O marxista que quer reinventar as cidades

David Harvey provoca, em longa entrevista: é hora de adaptar ambiente urbano ao tipo de gente que queremos ser

Rebelião em El Alto (Bolívia), 2003. Para Harvey, foi um dos momentos históricos em que sociedade retomou, do capital, destino das cidades

Rebelião em El Alto (Bolívia), 2003. Para Harvey, foi um dos momentos históricos em que sociedade retomou, do capital, destino das cidades

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Entrevista a Vince Emanuele | Tradução: Sônia Scala Padalino

Esta é a introdução da entrevista. Leia as partes I e II

Se vivemos em cidades que nos infernizam e aprisionam, qual a causa de sua desumanidade? E, mais importante: que caminhos permitirão transformá-las? As respostas, para esta questão crucial, raramente coincidem. Às vezes, são genéricas demais e paralisam: núcleos urbanos insuportáveis seriam consequência necessária de um sistema que coloca o lucro acima dos seres humanos. Só o fim do capitalismo abriria espaço para novas cidades. Em outros casos, as respostas são muito pouco ambiciosas. Diante de adversários poderosíssimos – o poder econômico e uma política institucional cada vez mais impermeável às aspirações sociais – deveríamos nos concentrar em humanizar espaços restritos. Uma bairro, uma praça, uma horta comunitária.

Acaba de percorrer três cidades brasileiras – Rio, Florianópolis e São Paulo – David Harvey, um pensador que busca, há décadas, soluções para este impasse. Geógrafo, Harvey é também marxista. Para ele, portanto, o degradação das cidades está associada ao capitalismo.

Mas este britânico de 77 anos não se satisfaz com conclusões fáceis. Seu desafio intelectual tem sido, desde que se dedicou ao estudo da urbanização, localizar os mecanismos precisos por meio dos quais as relações capitalistas deterioram a cidade. Harvey sabe que identificar tais mecanismos ajudará a revertê-los; ao passo que repetir chavões poderá, no máximo, satisfazer egos.

Sua investigação o tem levado a conclusões importantes. Por trás de movimentos aparentemente contraditórios – em certos momentos, o centro das metrópoles esvazia-se, para se supervalorizar e aburguesar, no período seguinte –, há necessidades específicas relacionadas à acumulação de capital. Nos EUA, por exemplo, os centros foram abandonados a partir da década de 1950 (morar em Manhattan era baratíssimo…), quando esgotou-se o esforço de guerra e o sistema precisou realocar recursos na indústria automobilística, abertura de estradas e construção imobiliária intensa nos subúrbios. Trinta anos depois, uma nova supremacia (a dos mercados financeiros) estimulou uma volta às Velhas Cidades. Na primeira fase, agrediu-se a natureza. Na segunda, expulsaram-se os pobres…

Em certos momentos, prossegue Harvey, torna-se possível romper esta lógica. Para o geógrafo, a Comuna de Paris (1871) não foi apenas uma tentativa de expropriar a burguesia, mas a busca de “uma nova vida cotidiana, em reação ao desenvolvimento especulativo e consumista da classe alta”. Mas não é preciso esperar por estas rupturas, para começar a reinventar a cidade.

Harvey sabe que “o replanejamento é algo de longo prazo”. Por isso, valoriza também processos aparentemente menos radicais. Por exemplo, a invenção dos Orçamentos Participativos, que foram mantidos em Porto Alegre por cerca de dez anos, na virada do século. O decisivo é negar a lógica que reduz a cidade a um mero território de valorização capitalista e começar a fazer perguntas: “Como deve ser nossa relação com a natureza? Que tipo de urbanização queremos”?

Em sua passagem pelo Brasil, David Harvey fez palestras e lançou a primeira versão em português de uma obra antiga: “Os limites do capital”, publicado em 1982. A entrevista a seguir foi feita há alguns meses, por uma rádio alternativa dos EUA (“Veterans’ Unplugged”) e debate uma obra mais recente: “Rebel Cities” (2012), ainda sem tradução em português (embora tenha inspirado a coletânea brasileira “Cidades Rebeldes”, sobre os protestos de junho). É abordando este tipo de mobilização, aliás, que o geógrafo encerra sua conversa. “O conselho que dou a todos é ir para as ruas o mais possível, enfrentar a desigualdade social e a degradação ambiental. (…) Gostaria que as pessoas se tornassem ativas, avançassem. Esse momento é crucial. O grande capital não cedeu em nada até agora. Precisamos produzir um impulso enorme se quisermos ver algo diferente em nossa sociedade”.

Por sua extensão (quase um ensaio), a entrevista será publicada, por “Outras Palavras” em duas partes. Boa leitura! (A.M.)

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