A gambiarra e o panóptico

Outras Palavras abre série de ensaios sobre rumos da tecnologia, numa sociedade em transe. Provocação inicial: disputa entre controle e liberdade vem do Iluminismo, envolve de Da Vinci a Marcuse e põe em jogo democracia e socialismo

Imagem: Paul Anca
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Às quartas-feiras, Outras Palavra publicará uma série de artigos de Ricardo Neder, intitulada A Gambiarra e o Panóptico (fruto de livro homônimo, publicado pelo Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina, da UnB) que, por meio dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, visa compreender a sociedade de controle e vigilância – e se é possível superá-la e reconstruir o Socialismo e as Democracias.

Por Ricardo T. Neder, na série A Gambiarra e o Panóptico

Este conjunto de ensaios A Gambiarra e o Panóptico ora publicado em formato de fascículos pelo Outras Palavras, foi gerado ao longo de uma década e meia. Os ensaios corporificam múltiplos temas recorrentes dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, também conhecidos pelo acrônimo CTS (Ciencia-Tecnologia-Sociedade) de caráter transdisciplinar que integra todas as áreas das ciências humanas e sociais, e a filosofia da ciência e da tecnologia.

Nestes ensaios o leitor ou a leitora encontrará um tema recorrente: ao paradigma panóptico na governamentalidade se contrapõe e o subverte, o paradigma da gambiarra entre as camadas e a base da sociedade cujo movimento subterrâneo varia entre diferentes momentos históricos perfazendo o que Marx descreve como as ações da Toupeira.

Reside aí o momento zero para retornarmos hoje às pré-condições (viáveis devido às condições tecnocientíficas de comunicação e transmissão de dados atual, automação industrial e o nascimento do ecologismo e do ambientalismo como uma pedra no sapato) para a realização do socialismo e da refundação da democracia.

Reprodução de câmara de rua na China integrante do Sistema de Crédito Social. 2020

Não foi a China que inventou, no século XIX, a noção de sistema de vigilância e monitoramento na filosofia política moderna. Ela provém da época dos Iluministas franceses que conceberam a necessidade de criar sistemas de classificação do tipo enciclopédico.

Algo como uma inteligência sobre a multiplicidade do conhecimento e saberes, a fim de converter isto numa base de informações para orientar a Universidade, Governos e Cidadãos. Foi criticado, incorporado e transformado numa solução pragmática pelo filósofo e ideólogo inglês, pai do liberalismo clássico, Jeremy Bentham (1748-1832), como íntima parte da sua filosofia utilitarista.

Para dirigir a nova sociedade industrial era fundamental ter um sistema do tipo que os enciclopedistas propunham, ainda imperfeito para o pai do utilitarismo, porque não tinha sentido prático. Para orientar prisões, estabelecimentos industriais e, sobretudo, as escolas sob a supervisão de mentes diligentes, era necessário algo mais! Por isto propôs uma pedagogia que denominou chrestomáthica (ou em grego, “o que conduz à aprendizagem útil”). Foi concebida para o que lhe pareceu a melhor solução para controlaros pobres, indigentes, criminosos e as crianças das classes trabalhadoras. Chamou este sistema de panóptico.

Um sistema que englobaria toda a sociedade destinado a reformar a assistência social e demais atividades governamentais e industriais privadas, mas sobretudo capaz de levar ao controle e supervisão permanente das classes trabalhadoras e do exército industrial de reserva – assim chamado por Marx (1818-1883) –, o excedente da força de trabalho que os patrões manipulam até hoje, com apoio de governos para rebaixar o salário médio, e obter a aquiescência dos que estão empregados a aceitar o despotismo fabril a que estão submetidos.

Vários reformadores sociais, a exemplo de Bentham, queriam normalizar ou naturalizar o funcionamento desta dupla ilusão sob o capitalismo industrial financeiro e comercial ainda hoje persistente que atende pelo nome de representação política na esfera pública, enquanto se mantém o despotismo empresarial sobre a força de trabalho, lhe proibindo de sobreviver sem ter que vender sua força de trabalho!

Para fazer crer que na política vigoraria a democracia parlamentar, e no interior dos estabelecimentos industriais o regime despótico, foi necessário em todas as épocas do capitalismo implantar sistemas de vigilância e controle. Mais recentemente, a partir do pós-II Guerra, a este despotismo se juntou a publicidade, o marketing, a sociedade de consumo, e não menos importante, a manipulação de corações e mentes mediante a compulsão ou satisfação psicológica para premiar comportamentos.

Bentham, como se sabe, foi lido e assimilado, criticado e transformado por Marx (sobretudo em O Capital) num ícone da burguesia fundadora da ideologia de que haveria assimilação de toda a força de trabalho à sociedade democrática (parlamentar) como parte do projeto industrialista.

Marx apontou também a falsidade deste projeto ideológico impresso no caráter do modelo institucional ora como controle despótico rigoroso na fábrica, ora na política parlamentar como forma de postergar, frustrar e reprimir as demandas democráticas das classes trabalhadoras.

As características do panoptismo, pensado como modelo totalitário, onde toda sociedade estaria englobada de uma forma ou de outra, teve êxito primeiramente no espaço prisional. Isto explica por que Bentham tornou-se tão conhecido, especialmente através da obra de M. Foucault (1926-1984), unicamente pela reforma da teoria do direito e das prisões.

Mas a leitura contemporânea sobre o panóptico vai muito além, e seus fundamentos devassam a relação entre a sociedade disciplinar e a criação de espaços de internamento, disciplina, inspeção, observação, e vigilância. Esclarecem sobre os jogos de força configurados na trama social para expor algo como o paradigma panóptico na governamentalidade.

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A criação de um sistema de crédito social mediante inteligência artificial e reconhecimento facial com pontuação negativa e positiva para tod@s é o que promete a mais recente operação de engenharia social chinesa iniciada em 2014.

Agora (2020), com a quarentena da covid-19, chegou a seu apogeu com a disseminação do sistema entre várias cidades mais populosas do país. Vale a pena situarmos o noticiário ocidental pelo lado do Atlântico, que carregou na tintura negativa ao apontar para o simplismo do panoptismo (diferentes fontes utilizam uma mesma retórica anticomunista):

A fase de teste do sistema começou em 2014, com apenas alguns governos locais aderindo ao modelo. A política foi comparada ao reality show Big Brother e à série Black Mirror por ter um potencial assustador de facilitar o controle do governo sobre a população. Em 2020, o sistema deve ser implementado em âmbito nacional na China”1.

Se você assistiu ao episódio Nosedive, da série Black Mirror, já sabe mais ou menos como o sistema funciona, apesar de a contraparte chinesa não ser tão exagerada quanto o capítulo. A ideia do governo é privilegiar cidadãos que estejam com suas responsabilidades em dia, enquanto pune aqueles que cometeram violações ou crimes”2.

Pedestres e motoristas identificados: não há lugar onde se ocultar na China. O sistema digital que ranqueia os cidadãos chineses, classificando-os em bons, maus, confiáveis ou perigosos tem gerado enorme discussão pelo mundo. Para muitos estudiosos de China, trata-se da materialização dos cenários distópicos apresentados séries como Black Mirror ou em livros como 1984. A verdade, até agora, é que o sistema não tem sido tão mau, embora apresente potencial para ser até mais opressor do que a realidade proposta nas séries de ficção científica. Sistemas que classificam cidadãos não são uma invenção chinesa. No Brasil, quem tiver o CPF na lista de inadimplentes (…) e mesmo quem tem o nome limpo pode receber mais ou menos crédito de instituições financeiras de acordo com seu ‘relacionamento’ com o banco, nome ensaboado para um sistema de ranqueamento dos correntistas”3.

Imagine que todas as suas atividades e comportamentos são monitorados e pontuados em uma grande base de dados nacional: desde sua informação fiscal, até o tempo que você passa jogando videogame. O cenário acima poderia ter saído do romance clássico de George Orwell, 1984, em que os cidadãos estão sempre sob vigilância de uma entidade chamada de ‘o grande irmão’. Lembra também um episódio da série de TV Black Mirror, no qual cada atividade dos personagens rende ‘pontos’ em um futuro distópico. Mas não é ficção. Esta é uma política de Estado em planejamento na China. Controle ou confiança?”4.

Os chineses não têm uma ‘tv’ com um Big Brother controlado por Xi Jinping. O objeto aterrorizante inventado por George Orwell em seu romance de 1984 torna possível controlar as ações de cada cidadão. Isso não existe na China. Ainda não. No entanto, o Ocidente identificou imediatamente a classificação dos cidadãos chineses como um ‘sistema orwelliano’ e sentiu a distopia tecnológica da série Black Mirror muito próxima da realidade. O sistema assusta porque vemos nele um espelho do nosso futuro: a classificação já não é onipresente no comércio eletrônico e na economia compartilhada?”5

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Ao contrário do chinês, os sistemas de vigilância ocidentais estão entre dois tipos: um exige sua servidão voluntária (tipo Google), e outro seduz para você se projetar como imagem à la sociedade do espetáculo (Gui Debord – 1931/1996), vale dizer, só existe quem se mostra.

Sistemas de vigilância e controle, monitoramento de pessoas e suas redes sociais, suas preferências, antipatias declaradas, tendências políticas estão associadas a sistemas de códigos técnicos. Estes captam um apanhado gigantesco de dados sobre nosso comportamento pessoal e não estamos ganhando absolutamente nada com isto. Por meio do rastreamento dos websites que visitamos, onde compramos em lojas físicas, aplicativos que utilizamos, tudo que fazemos com cada um deles está registrado6.

As ameaças ao regime social sob a democracia parlamentar são óbvias, pelo lado da liberdade negativa a qual no Ocidente estamos habituados. Aparentemente, o que mais incomoda no panopticismo chinês é o fato de que o sistema de crédito social rompe com a antiga concepção de paradigma panóptico na governamentalidade. Com isto cria um terceiro tipo de sistema de vigilância que não é nem Google nem Facebook.

Mas não é o Ocidente berço da internet?

Então por que a suspeição um tanto cínica das agências e seus escribas (acima mencionados) ao não enxergar que é na filosofia política do Ocidente de onde podemos traçar o marco zero destes sistemas, em sua essência, forma e conteúdo para elidir a fratura e (em muitos países, abismo) entre o despotismo fabril na produção, e a democracia representativa na fachada política da sociedade?

A mensagem de Bentham, embora tenha fracassado na sua época, foi lida e assimilada, criticada e transformada por Marx em fonte de referências sobre como a ideologia burguesa agiu de fato, para estabelecer a cisão entre política, e a esfera da dominação econômica a fim de generalizar um projeto industrialista para toda sociedade.

Marx constatou que este projeto dependia da utilização crescente da inteligência científica e tecnológica para aumentar a produtividade geral e tornar a subordinação impessoal, controlada pelos sistemas técnicos. Marx observou também que o caráter despótico na esfera da produção se reproduzia no modelo institucional da política.

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O paradigma da gambiarra exige da tecnociência contemporânea outra fatura: a entrega de outras formas para viabilizar a coordenação e o planejamento socialista capaz de gerar a comunhão do povo entre si, e com a matéria com a qual é feita os seus sonhos, de tal forma que ficam acanhadas e feias, quase horrendas ciência & tecnologia absortas noutro campo exclusivo da potencialização do Capital.

Autonomia operacional, assim trabalhada na teoria crítica da tecnologia de Andrew Feenberg (1941-), seguindo as pegadas de Herbert Marcuse (1898/ 1979), é a capacidade adquirida mediante o uso do dispositivo tecnológico sob controle remoto nas mãos de um sujeito tecnocientífico que lhe permite operar ações e efeitos à distância. Cria a trama na qual o poder equivale a dotar o sujeito da capacidade de agir à distância, sem ter que receber de volta as consequências (nefastas ou não) de seus atos.

Este poder tem longa história de dispositivos militares ou civis, desenvolvidos desde os desenhos-projetos de artefatos de Leonardo da Vinci (1452-1519) e segue ininterrupto modernidade adentro numa repetição enfadonha.

O que mudou recentemente? Os dispositivos continuam a gerar influências de tal forma a que o sujeito tecnocientífico possa se beneficiar dos resultados sem se envolver explicitamente, ou atuar numa ação política direta convencional.

Diante da derrocada do regime social sob a democracia o problema que nos aflige, enquanto vítimas potenciais deste poder, é o mesmo de toda sociedade industrial que se torna vítima do determinismo tecnológico, imposto pela razão cínica: nos submetemos a um ordenamento e coordenação de ações coletivas articuladas a uma vontade que é exercida a distância por seus operadores tecnológicos.

O tema da autonomia operacional tem sido quase uma obsessão; está omnipresente na filosofia da tecnologia, na sociologia e antropologia da tecnologia, na análise da teoria crítica da cultura, na novelística, no romance e no cinema de ficção sobre as distopias.

Um motivo de preocupação recorrente é o efeito vivido pelo próprio sujeito tecnocientífico manipulador que passa de algoz a vítima desta manipulação (entre inúmeros, ver em especial os filmes Prometeus e o Caçador de Andróides, de um mesmo diretor) diante da derrocada do regime social sob a democracia.

Os ensaios aqui apresentados sob o título A Gambiarra e o Panóptico tratam desta dimensão cultural e civilizatória que nos coloca na encruzilhada entre o panóptico Google, Facebook e o Sistema de Crédito Social chinês.

A questão da autonomia operacional da técnica no socialismo vai exigir um contra-paradigma que propomos que seja o da gambiarra. Precisamos deste último porque sem ele não serão enfrentados o Estado e as Corporações, e m direção a uma governamentalidade na qual se tornaram possíveis novas construções descentralizadas e fortemente articuladas entre si, sem necessidade de superpoderes imperiais.

As convergências serão elaboradas a partir das formas de Bem Viver (buen-vivir) dos povos e comunidades indígenas, sociedade camponeses e povos tradicionais. A combinação com a base tecnocientífica para tornar esta aproximação está por ser construída no campo das Ciências Humanas e Sociais, Artes e Ciências da Saúde e da Agricultura Agroecológica capazes de nos levar para além do cartesianismo nas Ciências da Vida e da Terra, e sobretudo das Exatas hoje dominadas pelas Ciências da Computação.

Tal é o quebra-cabeças para o qual convidamos o/a leitor/a em A Gambiarra e o Panóptico; que nos exige superar a razão cínica e impor a lógica da adequação do técnico e do científico a cada situação de economia solidária, étnica, local, territorial e sobretudo de revitalização da técnica como luta contra o determinismo tecnológico.

Isto equivale a desdenhamos a máquina como veículo de subordinação e escravização pela autonomia operacional. Este esforço exige que imaginemos uma solução capaz de rechaçar esta influência da mesma forma a anular tal poder e construir contrapoderes.

Para tanto a gambiarra é esta qualidade da relação do sujeito com a técnica que passa também por ele próprio, sem se submeter a mediação e perder a liberdade no trabalho associado.

1. Entenda o sistema de crédito social planejado pela China. https://www.poder360.com.br/internacional/entenda-o-sistema-de-credito-social-planejado-pela-china/

2. Sistema de crédito social proíbe 23 milhões de pessoas de viajarem na China https://canaltech.com.br/governo/sistema-de-credito-social-proibe-23-milhoes-de-pessoas-de-viajarem-na-china-134145/

3. Sistema de crédito social chinês funciona porque o povo gosta de vantagem

4. O plano chinês para monitorar – e premiar – o comportamento de seus cidadãos. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42033007

5. China chega à fase final de sistema de avaliação de cidadãos e preocupa Ocidentehttp://www.rfi.fr/br/mundo/20200102-em-2020-china-termina-de-testar-seu-sistema-de-cr%C3%A9ditos-sociais-e-assusta-ocidente

6. John Lanchester. Você é o produto. Revista Piauí. (pag. 52-60). set. 2017). https://piaui.folha.uol.com.br/materia/voce-e-o-produto/

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3 comentários para "A gambiarra e o panóptico"

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