Crônica: O labirinto antissocial das Big Techs 

A era da pós-verdade aniquila laços sociais e cria realidade paralela e plana. O dedo em riste, sempre pronto para clicar, é negócio lucrativo. É possível estar de fora desse mundo? “A civilização tem de ser defendida contra o indivíduo”, dizia Freud

Capa do livro “Como me tornei estúpido”, de Martin Page
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Quando pensávamos ter entrado num espaço democrático para expor ideias, falar sobre o que quiséssemos ou o que não podíamos nos meios de comunicação tradicionais e comerciais, não fomos (totalmente) enganados. O espaço não está aberto ou livre, ele está sem regulação.

Se fomos ingênuos em acreditar que a liberdade de expressarmos nossas opiniões viria justamente pelas mãos do capital, principalmente na era neoliberal, é outra questão. O que se coloca para todos é se essa liberdade (individualista) combina com laços sociais e democracia.

Deixar-nos arrastar por essa rede foi fácil, nem opusemos muita resistência. Conseguimos minutos de fama. Pudemos dar opinião, mas, também, julgar e condenar, fazer “justiça” com os próprios dedos; seguir e sermos seguidos; mobilizar e desmobilizar. Dias de glória.

O enredamento foi se avolumando. Criou-se um novo fluxo social à margem do que até então concebíamos como espaço público (e privado) de convivência em que os indivíduos seguem regras, regulamentos e instituições para preservação da própria espécie. O indivíduo protegido dos seus próprios instintos de destruição, como nos alertou Freud: “[…] a civilização tem de ser defendida contra o indivíduo […]”.1

Se nos incutiram a ideia de rede social no sentido de algo que conecta, toca e cria laços sociais, hoje percebemos que ela captura, aprisiona, nos leva para o abate – ou somos nós que levamos alguém para esse matadouro.

As redes das Big Techs são labirintos antissociais, um campo fértil para a extrema direita em âmbito planetário. Há pós-verdade para todos os gostos: para recriar a origem das espécies; para tornar a Terra plana, de novo; para mobilizar a revolta das vacinas contra a imunização da covid-19 em pleno século XXI; para criar mitos; para até destratar a obra fenomenal de Chico Buarque. [Ouvi, numa mesa de bar, que o artista brasileiro era “um encostado”, como se nunca tivesse escrito uma música. Ao final, ainda escutei a sentença: “Você não sabia?”. Como não cantarolar, na hora, os versos “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”?2] Nessas e em tantas horas, ultimamente, dá vontade de gritar: parem o mundo que eu quero descer.

Desfigura-se o que é certo ou o que é errado na vivência social. O que pode e o que não pode. Pior, agora tudo pode.

As plataformas digitais nos oferecem a liberdade individualista do sujeito sem história e sem memória – instrumentalizada política e ideologicamente à extrema direita. Uma “liberdade” que pode significar a eliminação social, política, simbólica e até física do outro.

Hoje estamos todos juntos e misturados numa lógica incessante e sacrificante de disputa de narrativas e discursos, de criação de significantes e significados… em pós-verdades ou em verdades mentirosas. Disputa que se faz na dimensão da irracionalidade, com exibição de “provas” via infraestrutura ideológica das gigantes empresas de tecnologia – vídeos do YouTube e do TikTok, mensagens de WhatsApp com link e tudo, notícias selecionadas pelo Google [recentemente tivemos o caso desse buscador em atividade política explícita contra o Projeto de Lei 2630/2020, das fake news, em discussão no Congresso Nacional], postagens de “especialistas” ou influencers etc.

No espaço digital, a história é inexistente, a civilização pode ser qualquer coisa. Todas as vozes falam, ou são silenciadas. Não há o que entendermos. O caos é a regra, o caminho.

No mesmo espaço, convivem o “bom dia” e o “boa noite” acompanhados por mensagem espiritualizada ou de alguma imagem religiosa ou fofinha e todo tipo de discurso de ódio.

Não temos mais tempo para refletir, observar, pensar fora dessa máquina. Viramos autômatos sempre com o dedo em riste pronto para clicar, compartilhar, gostar, odiar, julgar e condenar.

Nesse cenário, os grupos de família, da ginástica, do trabalho, de colegas e ex-colegas de escola e tantos outros – que nos conectam, principalmente, pelas memórias afetivas – nos aplicativos de mensagem são peças fundamentais dessa desordem!

Na dúvida sobre o que é certo ou errado, do que devo acreditar ou não, sofro com a desilusão e imobilizo meus sentidos e minha racionalidade. O eterno retorno do “todos são iguais” para o conformismo de que não podemos confiar em ninguém, não podemos mudar nada, nenhum político presta etc. e tal.

Como ensina o professor Eugênio Trivinho3, “os modelos de negócio das Big Techs”, ao destruir, “recriam os laços sociais” mirando “o espelho de seus interesses transnacionais”. Neste plano, entendo que as redes reforçam os meios de comunicação tradicionais e comerciais useiros e vezeiros em condenar seus opositores e absolver seus amigos. “No Brasil, o lawfare contra o [presidente] Lula [no biênio 2018-2019] é o maior exemplo recente”, observa o professor.

“A pós-verdade não foi inventada pelas Big Techs”, ao que o professor completa: “antes, nasceu na época marcada por elas, em razão da cooptação e instrumentalização das plataformas digitais pela extrema direita, em âmbito nacional e internacional.”

Ele prossegue: “O chamado ‘contrato social’,desde [Jean-Jacques] Rousseau, é imaterializado e, portanto, repactuado na direção da perpetuação do capitalismo tecnologicamente avançado, articulado em tempo real.”

O mundo paralelo das plataformas digitais – essa infraestrutura do capitalismo no século XXI – trabalha no apagamento ou recriação, num clique, das memórias e referências históricas. No mesmo ritmo, outras são inventadas.

Cenário que se constrói (ou se destrói) com a cumplicidade de massas, expressa em diversas ações, como lembra o professor: pela nossa adesão a esse ambiente, com a aquisição incessante de equipamentos telemáticos, fazendo download de softwares e aplicativos e com cada clique, busca, troca, compartilhamento que fazemos.

“Desde que ‘aceitamos’ o ‘contrato social’ virtual [das Big Techs], estamos implicados(as) na construção desse mundo que legitimamente criticamos”, destaca o professor.

Como ficar (ou estar) fora desse mundo? Como não dar um clique nervoso? Como não o usar para expor reflexões e aflições? Como se manter são e nesses tempos? Eis algumas questões que nos (me) afligem.


1 FREUD, Sigmund. O Futuro de Uma Ilusão. In: Obras completas, volume 17: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 234.

2 “Apesar de você”, canção de Chico Buarque, de 1970. Disponível em: http://www.chicobuarque.com.br/obra/cancoes

3 Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, o Professor é colaborador assíduo de diversos sites. Os textos estão disponíveis em: https://aterraeredonda.com.br/tag/eugenio-trivinho/; https://revistacult.uol.com.br/home/?s=Eug%C3%AAnio+Trivinho

Os trechos marcados com aspas a partir deste ponto no texto baseiam-se ipsis literis em correspondência privada com o autor.

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