até 2% do faturamento, com limite de R$ 50 milhões por infração, e até suspensão ou proibição total ou parcial do funcionamento do banco de dados, ou da atividade de tratamento. O regulamento de aplicação de sanções administrativas foi publicado em fevereiro de 2023 para a aplicação de processos sancionadores.13 

Esta regulação era o passo que faltava para que a autoridade pudesse começar a aplicar multas. No dia 23 de março deste ano, a ANPD divulgou uma lista dos processos sancionatórios de empresas e órgãos públicos que aguardam conclusão. De um total de oito investigações, sete correspondem a órgãos do setor público, e apenas uma empresa privada, a Telekall, suspeita de não atender aos requisitos de comprovação legal para tratamento de dados. A lista de processos instaurados, conforme divulgado pela ANPD, segue abaixo:14

Por ora, nenhuma das Big Techs consta como investigada em fase de processo administrativo sancionador. No caso do WhatsApp, a ANPD optou por uma recomendação, e abriu procedimento para apurar eventuais infrações. Importante notar que, neste sentido, o Brasil está atrás de seus pares internacionais, que já multaram a empresa pelas mesmas práticas.

Sérgio Amadeu em seu livro Tudo sobre Tod@s, apontou que as tecnologias digitais produzem um conjunto de informações todas as vezes que são utilizadas, e “isto altera profundamente a capacidade dos agentes econômicos de avaliar suas práticas e seus negócios”.15 O autor comenta dois grandes movimentos de aquisições recentes de gigantes da era informacional: a compra do YouTube pelo Google (em 2006), e a aquisição do Instagram e do WhatsApp pelo Facebook, apontando que ambos os conglomerados têm sua principal fonte de renda advinda da compra e venda de dados pessoais às empresas e demais clientes que buscam perfis de consumidores. O autor também pontua que “esses conjuntos empresariais gigantescos são os proprietários da infraestrutura necessária à comunicação digital”,16 apontando ainda para os riscos e perigos que o mercado de dados pessoais podem nos propiciar. O autor comenta a parceria entre as empresas DoubleClick e QuantCast, em 2011, que prometia encontrar perfis de pessoas que seriam potenciais clientes de determinada empresa, mapeando consumidores para receberem anúncios e propostas online, sendo que os clientes, à época, obtiveram resultados próximos de 100% de clicks. As técnicas de rastreamento passam pela coleta de endereços de IP e outras técnicas para rastrear quem está lendo determinada página web ou e-mail e qual dispositivo foi usado, entre computador, tablet ou celular. Soma-se ainda o uso de cookies para capturar os dados e registrar em servidores da web.

Em obra posterior, Democracia e Códigos Invisíveis (2019), o autor discorre sobre este modelo de negócios das Big Techs, que alimentam seus bancos de dados para, com algoritmos de aprendizagem de máquina, obter amostras e perfis de usuários capazes de suprir a demanda de seus clientes.

Rosemary Segurado, em seu livro Desinformação e Democracia (2021) aponta que o mercado de compra e venda de databases tem também fins políticos. A professora nos remete ao papel da consultoria Cambridge Analytica, ressaltando a atuação na campanha vencedora de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos em 2016, e da campanha pela saída da Inglaterra da União Europeia, como no trecho abaixo:17

Alexander Nix, CEO da Cambridge Analytica, desempenhou um papel fundamental nas eleições norte-americanas de 2016 e pode ser considerado um dos grandes mentores do sofisticado uso de dados em processos eleitorais. Ganhou destaque nas prévias republicanas e já possui toda a estrutura de dados sobre os eleitores norte-americanos, obtidos por meio de enquete e conseguiu prever a personalidade de cada eleitor, portanto, poderia influenciar o comportamento nas eleições. Foi contratado a trabalhar para a candidatura de Donald Trump e adotou a estratégia de utilizar o estudo do comportamento eleitoral para disseminar vídeos que atingissem a reputação da adversária de Trump nas eleições, a democrata Hillary Clinton. Os vídeos associavam a imagem de Clinton à corrupção, escândalos sexuais envolvendo crianças e outras mentiras.

A arrependida ex-diretora de desenvolvimento da Cambridge Analytica, Brittany Kaiser, descreveu as práticas de manipulação de dados de sua antiga empresa no livro Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque, publicado em 2019. Chama a atenção na obra o serviço de consultoria vendido para campanhas eleitorais, que consistia em mapear os tipos potenciais eleitores de determinado candidato baseado em uma construção da base de dados de preferências individuais e, assim, bombardeá-los com mensagens. Os truques utilizados, no caso da votação do Brexit, por exemplo, incluíram convencer pessoas a comparecer às urnas e votar pela saída do Reino Unido, e para eleitores indecisos que tenderiam a votar pela permanência na União Europeia, convencê-los a simplesmente não irem votar, resultando em um case vitorioso no portfólio da autoridade.

Sendo a renda do Facebook composta primordialmente de publicidade personalizada, quais os limites a serem definidos quando os alvos para os anúncios de produtos podem contar com dados de usuários do WhatsApp? Os reguladores europeus e americanos, como vimos, ainda não encontraram a fórmula que poderá servir como direcionamento para responder estas questões.

No Brasil, empresas de economia digital, como Google, Facebook, TikTok e Amazon se reuniram em uma associação de lobby chamada Câmara Brasileira de Economia Digital,18 ou Camara-E.NET. O estatuto da entidade aponta, entre seus objetivos, o de “promover o comércio eletrônico em todas as suas formas” e “estimular a iniciativa privada, a livre concorrência e a autorregulamentação”.19 No dia 28 de abril de 2023, a entidade publicou uma carta dizendo que a nova versão do PL 2630, também conhecido como PL das Fake News, agrava os riscos de controle estatal, e prejudica o ambiente de negócios. Eles não se dizem contra a regulação em si, mas fica claro, como no estatuto, que o interesse representado é a autorregulação. Para estas empresas, “o projeto cria um incentivo à remoção de conteúdos, mesmo que legítimos, ao responsabilizar as plataformas pelo conteúdo postado por usuários e anunciantes”.20 Esta mesma associação, de acordo com informações da coluna do jornalista Guilherme Amado, do jornal Metrópoles, espalhou entre os deputados evangélicos que o PL das Fake News poderia resultar na censura de postagens de cunho religioso.21 O relator do projeto, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) gravou um vídeo ao lado do deputado Cezinha da Madureira (PSD-SP), ex-coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, para deixar claro que as medidas não atingirão a liberdade religiosa. Importante notar que, na ausência de um órgão que lidará com questões de notícias falsas, a ANPD e a Anatel disputam quem atuará como fiscal da lei.22

Voltando à política de privacidade do WhatsApp, que é alvo de investigação, a empresa assegura, entre outros pontos, que: 1- eles não podem ler as mensagens de usuários nem ouvir chamadas do WhatsApp; 2- eles não mantêm registros das pessoas que os usuários ligaram ou enviaram mensagens, 3- que WhatsApp e Meta não podem ver a localização quando compartilhada, e 4- que o WhatsApp não compartilha dados com a Meta. A empresa afirma que as mensagens pessoais são protegidas com criptografia de ponta a ponta, e que eles “jamais” enfraquecerão essa tecnologia de segurança. Em relação às conversas com empresas, o WhatsApp enfatiza que são diferentes de conversas com amigos e familiares.

Comparando as versões da Política de Privacidade do WhatsApp de 28 de janeiro de 2020 para a mais atual, de 4 de janeiro de 2021, observamos as principais mudanças no documento. A primeira diferença notada entre uma versão e outra é a definição do aplicativo de mensagens que conta na versão de 2020 e não consta na versão atualizada. “O WhatsApp presta serviços de mensagens, ligações via internet e outros para usuários em todo o mundo”, sendo que a versão atualizada explica que o WhatsApp passou a ser parte das empresas Meta.

Ao explicar sobre a política, outro detalhe. A versão de 2020 é mais completa no sentido de apontar que:

Esta Política de Privacidade (“Política de Privacidade”) se aplicará a todos os nossos aplicativos, serviços, recursos, software e site (em conjunto, “Serviços”) se não houver disposição em contrário.

A versão atual é mais sucinta:

Esta Política de Privacidade se aplica a todos os nossos Serviços, exceto se especificado de outra forma.

O WhatsApp explica que a versão atual contém informações adicionais sobre os recursos e funcionalidades mais recentes dos produtos da empresa e links diretos para as configurações do usuário, entre outras informações, apontando maior facilidade de conexão. A explicação sobre a coleta de dados mudou da seguinte maneira:

O WhatsApp recebe ou coleta dados sempre que operamos e prestamos nossos Serviços, inclusive quando são instalados, acessados ou utilizados por você.

Para:

O WhatsApp precisa receber ou coletar algumas informações para operar, fornecer, melhorar, entender, personalizar e comercializar nossos Serviços e oferecer suporte para eles, incluindo quando você os instala, acessa ou usa.

A redação no quesito “Dados da sua conta” também mudou da seguinte forma, da versão 2020 para a versão 2021:

Recebemos seu número de celular quando uma conta do WhatsApp é criada por você.

Recebemos os números de telefone de sua agenda de contatos regularmente, tanto de usuários de nossos Serviços quanto de outros contatos. Você confirma ter autorização para fornecer tais números. Outros dados podem ser fornecidos para sua conta, como nome do perfil, foto do perfil e mensagem de status.

Em 2021:

Você deve enviar seu número de telefone celular e seus dados básicos (como um nome de perfil escolhido por você) para criar uma conta do WhatsApp. Caso você não forneça esses dados, você não conseguirá criar uma conta para utilizar nossos Serviços. Outras informações podem ser adicionadas à sua conta, como uma foto de perfil e um recado.

A versão mais recente adiciona informações sobre operações globais, apontando que: 

O WhatsApp compartilha informações pelo mundo inteiro, tanto internamente, com Empresas da Meta, quanto externamente, com os nossos parceiros e provedores de serviço, e também com quem você se comunica em todo o mundo, em conformidade com esta Política de Privacidade. Por exemplo, suas informações podem ser não só armazenadas e tratadas nos Estados Unidos, em países ou territórios onde as afiliadas e os parceiros das Empresas da Meta ou nossos provedores de serviços estão localizados ou em qualquer outro país ou território no mundo em que nossos Serviços sejam fornecidos fora da região em que você reside para as finalidades descritas nesta Política de Privacidade, mas também transferidas ou transmitidas para esses lugares.

Nota-se ainda que o WhatsApp não informa as bases legais que justificam o tratamento de dados dividido por finalidade, e tampouco informa quais categorias de dados pessoais são usadas para cada finalidade – ambos pontos que justificaram a instalação de investigação da ANPD.23

Capitalismo de Vigilância ou o capitalismo de sempre?

A primeira premissa em se tratando de compartilhamento de dados e regulação de Big Techs é que governos não têm a mesma eficiência em termos de inovação quando comparados o setor público com o privado. Observamos empiricamente que o poder público contrata serviços terceirizados de tecnologia, apesar de muitas vezes ser o financiador das mesmas, para a manutenção de seus serviços ou criação de novos. Enquanto as empresas de tecnologia se recusam a compartilhar seus códigos-fontes, que justificam suas receitas bilionárias, reguladores engatinham para criar regras que possam ao menos taxar essas empresas de maneira eficiente.

Ainda no começo do milênio, Castells (2010) já apontava para o fenômeno da informação e sua capacidade de superar, em faturamento, as empresas de petróleo. Ainda assim, demoramos a constatar que o principal produto a ser vendido eram as nossas preferências e dados que trocamos nas novas tecnologias e ferramentas disponíveis.

E assim algo deu errado desde que as Big Techs começaram a apresentar faturamentos astronômicos. A popularização da internet e dos sistemas de informação, que se aceleram muito na primeira década dos anos 2000, resultou em riscos já observados no começo da segunda década do milênio. Os algoritmos foram programados a partir de percepções humanas e, com isso, reproduziram os mesmos preconceitos expostos na vida em sociedade. Extremismos que, apesar de nunca terem sido totalmente extirpados da vida em sociedade, mas se encontravam apenas em pequenos núcleos, ganharam maiores proporções. Exemplos claros deste fenômeno são os núcleos neonazistas, racistas e homofóbicos, e outros potenciais criminosos que foram possibilitados de se juntar via internet sem que nenhuma Big Tech agisse efetivamente para conter o perigo desses grupos. Mais além, há dúvidas se as plataformas corroboram para reunir indivíduos que estavam prontos a um empoderamento via violência para combater frustrações cotidianas, resultando em ataques armados e mortes de inocentes.

Se a questão já era inconclusiva e grave quando a dúvida sobre o acúmulo de dados de qualquer pessoa se concentrava no intuito comercial desse armazenamento, no ouvir conversas privadas e trocas pessoais para serem utilizadas em publicidades direcionadas, agora nos questionamos porque a mesma prática dissemina ódio e fomenta extremismos. Utilizando do conceito dos filtros bolha, o professor Frank Pasquale busca entender como o direcionamento de informações promovido pelas Big Techs colabora para que isso aconteça:

Por exemplo, considere o problema clássico do filtro bolha.24 A customização permite aos usuários de internet ignorar opiniões com as quais não concordam, de tal maneira que o modelo de filtro bolha firma e, portanto, aumenta a polarização. Vamos assumir, por enquanto, que existe algum caminho intermediário de consenso que vale a pena salvar. As soluções existentes para a dinâmica do filtro bolha envolvem, em primeiro lugar, que ‘todos os lados’ ou ‘ambos os lados’ podem ser expostos à crítica de opositores através, por exemplo, de regras mais minuciosas de filtragem ou de versões de teste secretamente implementadas.25 Para tornar essa proposta mais atrativa, vamos assumir por agora uma sociedade dividida entre esquerda e direita. O grande problema para os defensores das reformas do ‘filtro bolha’ é que eles não podem antever adequadamente se a exposição dos adeptos aos posicionamentos, prioridades, ideologia ou valores de seus opositores levará à compreensão ou repulsa, reconsideração ou desconfiança.26

Evgeny Morozov (2018) aponta que “antes de tudo, precisamos destruir aos poucos a hegemonia intelectual da Big Tech no que se refere às ideias de políticas futuras e do papel que a tecnologia vai desempenhar nelas”.27 O autor aponta que temos de retomar o conceito de cidadania que seja capaz de superar a imagem de que somos apenas consumidores de aplicativos passivos, sujeitos receptivos ao império de uma publicidade global ansiosa para acelerar o extrativismo de dados.

 Conclusão

Pudemos observar que as Big Techs pressionam por uma autorregulação, em detrimento da recém-criada ANPD, ou mesmo de outros órgãos que poderiam, em conjunto ou não, demonstrar algum poder de fogo, como CADE e Ministério Público. Enquanto isso, falta clareza na política de privacidade do WhatsApp sobre como estes dados são compartilhados com outras empresas da Meta.

Um fenômeno importante a ser discutido é porque a ANPD está sendo pouco lembrada nas investigações relacionadas ao PL das Fake News. Considerou-se a criação de uma nova autoridade reguladora para tratar de fake news, sem aproveitar ou dialogar com a ANPD, como se a explosão da retenção de dados e a rápida disseminação de notícias falsas fossem fenômenos aleatórios, sendo que os dois envolvem as Big Techs.

Ou seja, caminhamos possivelmente para uma nova burocracia, criada a partir de novas regras, ainda sem contato efetivo com o framework já existente internacionalmente. Quem está com a caneta nas mãos precisa negociar para além de lobbies e superar a grande polarização das casas legislativas brasileiras. No caso específico da ANPD, a autoridade tem que se colocar pari passu com as legislações mais modernas, percebendo as dificuldades dos reguladores da UE e dos EUA. Como diz o ditado popular, quem não é visto, não é lembrado, correndo o risco da ANPD, apesar de corresponder ao Brasil enquanto terceira posição do ranking dos países que mais consome rede social em do mundo,28 virar meramente protocolar em um mar de abusos em que os reguladores internacionais já estão cuidando com suas próprias regras.

Referências

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Notas 

1 Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/nt_49_2022_cfg_ anpd_versao_publica.pdf. Acesso em 27 de abril de 2023.

2 Reportagem do G1 publicada em 6 de outubro de 2014, disponível em https://g1.globo.com/ economia/negocios/noticia/2014/10/preco-de-compra-do-whatsapp-pelo-facebook-sobe-us–22-bilhoes.html . Acesso em 1° de maio de 2023.

3 Importante notar que o WhatsApp possui termos diferentes para a União Europeia e para o Reino Unido. A política de dados de 4 de janeiro entrou em vigor em 15 de maio de 2021.

4 Informações de matéria do G1 de 15 de maio de 2021, disponível em https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/05/15/whatsapp-inicia-nova-politica-de-privacidade-neste-sabado-veja-o-que-muda.ghtml . Acesso em 3 de maio de 2023.

5 Disponível em https://faq.whatsapp.com/820124435853543/?locale=pt_BR . Acesso em 27 de abril de 2023.

6 Notícia da CNN publicada em 25 de abril de 2023 https://www.cnnbrasil.com.br/economia/tiktok-twitter-meta-google-e-amazon-tem-4-meses-para-cumprir-nova-legislacao-da-ue/ . Acesso em 27 de abril de 2023.

7 Notícia da CNN publicada em 2 de setembro de 2021, disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/regulador-da-irlanda-multa-whatsapp-por-compartilhar-dados-com-facebook/. Acesso em 27 de abril de 2023.

8 Informações do relatório da ANPD de 22 de março de 2021.

9 Notícia da CNN publicada em 1º de março de 2023 https://www.cnnbrasil.com.br/economia/china-alivia-prazo-para-multinacionais-cumprirem-regras-de-dados-de-usuarios/ Acesso em 27 de abril de 2023.

10 Um estudo do departamento de pesquisa Congresso Americano sobre o projeto de lei está disponível em https://sgp.fas.org/crs/misc/R47228.pdf Acesso em 27 de abril de 2023.

11 Informações de reportagens da Agência Brasil publicada em 18 de setembro de 2020: https:// agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-09/lei-geral-de-protecao-de-dados-entra-em-vigor e https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-09/entenda-o-que-muda-com-a-lei-geral-de-protecao-de-dados . Acesso em 28 de abril de 2023.

12 Informações de reportagem do portal Convergência Digital de 2 de janeiro de 2023. https://www.convergenciadigital.com.br/Governo/ANPD-deixa-presidencia-da-Republica-e-passa-para-o-Ministerio-da-Justica-62229.html?UserActiveTemplate=mobile Acesso em 28 de abril de 2023.

13 Informações da ANPD disponíveis em https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-publica-regulamento-de-dosimetria . Acesso em 28 de abril de 2023.

14 Disponível em https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-divulga-lista-de-proces-sos-sancionatorios. Acesso em 28 de abril de 2023.

15 AMADEU, 2017, p. 17.

16 AMADEU, 2017, p.36.

17 SEGURADO, 2021, p. 56.

18 Os associados da Camara-E.NET estão listados em: https://camara-e.net/site/conteudo/associa- dos?menu_id=5 . Acesso em 1° de maio de 2023.

19 Estatuto da Camara-E.NET disponível em https://camara-e.net/site/conteudo/1491-estatuto-camara-enet.html?menu_id=49 . Acesso em 1° de maio de 2023.

20 A carta está disponível em https://camara-e.net/2023/04/28/nova-versao-do-pl-2630-agrava-riscos-de-controle-estatal-e-prejudica-ambiente-de-negocios . Acesso em 1° de maio de 2023.

21 Nota do Metrópoles disponível em https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/associacao-de-lobby-que-reune-facebook-google-e-tiktok-espalhou-que-pl-das-fake-news-censura-religiao . Acesso em 1° de maio de 2023.

22 Reportagem do portal Convergência Digital de 28 de abril de 2023, disponível em https://www.convergenciadigital.com.br/Governo/Legislacao/ANPD-entra-na-briga-com-Anatel-para-fiscalizar-Lei-das-Fake-News-63089.html . Acesso em 4 de maio de 2023.

23 Informações do relatório da ANPD de 22 de março de 2021.

24 PARISIER, 2011; SUSTEIN, 2007.

25 PASQUALE, 2016a, p. 499-500.

26 PASQUALE, Frank. A esfera pública automatizada. Revista Líbeo. São Paulo: 2017. p. 28-29

27 MOROZOV, 2018, p.174.

28 Dados do Comscore, disponível em https://propmark.com.br/brasil-e-o-terceiro-pais-que-mais-usa-redes-sociais-no-mundo/#:~:text=Levantamento%20realizado%20pela%20Comscore%20mostrou,Estados%20Unidos%2C%20M%C3%A9xico%20e%20Argentina. Acesso em 4 de maio de 2023.

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