Impulsos, tecnologia e alienação

Ânsia por dominar a natureza forjou a civilização. Agora, novas tecnologias sublimam pulsões, pela sensação de desejo pleno. Mas sem consciência do impulso ao sexo e à destruição, humanidade pode eliminar limites e aniquilar a si mesma

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Por Ricardo Neder, na série A Gambiarra e o Panóptico

Às quartas-feiras, Outras Palavra publica uma série de artigos de Ricardo Neder, intitulada A Gambiarra e o Panóptico (fruto de livro homônimo, publicado pelo Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina, da UnB, e editora Lutas Anticapital) que, por meio dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, visa compreender a sociedade de controle e vigilância – e se é possível superá-la e reconstruir o Socialismo e as Democracias. Leia a apresentação da série. Aqui, todos os textos já publicados. O título original do texto abaixo é: O mal estar e o objeto técnico

Não será verdade que toda ciência, no final, se reduz a um tipo de mitologia?”
(De uma carta de Freud a Einstein, em 1932)

1931. Cresce o nazismo na Alemanha e Áustria. Nesse mesmo ano Freud (1855-1939) reedita o ensaio O mal estar na cultura. O partido nazista é eleito para o Parlamento. Freud na ocasião acrescentou uma única frase ao final do ensaio: “Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘poderes celestes’- o eterno Eros desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário” e, interroga: Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?

A resposta veio sete anos depois quando se refugiou na Inglaterra. “Salvar uma gaiola de passarinho, enquanto a casa está pegando fogo”, era como se sentia…. A Alemanha se configurou em uma sociedade rachada pela regra da maioria: 50% mais 1 governam e o restante faz oposição.

Apresenta-se hoje outra cisão, a que associa o sujeito contemporâneo em busca do artificial (techné) e promove esse valor de instância mediadora entre natureza e a polis (política). Ou seja, a mediação entre a vida política do poder e o metabolismo econômico-social se expressa na rivalidade que se estabelece entre a produtividade da esfera social e a produtividade da natureza. O mito naturalista pertenceria essencialmente ao passado da cultura e evidenciaria o que foi a pré-história do domínio técnico do homem sobre a natureza, algo pertencente à pré-industrialização. Ora, nada mais distante da história, pois todos estamos justamente diante da naturalização da técnica. Na verdade, a produtividade da natureza passou a ser vista com desconfiança, porque guiada pelo acaso, imprudência e desperdício, lentidão e mística. (Mas não estão estes atributos também em alta?). Em seu lugar, a esfera social assume o caráter de biopolítica (visão, em contextos diferentes, elaborada por H. Arendt, M. Foucault e A. Negri).

Aplicada à esfera do corpo e da vitalidade, essa relação tem sinal trocado: converte-se em sublimação sob uma ordem repressiva que assume a liberdade como pertencente ao domínio do princípio de desempenho (MARCUSE). O metabolismo apropriado do consumo para cada corpo é operado como parte da sociedade de controle. Contudo, proponho observar essa passagem de outro ponto de vista, relacionado ao território criado a partir desse metabolismo.

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Para ilustrar essa dimensão nada melhor do que um deslocamento de caráter estético em torno do romance Solaris no qual o autor, o polonês Stanislaw Lem, narra estranhas ocorrências em uma estação espacial na órbita de um fictício planeta, Solaris. Tem como personagem central um astronauta-psicólogo que deve encerrar a missão, salvar uns poucos tripulantes, levando-os de volta para Mãe Terra. (Em filme homônimo, Solaris foi representado esteticamente como um belíssimo planeta-oceano, graças a uma inusitada interação com os humanos recém-chegados inaugura sua história, isto é, a consciência-de-si-próprio).

A matéria primordial do planeta já possuía uma protoconsciência (por meio da qual estabelecia contato com os humanos: consubstanciava-lhes os sonhos). Entretanto, eram contatos extremamente mal sintonizados justamente porque mediados pelas recriações oníricas humanas, meros reflexos de suas realidades. Nenhum dos cientistas antes de Chris – o astronauta-analista – tinha conseguido se livrar do pavor de estar-se comunicando diretamente com um oceano semi-consciente.

Todos tinham à sua disposição o acervo de conhecimento universal do homem gravado na biblioteca com obras científicas, de humanidades, das artes e, além disto, contavam com os laboratórios, portanto (como diria Goethe), tinham ciência e arte. Ainda assim, eram tomados de um pavor religioso ao entrar em contato com Solaris. O mal-estar dos humanos se converteu em desespero. O desespero em suicídio de muitos da tripulação.

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Antes de avançar na história vale recordar rapidamente do argumento central de O mal estar da cultura. A civilização, ou seja, as obras e organizações para cuja instituição nos afastamos da condição primitiva de nossos ancestrais, busca atingir três fins: superar a fragilidade de nossos corpos; proteger o homem contra a natureza e regular as relações dos homens entre si.

O poder sobre a natureza não é o único objeto do esforço ou sacrifício cultural, observa Freud. Sua posição é a de que, daí, não devemos inferir ser o progresso técnico um valor menor para a economia de nossa felicidade. Embora tenha a cultura se mostrado eficaz nos dois primeiros casos, argumenta ainda, não parece haver sido tão bem-sucedida em proteger o homem dos sofrimentos relativos à vida em comum com seus semelhantes. A avaliação de Freud é cautelosa: “O homem tornou-se uma espécie de Deus de prótese, através da ciência e tecnologia, contudo, não se sente feliz em seu papel de semelhante a Deus. É claro que sentimo-nos felizes pelo acesso à beleza, à limpeza e à ordem nas nossas cidades…” Mas – adverte – não se trata de concordar com o preceito de que civilização é sinônimo de aperfeiçoamento com o qual se constitui a estrada para a perfeição pré-ordenada para os homens. Ao contrário, acredita que Civilização equivale à renúncia aos instintos poderosos.

Noutra perspectiva contemporânea (elaborada por Lacan) essa renúncia foi traduzida como: “quem quer o gozo é vulnerável aos sofrimentos, e quem quer sobretudo poupar-se da dor, se priva do gozo”. Em outras palavras, será possível encontrar um equilíbrio entre as reivindicações do indivíduo e as exigências culturais? Como é bem conhecido, sua resposta diz respeito às forças primitivas que mobilizaram os homens, no “princípio do desenvolvimento da civilização”, para atingir uma resolução, de um lado, no plano das pulsões do Eu, e de outro, no plano do convívio, assegurar a autoconservação por meio da necessidade de colaboração para lutar junto pelas necessidades vitais (Ananké), foi uma poderosa pedagogia para os instintos.

A segunda força foi a satisfação genital que levou o macho a conservar consigo seu objeto sexual. Aqui Eros acarretou o surgimento da família primitiva (descrita em Totem & Tabu, cuja narrativa faz de Eros e Ananké os pais da civilização humana). Nesse estágio a sexualidade humana estava longe de aparecer como inimiga da civilização.

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O que nos leva de volta à história de Solaris. O astronauta-psi, esgotado, adormece profundamente na sua primeira noite na estação orbital; mais tarde ao acordar se depara com sua primeira mulher, Hary, com quem vivera intensa paixão, interrompida por sua morte, dez anos antes. Após um primeiro momento de repulsa e estranheza ante dela, Chris aceita a mulher (para a preocupação ainda maior dos colegas, cujas tentativas de lidar com a matéria de seus sonhos tinham sido um desastre). Diante disso um deles – cientista ortodoxo e racionalista – defende que o oceano Solaris seja bombardeado com radiações eletromagnéticas. Outro era um cientista comportamentalista, que reagia aos apelos do oceano como quem estivesse experimentalmente testando suas criações no laboratório. Chris afastou ambas as condutas, adotando uma terceira, que chamarei do método fenomenológico, no qual é abolida a cisão sujeito-objeto. Chris aceita Hary como sua companheira e, juntos, passam a viver um segundo casamento pleno de erotismo e emoções profundas. Esta decisão gera, é claro, uma extraordinária mutação em ambos pela troca de subjetividades. Ela, por seu turno, torna-se cada vez mais dotada de memória. É capaz de (re)lembrar pessoas, cenas e situações delicadas vividas entre eles. Assim, com este novo poder, penetra na vida de Chris com plenos direitos de se considerar na condição de quase-humana.

No ensaio de Freud, sua tese é clara: a harmonia original entre sexualidade e civilização teve de ceder lugar ao conflito. A comunidade mais ampla entrou em luta com a família que tendia a se isolar (drama de Medeia no teatro grego), enquanto o casal mantinha o monopólio da economia sexual. A civilização por seu lado procurava desviar essa economia sexual para objetivos culturais. (A proibição do incesto entre outras). A tese de que a civilização é inimiga da sexualidade já tinha sido anunciada em 1912 em Contribuição à psicologia do amor).

Mas em O mal estar da cultura, Freud explicitou a hipótese de que a civilização poderia não ser a única responsável pela involução da sexualidade humana (essa função em estado de involução como parecem ser nossos dentes e cabelos). Por sua própria natureza a função sexual se negaria – no que lhe cabe – a proporcionar-nos satisfação plena e nos obrigaria a escolher outros caminhos, diz Freud. Aqui parece que estamos diante da seguinte questão: se essa falta não é efeito da civilização, poderia bem ser sua origem?

Qualquer parceiro/a sexual é insatisfatório/a, pois estamos diante de uma relação impossível entre os sexos (de que nos fala Lacan, para quem a civilização substitui a relação sexual impossível pelas relações sexuais).

De volta ao relato sobre Solaris, verificamos que a paixão une Hary/Solaris e Chris. Em uma das cenas mais impactantes desta fase, tudo se passa como se as recordações e os sonhos de Chris fossem também memória para suprir Solaris de elementos constitutivos da condição humana. E uma dessas situações é recriada quando Chris, em idade adulta, visita a mãe, ainda jovem, antes de ficar grávida do filho. O encontro é carregado de conotações eróticas, porque a jovem mulher reconhece na visita seu futuro bebê… Não consegue tocá-lo, porque se apercebe enamorada dele. E Chris não entende o que está acontecendo, porque pensa e reage como uma criança de 10 anos. Freud chega à conjectura de que as forças da necessidade e do amor – ao constituir a origem da civilização – poderiam ter resultado em outro quadro.

Bem podemos imaginar uma comunidade civilizada composta por tais indivíduos duplos (casais) que, saciando sua libido em si mesmos, estariam unidos pelos laços do trabalho e de interesses comuns. Em semelhante caso a civilização não teria por que subtrair à sexualidade qualquer soma de energia. Porém, não existe e nunca existiu um estado tão desejável. O que acontece, então, após a dissolução do complexo edipiano, na concepção de O mal estar na cultura?

Retomemos em busca de um fio da meada a partir de Solaris. O que acontece ao par Hary (humana)/Solaris (puro ser) no auge da paixão por Chris? Ela desaparece, enquanto este entra num estado de consciência liminar e febril, mal distinguindo o que acontece. Ficamos sabendo, por meio de Snaut (o comportamentalista), que o oceano está muito “estranho” desde que Hary desaparecera. Era possível, agora, ver a formação de ilhas, como as da Terra, que vão surgindo da massa líquida, da matéria do oceano. Ao que indaga Chris: – O Oceano está mudando? E, em seguida, perde a consciência e se vê na terra natal, a passear pela casa onde viveu desde criança até se casar e lá encontra o pai em meio aos livros, animais, plantas, água, ou seja, a tudo e a todos nos mínimos detalhes, como aparentemente foi a vida que viveu lá. Mas desconfia de algo: chove água quente dentro da casa. Chris então percebe que está numa das ilhas de Solaris, trata-se de algo recriado por Hary. Dessa forma, Eros desempenha um papel-chave na construção de um novo território de cultura, porque consegue articular o drama vivido pelos tecnocientistas (o cartesiano, o comportamentalista) e também o de Chris (o fenomenólogo). Este, em sua paixão por Hary, em meio ao drama de cientista que deveria descobrir a resposta ao enigma do planeta Solaris. Diante dessa nova constelação o astronauta-analista encerra a missão, trazendo de volta a nave e os ocupantes para a Terra (Nesse particular o roteiro e o filme Solaris desagradaram profundamente o autor da história Stanislaw Lem, que renegou a ideia sugerida por Tarkosky no filme de que o cosmo é desagradável, e que a missão deveria voltar para a Mãe Terra. Ao contrário disto, no romance, a estação espacial permanece em órbita de Solaris).

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O papel da cultura, seja com a criação de novos territórios (Eros), seja com a produção da civilização relacionada com os imperativos de Nanké – a deusa grega da Necessidade -, significa hodiernamente criar mediações pela técnica. (Para compreender isto, basta o leitor se perguntar como passar sem qualquer objeto técnico em seus afazeres diários.) Isso nos repõe a pergunta de Freud em O mal estar: – Qual a (nossa) capacidade de introjeção da agressividade?

Em outras palavras, como seres finitos devemos introjetar a destruição e a morte (seja boa ou ruim como uma inevitável finitude), sem recalque e sem que isso acabe por autodestruir a humanidade?

Nesse ponto, aparentemente, Freud se separa de suas concepções anteriores: a civilização não é mais considerada como o inimigo principal da sexualidade. Pelo contrário, une-se a Eros e juntas geram condições de criar comunidades cada vez mais amplas e complexas. Nessa condição o principal obstáculo seria a pulsão de morte, ou variante disso, que Marcuse chama de princípio Nirvana (a morte como transcendência final de todos os conflitos). Em sua luta contra Tânatos, a civilização se serve não apenas da sexualização dos laços sociais, mas lança mão também de outro recurso: produz o retorno da agressividade contra o próprio sujeito. Neste quadro dar-se-ia a introjeção da agressividade pela formação do Super-Eu, cujo controle resulta em um campo de interiorização da autoridade paterna num momento consecutivo à dissolução do complexo de Édipo. O Super-Eu (que é também superego cultural) assume a agressividade que o sujeito dirigia primitivamente contra a autoridade. Ela agora é endereçada ao eu. O que antes era polaridade com o pai se converte nas comunidades amplas em adesão ao chefe (autoridade), contra a qual se pode insurgir, inclusive. O verdadeiro problema da civilização passa ser o choque entre pulsões de vida e pulsões de morte. Ou na dúvida: em que medida a civilização conseguirá sufocar as forças de destruição? Na visão de O mal estar, o caminho que o sujeito moderno escolheu para aquele fim – o sentimento de culpa – age paradoxalmente. Embora vise proteger a comunidade, não o faz no sentido de reduzir os poderes autodestrutivos. O sujeito moderno não tem acesso à chave para neutralizar ou incorporar positivamente as patologias das comunidades culturais.

Freud já assinalava que, assim como os indivíduos, a sociedade inteira pode-se manifestar neurótica. O fundamento do mal-estar na civilização é o sentimento de culpa diante da insatisfação de desejos: a cultura emite uma ordem e não pergunta se é possível ao indivíduo obedecê-la. Pressupõe que o ego de um homem é psicologicamente capaz de tudo que lhe é exigido, que o ego dispõe domínio total sobre o id.

Estaríamos, talvez, diante de um Freud antipedagogo, para quem o que gera sentimentos de culpa não é tanto a renúncia deliberada à satisfação dos desejos, mas sim o não-reconhecimento de seu recalcamento…

Torna-se inevitável para o sujeito o não-reconhecimento de seu recalcamento, apenas porque isso equivale a efetivamente renunciar ao objeto de desejo. No caso da relação entre sujeito e tecnologia, o objeto (que é na sua essência humano, embora tecnocientífico) passou a integrar a galeria nobre dos objetos de desejo. Ledo engano, pois talvez não estejamos diante da satisfação, nem, tampouco, dos desejos, porque o objeto tecnocientífico, enquanto parte da parafernália eletroeletrônica disponível (carros, aviões, bem como toda sorte de máquinas inteligentes, computadores e i-pods), não se torna substituto de um real-de-discórdia-que-nossos-desejos-constituem…

Essa estética do objeto tecnológico – diria Marcuse em Eros e Civilização – instaura uma sublimação repressiva, por isso mesmo bloqueadora de novos territórios culturais. Mas que-real-de-discórdia-carregam-nossos-objetos-tecnocientíficos? Algo muito reduzido, pois sua manipulação nos induz a pensar que não estamos recalcando. Ao contrário, nos dá a sensação de utilização plena do desejo.

A grande diferença é que no passado (século XIX) o recalcamento não mobilizava a capacidade de autodestruição suficiente para o aniquilamento da espécie (essa ameaça que gira perigosamente ora como uma reação ao catastrofismo, ora como suicídio coletivo). Hoje (século XXI) essa capacidade está plenamente instaurada como um sistema de reconstrução/destruição mobilizada pelas coleções de inúmeros objetos falantes da tecnologia do nosso dia a dia.

Freud apenas constatou o problema, afirmando que é certo que “os homens tenham adquirido sobre as forças da natureza um tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldade em se exterminarem uns aos outros, até o último homem”. Sabem disto, e é daí que provém grande parte da inquietação, da infelicidade e da ansiedade coletivas.

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