Por que é insano privatizar a Eletrobrás

País sofre há três décadas tarifaços e apagões desnecessários. Uma revolução tecnológica, em curso, permitiria produzir energia farta, limpa, barata e gerada em parte localmente. Em vez disso, optamos por saída preguiçosa e convencional

Roberto Pereira D’Araújo, em entrevista a Antonio Martins

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> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista com Roberto Pereira D’Araújo, que está transcrita ao seu final. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

Um novo aumento nas contas de energia elétrica estorvará os brasileiros, já às voltas com forte inflação de alimentos, a partir deste mês. Em vinte anos, desde o desmonte do antigo “sistema elétrico” público, as tarifas residenciais subiram 60% acima da inflação; as industriais, 162%. Agora ocupam, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), os segundo lugar entre as mais caras do mundo, perdendo apenas para as da Alemanha. Mas ainda assim, os riscos de racionamento não estão afastados. Nem o de se multiplicarem os apagões, que são cada vez mais frequentes desde 2008 e deixaram o Amapá às escuras por mais de uma semana, em novembro do ano passado.

Nossa matriz energética é cada vez mais suja: as fontes fósseis, cujo uso era residual até 1998, já respondem por mais de 26% da energia gerada e sua participação não para de crescer. Em 21 de junho, o Congresso aprovou proposta do governo Bolsonaro para que esta marcha rumo ao fundo do poço escorregue mais um degrau. Se não houver resistência, a Eletrobras, último marco de uma rede geradora invejada em todo o mundo há poucas décadas, será vendida até fevereiro.

O que levou o Brasil a regredir tanto, e tão velozmente? Quais os caminhos para reverter a queda? Em 28 de junho, o engenheiro Roberto Pereira D’Araújo, um dos diretores do Instituto Ilumina falou a Outras Palavras a respeito. Sua entrevista, enriquecida por demonstrações com gráficos e tabelas, compõe o projeto Resgate – um esforço para debater a reconstrução do Brasil em novas bases, realizado em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo. Há boas notícias. Está em curso uma revolução tecnológica na geração de energia, que torna cada vez mais eficientes e baratas as fontes limpas, em especial a solar fotovoltaica. Por suas características naturais e de território, o Brasil é um dos países que mais pode tirar proveito das transformações técnicas. E elas abrem espaço, também, para reverter a predominância quase total das grandes obras. É possível gerar parte relevante da energia em pequenas propriedades rurais, ou mesmo no telhado de residências. Se a regulamentação for favorável, esta possibilidade pode reduzir drasticamente as contas de luz domiciliares e gerar renda – em favor da agricultura familiar ou de cooperativas agrícolas, por exemplo.

Há também dois enormes obstáculos a superar – a privatização e os “ajustes fiscais”. A primeira entregou um setor altamente estratégico a corporações e fundos financeiros interessados essencialmente em retirar o máximo de receita dos consumidores. Os segundos achataram, mesmo durante os governos de esquerda, o investimento público. A fala de D’Araújo pode ser resumida esquematicamente nos pontos a seguir — ainda que correndo o risco de simplificar seu pensamento.

1. Numa época em que o mundo todo busca gerar mais energia e fazê-lo a partir de matrizes energéticas limpas, o Brasil pegou a partir de 1995 uma contramão esdrúxula. À época, éramos um dos poucos países do mundo a produzir eletricidade com uso marginal de combustíveis fósseis. Planejado no governo JK, construído a partir de João Goulart e ampliado durante os governos militares, o chamado sistema elétrico público tirou proveito de uma singularidade brasileira: uma rede fluvial incomparável, que faz as quedas d’água moverem turbinas sem gastar combustíveis e sem poluir o ar. A descrição deste sistema e suas virtudes foi feita de maneira magnífica por César Benjamim, num longo artigo publicado pela revista Caros Amigos em 2001 e disponível hoje aqui. Roberto D’Araújo, um dos especialistas que informou a pesquisa de Benjamin, lembra-se do assombro que suas falas provocavam no exterior, sempre que descrevia, em palestras, a rede geradora brasileira.

2. Desde o pós-Constituição de 1988, porém, o Brasil viveu o estrangulamento do gasto público, provocado pela crise financeira da dívida externa e pela virada política para o neoliberalismo. O sistema elétrico público perdeu os investimentos de que necessitava para corresponder ao crescimento do consumo. A crença, então predominante, nas supostas virtudes dos mercados, para regular a vida social, levou à solução apresentada à época como “moderna”: privatizar. O sistema foi fatiado, pois era grande demais para ser vendido por inteiro. Hoje, capitais privados controlam seus três processos essenciais: geração (onde comparecem com 60%), transmissão (85%) e distribuição (quase 100%).

3. Fez-se o caos. A mesma matéria de Caros Amigos aponta como o desmembramento do antigo sistema elétrico público levou ao “grande apagão” de 2001. Cada empresa privada atuante no setor tinha como objetivo lucrar ao máximo. Mas ao agir em nome do interesse próprio, elas prejudicavam outros integrantes da rede. Era como se, num corpo biológico qualquer, cada órgão passasse a agir levando em conta apenas preservar-se ao máximo, o que certamente levaria à morte do organismo.

4. Os governos de esquerda, que começam logo a seguir, compreendem o drama. Mas não são capazes de romper com o neoliberalismo fiscal e a compressão do investimento público. Sobrevém então, conta D’Araújo, uma fase híbrida, em que o Estado tenta coordenar os agentes privados do setor sem, no entanto, romper com sua lógica disfuncional. O braço financeiro desta política é o BNDES, que financia boa parte dos investimentos privados. O outro é a Eletrobrás – que não foi privatizada e continua a ser a maior empresa geradora da América Latina. Seguindo a lógica então predominante, ela atua como sócia minoritária – e, em especial, como fornecedora de seu vasto conhecimento –, para um conjunto de investimentos corporativos. Talvez o emblema desta época seja Belo Monte, que gerou conflito com indígenas, ocupação desordenada e devastadora do município de Altamira (PA), graves danos ambientais, revolta entre setores progressistas da classe média urbana de outras regiões e um enorme desgaste da imagem das hidrelétricas.

5. A privatização da Eletrobras, tentada por Temer e agora por Bolsonaro, é talvez o movimento mais torpe desta história. Se concretizada, ela privará o Estado brasileiro do instrumento que lhe resta para dar algum regramento à geração energética. E, pior: dará a agentes cujo objetivo principal é lucrar ao máximo o controle sobre a maior parte dos rios brasileiros. Sua vazão, devido à opção do país pela energia hídrica, está regulada, em todo o território nacional, por represas. Se operado em favor do Comum, o sistema evita secas e cheias e ajuda a regular a diversidade climática e pluviométrica do país. Nas mãos de corporações que pensam acima de tudo em seu interesse próprio, ele pode produzir o caos.

6. Duas novidades – uma no plano da tecnologia, outra no das ideias – podem reverter o pesadelo. A primeira é o enorme avanço das energias limpas. A fonte solar voltaica (que não produz aquecimento, mas eletricidade), em especial, está a ponto de se tornar a mais barata e mais produtiva. No Brasil, um dos países mais ensolarados do mundo, a privatização caótica relega-a a menos de 1% do total gerado. Mas em outras condições, ela pode ter duas enormes vantagens.

Como as células geradoras são compactas, até pequenas área rurais, ou residências, podem gerar energia e integrá-la às redes de distribuição. Na Alemanha, conta D’Araújo, o Estado subsidia esta geração, recompensando os que a fazem com um bônus sobre o que produzem. No Brasil, a distribuição privada faz o contrário: reduz, por meio de várias formas de desconto, o que deveria pagar aos pequenos produtores.

E a energia solar fotovoltaica também pode ser produzida em grandes áreas. D’Araújo faz as contas. O avanço tecnológico permitiria gerar toda a energia hoje consumida no Brasil em painéis que ocupariam metade da superfície de Sergipe. Talvez seja uma superfície menor que a soma das áreas das represas de hidrelétricas. Mas, imagina D’Araújo, é possível pensar uma solução integrada. Implicaria instalar placas solares móveis sobre os reservatórios hídricos já existentes. A energia fotovoltaica gerada seria conduzida às redes de transmissão das próprias hidrelétricas, reduzindo os investimentos necessários. E, ao contrário de outros países, o Brasil não precisaria inutilizar parte relevante de seu território com a instalação de grandes fazendas solares.

7. A segunda novidade bem-vinda é o declínio do neoliberalismo fiscal. Por décadas a Ásia, e em especial a China, o transgrediram, sempre com êxito notável. Agora, sob Joe Biden, o rechaço ao chamado “consenso de Washington” começa no próprio país de onde ele surgiu. Os EUA estão mostrando que, ao contrário da lenda neoliberal, os Estados não estão limitados, como as famílias, a “gastar apenas o que arrecadam”. O investimento público pode ser uma ferramenta potente para assegurar serviços sociais de excelência, desmercantilização da vida, renovação da infraestrutura, transição agroecológica, geração de empregos dignos. Um Brasil pós-Bolsonaro estará disposto a fazê-lo? O projeto Resgate aposta que sim. O diálogo com Roberto D’Araújo mostra que é perfeitamente possível – e mais que necessário.

Eis a transcrição do diálogo

Antonio Martins: Olá, eu sou Antonio Martins, editor do site Outras Palavras, esse é o Projeto Resgate, por meio do qual nós queremos aprofundar a luta contra a extrema-direita no Brasil e, em especial, dizer que – digamos assim – o momento seguinte não pode ser simplesmente a volta ao velho normal. A volta ao velho normal significaria a volta às quatro décadas de regressão, de reprimarização, de neoliberalismo. O Resgate é um projeto para fazer, ao longo de um ano, um conjunto de diálogos com pensadores e ativistas que estão refletindo sobre o Brasil, para compartilhar as análises, as pesquisas, as ideias deles, para um outro país.

O Resgate, a série de debates regular do Resgate, começa na próxima quinta-feira, dia 8 de julho, com um diálogo entre o Ladislau Dowbor, um velho economista desenvolvimentista, e o Daniel Conceição, da nova geração de economistas anti- ortodoxos. Nós estamos fazendo, como preliminar para essa série longa de encontros, algumas conversas com pessoas que atuam sobre temas importantíssimos, na conjuntura.

Nós temos a satisfação muito grande, a honra de estar hoje com o Roberto D’Araújo, diretor do Instituto Ilumina, estudioso, há décadas, do sistema de geração de energia, geração, transmissão e distribuição de energia, no Brasil. Defensor de que a energia seja um bem público no Brasil. Ele vai nos falar um pouco sobre a ameaça de privatização da Eletrobras e todo o processo que nos levou até aí, até isso, com apagões, piora da matriz energética, aumento das contas… em especial, vai nos dizer por onde pode vir uma uma esperança de transformação dessa realidade.

Boa noite, Roberto! É uma satisfação muito grande ter você aqui com a gente.

Roberto D’Araújo: Boa noite, Antonio! Eu que agradeço! Para a gente poder mostrar o que está…para ver se eu consigo melhorar um pouquinho esse país, para os meus netos, isso porque eu estou realmente preocupado.

Antonio Martins: A gente estava brincando outro dia, no Outras Palavras, que a realidade atual é tão opressora, tão angustiante, que a gente tem que projetar as coisas para o futuro, que é lá onde a gente pode encontrar alguma forma de…

Roberto D’Araújo: Uma felicidade, né?

Antonio Martins: Uma felicidade.

Roberto D’Araújo: Vamos imaginar uma felicidade lá.

Antonio Martins: Roberto, eu começaria te fazendo uma pergunta mais geral, para depois a gente entrar nos detalhes. Há umas 3 décadas, o Brasil começou a privatização do chamado sistema elétrico, sob o governo do Fernando Henrique. Se dizia que era necessário modernizá-lo e que essa modernização não poderia ser feita sob um regime predominantemente público. Nesses trinta ou trinta e cinco anos, nós tivemos um apagão, nós tivemos um aumento dramático das contas de luz, pagas pelo consumidor individual e pelas empresas, nós tivemos a piora da matriz energética brasileira, e agora nós estamos sob o risco de um novo apagão, de um aumento exorbitante a mais nas contas de luz e da ameaça de privatização da Eletrobras. Por que esse discurso continua colando? E o que tem a ver a privatização, que agora pode se aprofundar, do sistema elétrico com esses retrocessos todos que a gente viveu nessas décadas?

Roberto D’Araújo: Antonio, eu às vezes fico, assim, impressionado! Como a gente não reage a alguns dados e algumas informações que são fáceis de se perceber? Por exemplo, países que têm base hidroelétrica são um clube super fechado. Você só tem a China, o Canadá, o Brasil, a Rússia, a Índia, a Noruega, a Suécia e a Venezuela que tem, digamos assim, um percentual, aliás, e também Estados Unidos, que apesar de não ser um percentual grande do seu consumo, é um exemplo para nós, porque as grandes hidroelétricas americanas, elas pertencem ao Copsa … que é uma instituição do exército americano.

Mas todos os outros países não privatizaram as suas usinas, não simplesmente… A Suécia, por exemplo, tem uma parte privada, mas ela tem a Stat Kraft que é uma empresa estatal.

Antonio Martins: Todos os países desse grupo que você está falando, né?

Roberto D’Araújo: Isso. O clube hidroelétrico. Portanto, olha que coisa impressionante, se o Brasil sair desse clube, clube hidroelétrico, que tem ainda uma parte da sua energia controlada pelo setor público, ele vai ser um bicho estranho. E o que eu fico impressionado é que isso, só essa informação, já deveria parar tudo. Quer dizer que nós estamos certos e eles estão errados, é isso? Quer dizer, o Canadá, por exemplo, só tem só Ontário que tem o empresas privadas. Quebec é empresa estatal, a Britsh Colúmbia é empresa estatal, …. é empresa estatal. Quer dizer, inclusive o Canadá é o sistema mais parecido com o Brasil, porque tem grandes reservatórios. Isso é que é a grande vergonha nossa, porque quando se fala em privatizar a Eletrobras nós rdtamo falando em privatizar lagos e rios que você pode ver lá de cima, de um satélite, entende? E as pessoas não estão percebendo que essas usinas não são apenas fábricas de KW-h, elas prestam outros serviços, mesmo que em alguns momentos em que elas foram construídas houvesse uma resistência muito grande, por exemplo, no caso da Rio São Francisco, né? Que teve muita… a usina de Itaparica, que deslocou 50 mil famílias. Mas se você for lá na Usina Itaparica, você vê a quantidade de projetos sociais que eles fizeram, ou seja, a Chesf ela é a nossa Tenesse Vale, em Altorich, a Tenesse Vale americana, ela fez inclusive uma reforma agrária no estado de Tenesse, e também teve resistência… Tudo isso, então, é a história das hidroelétricas. É uma história muito ligada às regiões.

Nós, às vezes, pecamos por não ligar para isso, mas esse é um caminho do futuro, viu, Antonio? A gente precisa pensar nisso, pensar que hidroelétrica não é fábrica de KW-h. Infelizmente, ao longo desses governos todos, nós tratamos as hidroelétricas como fábrica de KW-h, competindo com as térmicas, com as eólicas, com as solares. Quer dizer, a eólica é uma fábrica de KW-h, não serve mais para nada. Uma usina solar não serve mais para nada, a não ser gerar energia. Agora, uma usina hidroelétrica, pelo amor de Deus. Se você somar os lagos, só das usinas da Eletrobras, dá quase o estado de Sergipe. É como se você estivesse vendendo, de água, a área do estado de Sergipe, só da Eletrobras. Só da Eletrobras! Porque nós já privatizamos muita coisa.

Então, para voltar a essa questão da privatização do Fernando Henrique, eu tenho que… depois eu vou mostrar uns gráficos para vocês verem como é que nós somos injustos com São Pedro. São Pedro é sempre culpado, né? Não tem advogado aqui, né? Não pode contratar o Cacai pra vir defendê-lo, mas é mentira de que o ano de 2001 foi o pior ano do mundo, que a fama da seca, é mentira, mentira. Eu vou mostrar depois os dados. O que houve, na realidade, foi exatamente o que está acontecendo agora.

A Eletrobras anunciou que ia vender as usinas, vender as empresas, a Eletrosul foi vendida, as usinas da Eletrosul foram vendidas, compradas pela Tractebel, que hoje é a ENGI, é francesa. E quando o capital recebe esse anúncio, que nós vamos vender usinas que estão prontas, funcionando, ele espera a gente vender, ao invés de investir. Então, naquela época nós já tínhamos criado a figura do produtor independente, portanto, era possível que o setor privado investisse, mas se você só olhar os dados, você vai ver que não houve investimento – depois eu vou mostrar para você – dispêndios do BNDES, naquela época, foram muito grandes para financiar a privatização. Na realidade, as usinas não foram construídas. Portanto, mais uma vez repetimos, até hoje, a culpa de São Pedro no racionamento de 2001. É mentira! São Pedro não era culpado.

A ceca de 2001 é uma seca média, ela está entre a média e o ano mais seco. Nós precisamos entender o seguinte, os reservatórios se esvaziam, não é só quando não chove não, quando não tem mais fonte, quando não tem mais fonte de energia, os reservatórios se esvaziam, você tem um estoque, se você não compra mais o que você tem que estocar, você esvazia o reservatório. E é o que está acontecendo hoje, também, porque a Eletrobras está outra vez anunciando que vai vender as suas empresas. Vai vender suas usinas. Então, provavelmente nós estaremos perante uma grande mentira, mais uma vez, de que a culpa é de São Pedro. Vou mostrar os dados, mostrar que São Pedro já nos avisou, nos dados de afluências brasileiras, que é possível ter 5 anos de seca, já teve.

Antonio Martins: Vamos lá, vamos para esses dados, Roberto, eu queria que você nos mostrasse também, porque é uma coisa que, nesse debate todo, poucos conhecem, eu mesmo não conheço. Até o Governo Fernando Henrique você tinha, basicamente, a geração de energia brasileira, não só geração, mas a transmissão e a distribuição, em mãos públicas, certo? E hoje, qual é o cenário? Para a gente ter noção em termos de percentual, o que é público, o que é privado, o que é PPP, o que é hidrelétrico, o que é termoelétrico, o que são fontes eólicas e solares, pra gente ter uma ideia.

Roberto D’Araújo: É, olha só, a história nos mostra o seguinte: o que nós tivemos, até a década de sessenta, um setor que tinha empresas privadas, né? Tinha empresas privadas e tinha empresas que eram dos estados, as distribuidoras eram dos estádos, evidentemente os estados não tinham capacidade pra ampliar a oferta, então, na realidade, houve também uma falta de investimento e foi uma falta de investimento na geração. Sim. Então, não sei se você, você não é tão velho quanto eu, eu tenho 75 anos, eu me lembro, quando eu era garoto, do apagão que houve na década de cinquenta, que foi exatamente esses 5 anos das afluências do passado, que ocorreram, e na realidade nós tivemos apagões. Depois, por que a gente precisou criar a Eletrobras? Furnas, por exemplo, foi fundada, a usina de Furnas foi fundada em 157, pelo Juscelino. Porque senão nós não teríamos indústria automobilística, nós não teríamos alumínio, nós não teríamos ferro, não teríamos cobre, não tinha nada, porque para fazer isso, esses materiais que são a base da indústria, nós precisávamos de energia elétrica.

Então, o investimento estatal surgiu em função das falhas do setor privado. Não sei se você se lembra que, no passado, se você lê a história do setor elétrico começou a exigir que nós tivéssemos uma tarifa que obedecesse ao ouro, a cláusula ouro. Imagine você, o brasileiro, coitado do consumidor brasileiro, ter que pagar uma tarifa que seguisse o preço do ouro, por causa disso é que o setor estatal, quer dizer, teve que investir, porque o setor privado falhou, e aquilo, basicamente, é a fundação da Eletrobras que foi imaginada lá no Getúlio, mas ela só foi tornada realidade pelo Jango, em 1962.

Mas toda a estrutura e toda, digamos o seguinte, toda a imaginação do que é esse setor nosso. Eu estive fora do Brasil, Antonio – se você quiser um dia, assim, se sentir orgulhoso do Brasil, você vai fora do Brasil e faz uma palestra sobre o setor elétrico brasileiro – eu estive na China, falando sobre o nosso setor. Os chineses, apesar daqueles olhinhos fechados, eles ficaram com os olhos arregalados. Por que o Brasil tem uma coisa que nenhum país tem, a transmissão, aqui no Brasil, ela exerce um papel que nenhum país tem. Não sei se você sabe, o Brasil é o país mais latitudinal do planeta, quando você olha o mapa assim, você pensa que é a Rússia, a China, o Chile, não! O país que tem a maior distância entre o Norte e Sul é o Brasil, entendeu?

Antonio Martins: Ele é o mais alto, né? No mapa.

Roberto D’Araújo: Isso. Portanto, nós temos climas diferentes. Então, estava escrito nas estrelas que as hidrologias do Sul e do sudeste, do norte, são diferentes. Então, se você tem água no Sul, você cria uma linha de transmissão, você transfere essa energia para o Sudeste, e o Sudeste guarda água, porque ele tem os reservatórios. Qual é o país que tem isso? Nenhum país! Se você olhar o Estados Unidos, ele é longitudinal, então ele não pode fazer isso, ele tem alguma diferença de clima, mas não o suficiente para isso. Nós temos isso e nós somos um país de clima tropical, as afluências são muito variáveis.

Então, você pode ter um ano e você tem uma chuva danada, e por isso que nós precisamos construir os reservatórios, né? Se nós não tivéssemos reservatórios, nós teríamos um problema muito grande. Não é verdade que a gente precisa construir mais reservatório, depois a gente vai entrar nisso aí. Mas essa estrutura foi toda imaginada pela Eletrobras, infelizmente o consumidor brasileiro se sente longe da Eletrobras, ele lida com a conta de luz dele e com a Eletropaulo, com a Coelba, com a Enel, ele não sabe que por trás disso tem a Eletrobras. A Eletrobras é que imaginou tudo isso, se não fosse a Eletrobras nós estaríamos perdidos, em termos de energia, e com certeza a nossa evolução industrial, que agora infelizmente nós estamos destruindo, e não sei, não teria sido tão tão espetacular como foi. Você sabe que o crescimento brasileiro, na década de sessenta e setenta, foi igual ao da China, nós éramos a China do mundo.

Antonio Martins: Roberto, pelo que você está falando, embora o sistema tenha sido privatizado, você depois pode melhor, você tem os dados muito impressionantes sobre a irracionalidade, inclusive, do sistema, mas a geração hoje continua sendo basicamente Eletrobras, é isso?

Roberto D’Araújo: Não. A Eletrobras só tem 30% da geração. Espere aí, a geração total da Eletrobras, é por volta de quase 40%, você somando a Nuclear. A hidroelétrica, por volta de 33%, portanto, nós já somos privados, tanto na geração quanto na transmissão, quanto na distribuição. Então, quem insiste, eu sinto isso, que as pessoas que reclamam da tarifa, reclamam e acham que a Eletrobras é culpada. Pelo contrário, a Eletrobras é que tentou, quer dizer, através da intervenção que a Dilma fez, ela tentou reduzir os preços. Se não fosse Eletrobras, mais uma vez, se não fosse a Eletrobras, nós estaríamos pagando uma tarifa muito maior do que nós estamos pagando hoje.

Eu não sei se você sabe, depois eu posso fazer, eu posso mostrar os gráficos e aí as pessoas podem ver os números que eu estou falando.

Antonio Martins: Eu acho que é bom você mostrar agora, Roberto? Acho que esses dados são muito importantes para a gente ter o panorama geral do sistema.

Roberto D’Araújo: Vou tentar. Então, olha só, a primeira coisa que a gente tem que entender, por isso é que o consumidor não consegue entender. O sistema brasileiro não tem similar, não tem nenhum sistema parecido com brasileiro, e a a diferença é por causa dessa capacidade de estocagem, e essa diferença de hidrologia por região, ou seja, para você visualizar, é como se tivessem quatro caixas d’agua: Sudeste, Nordeste, Sul e Norte. Essas caixas d’água são ligadas por canos, por vasos comunicantes. Que são esses vasos comunicantes? A transmissão. Então, você controla o estoque de água e você escolhe a melhor maneira de operar.

Antonio Martins: Roberto, eu acho que a gente precisa – porque essa imagem é muito bonita, mas ela não é imediatamente compreensível – não significa que as caixas d’água estão ligadas entre si por uma canalização, significa que essas caixas d’água, ou seja, esses imensos reservatórios, servem pra abastecer o país todo de energia, você, ao ligar a cachoeira, digamos assim, a queda dágua de alguns e ao represar a água em outros, você pode fazer isso transmitindo energia de um lugar pra outro.

Roberto D’Araújo: É, só para te dar uns números, né? O Sul tem pouca quantidade de reservatório, é mais ou menos 6% do que o Brasil pode guardar de água, Sulinas. A região Sudeste é 70%, a região norte também é 6%, mais ou menos, e a região Nordeste é por volta dos 18%. Então, essa dança,é como se você estivesse transferindo água, por exemplo, o Sul, ao invés do Sul jogar água fora, dele verter a água, jogar por cima do vertedouro, ele gera energia, ele gera energia, aí no Sudeste fala assim “opa, tô recebendo energia do Sul”, então eu vou diminuir a minha energia. Então você guarda a água do Sul no Sudeste, entende? Quando você fala isso fora do Brasil, Antonio, as pessoas ficam de olhos arregalados porque ninguém consegue fazer isso.

Agora, olha só o que que nós tivemos que fazer para adotar um modelo de mercado. As usinas, elas não vendem a energia que elas geram. Imagina só se viesse para o Brasil, uma térmica, para vender energia. Aí ela vinha para cá, se instalava, e aí vinham 3 anos seguidos de chuva, aí ela não ia conseguir vender… Então ela falaria.

Então, o que nós inventamos, que todas as usinas vendem um certificado. É como, você calcula o quanto o todo pode gerar de energia e você atribui, a cada usina, um certificado. Então, por exemplo, não é raro que uma usina térmica fique desligada dois anos, um ano, e ela vende energia. Como?

Antonio Martins: Do que a energia é a hidrelétrica, por exemplo.

Roberto D’Araújo: Não, não! Quando ela está desligada, ela pode liquidar a sua, olha só como é difícil, ela pode liquidar o fato de que ela não gerou, como ela tem um certificado e ela, na realidade, compra, ela não compra ligando para a usina, ela liquida a sua não geração com as usinas, com a energia das hidrelétricas, então ela pode vender barato. Agora, acontece, e aí eu vou mostrar pra você, elas não venderam barato, não venderam caro, mas isso foi apropriado no Mercado Livre. Eu queria avançar. Olha só como é que evoluiu a tarifa desde 1995. O setor residencial subiu 60% acima da inflação. O setor industrial é que as pessoas esquecem o seguinte, o custo da energia não está só na nossa conta de casa, está lá nos produtos que nós compramos. Então, o setor industrial teve um aumento de 162% acima da inflação. E, sabe por que o residencial foi menos? Porque essa é uma tarifa média e isso aqui tem baixa renda, por exemplo, as pessoas que consomem abaixo de 120, varia por estado, elas pagam menos. Por isso é que subiu menos, mas, por exemplo, nós que não estamos no baixa renda, com certeza tivemos aumentos parecidos com o industrial.

Olha uma coisa super importante aqui… as pessoas, quando comparam a tarifa com outros países, se você pegar e comparar tua tarifa com o dólar, você está sendo enganado porque se o dólar cai, a tua tarifa sobe, se o dólar sobe, a tua tarifa cai. Então, não é pelo dólar que a gente tem que comparar. Quem é que faz isso direito? É a Agência Internacional de Energia e ela usa esse método chamado Método Paridade e Poder de Compra. Ó, mas não é tão difícil, ela olha quanto é que custa a energia no Brasil e compara com outras coisas que nós fazemos, o que nós compramos, e ela faz isso em outros países. Então, essa barrinha azul clara seria a comparação em dólar, e abre as barrinha azul escura, é a comparação usando esse método. Então o Brasil já é o vice-campeão, só perde da Alemanha, e esse dado é um dado 2018, da Agência Internacional de Justiça, e ela vai repetir dos outros anos.

Agora, eu te pergunto assim, mas todo mundo paga caro? Não! E aí eu vou te explicar a maldade que aconteceu no Brasil. Isso aqui são dados da página dos comercializadores de energia. Os comercializadores de energia não têm usina, não têm linha transmissão, não têm nada, ele só compram de alguém e vende pra alguém. Eles estão dizendo que economizaram. O comercializador é um intermediário, aquele exemplo que eu te dei, por exemplo, que uma usina térmica pode liquidar a sua não geração, ela tem um direito de comprar energia das hidroelétricas, eu vou te mostrar depois os números, os preços ficaram é muito baratos logo depois do racionamento. Então, o que ele faz? Ele repassa esse direito para outro, te cobrando mais tantos por cento, então ele paga, digamos, vinte reais por MW-H, que é extremamente barato, e cobra mais 10%, então ele ganha dinheiro sem gerar um tostão. E o cara que compra, cumpra uma energia muito barata. Quem está no Mercado Livre, vou mostrar os dados, quem esteve no Mercado Livre de 2003 até 2012, se lambuzou de energia barata. E olha só o que aconteceu, por que ficou caro?

Nós, na realidade, desde a década de noventa até agora, nós praticamente multiplicamos por quatro as nossas usinas térmicas e as biomassas, que é razoável, que não polui tanto, também dobrou. Então, na realidade…

Antonio Martins: Biomassa é gás? Biomassa é gás, nesse caso?

Roberto D’Araújo: Não, a biomassa, por exemplo, pode ser bagaço de cana, pode ser, ele tem um efeito de que ele não emite gás de aquecimento global. Ele é neutro, mas você não vai gostar de morar perto de uma de bagaço de cana porque ela emite muita particulado, entende? Então, não é bem assim também, ela suja o ar também. Agora, o que aconteceu, eu vou explicar para vocês, as térmicas explodiram no Brasil, quer dizer, olha só, você criou um sistema de mercado que deveria facilitar as usinas baratas e facilitou as usinas caras. Vamos explicar depois porque, vou sair da do compartilhamento pra gente conversar mais, tá?

Antonio Martins: Tá.Por que que as térmicas crescem tanto? Eu acho que isso é uma coisa importante de explicar, é falta de investimento na energia limpa? Por que a gente, tantas vezes a energia térmica, que é a pior e que o mundo todo tá querendo se livrar dela e o Brasil tá cada vez mais usando a térmica.

Roberto D’Araújo: Sabe por que, Antonio? Porque para você construir uma hidroelétrica você leva cinco, seis anos, tem problemas ambientais, tem problemas de negociação com a região, das pessoas que serão deslocadas, uma térmica você constrói em dois, três anos. Então, o que aconteceu lá no pós-racionamento, quando não houve investimento, a culpa não foi de São Pedro, repito, foi que o governo Fernando Henrique, ao perceber que ia ter racionamento, ele fez o plano prioritário de termoeletricidade, não sei se você se lembra, se contratou uma quantidade absurda de términos, e como o Governo impôs que nós economizássemos 20% da energia, você lembra? Nós, eu tive que economizar, claro. Se eu não economizasse, eu era multado, e se eu repetisse eu podia ter a conta de luz desligada para mim, talvez para você não era tão difícil economizar, mas imagina para uma pessoa que tivesse uma geladeira, ventiladores, ela não ia conseguir economizar, então ela ia, muita gente foi cortado.

Antonio Martins: Perdoe eu te interromper de novo, porque eu tenho a impressão que a construção das termelétricas está associada à privatização, né? Porque o privado não vai construir, não vai fazer um investimento de décadas como Itaipu, por exemplo, ou como numa hidrelétrica qualquer… Então ele vai investir numa coisa que ele pode gerar lucro rápido independente do que isso vai provocar no ambiente?

Roberto D’Araújo: É, mas não foi, veja bem, essa não foi uma decisão do setor privado, o setor privado investiu em térmicas, a Petrobras também investiu em térmicas, a própria Eletrobras, foi uma decisão do Governo ao ver o problema grande que foi criado ao anunciar a venda de usinas prontas. Essa é que é a verdade, se você acompanhar o aumento da capacidade antes, um pouquinho antes, do racionamento, você vai ver que nós não adicionamos quantidade de potência pra atender o mercado. É como se você estivesse – digamos – confiando em São Pedro, porque esse que é o problema do Brasil, se você não investe e o sistema não tem o equilíbrio entre a oferta e demanda, e se São Pedro me der uma chuvarada, ninguém está sabendo, entende? Esse é o problema. Se tiver chovendo muito, a gente não percebe que o sistema está… de que não está sendo investido, entendeu?

Então o setor privado não investiu, aí o governo Fernando Henrique criou um sistema que contratou uma quantidade enorme de térmicas, quer dizer, então esse foi o primeiro momento em que nós termificamos o problema. Naquela época não havia essa essa pressão, quer dizer, já havia algumas, mas nós não estávamos com essas opções de eólicas e solares. Então, naquela época, era um jeito, se contratou térmicas para resolver o problema.

Agora, como é que a coisa evoluiu dali pra frente? Se você for olhar, você vai ver que o setor privado – vou te citar por exemplo a ENGIE – a ENGIE é a segunda grande empresa brasileira, a primeira, em termos ainda de capacidade, é a Eletrobras. A segunda é a ENGIE, mas vai ver os ativos que ela tem. A maioria dos ativos são usinas que ela comprou, prontas. Ela comprou a Eletrosul inteira, comprou as usinas da Eletrosul, depois ela comprou duas usinas da Cemig. Então, na realidade, o setor privado, enquanto tiver essa opção de comprar coisa pronta ele não vai investir, entende?

E depois, no final vocês vão ver que o setor privado só investiu na hidroelétrica com a parceria da Eletrobras, sem parceria da Eletrobras ele não entrou, e na verdade eu só conheço uma usina hidrelétrica.

Antonio Martins: E dinheiro do BNDES.

Roberto D’Araújo: Você vai ficar abismado com o que eu vou te mostrar… da quantidade de dinheiro do BNDES, com o que nós pagamos. Eu conheço uma usina hidroelétrica, de grande porte, construída pelo setor privado independente da Eletrobras, é a usina do Estreito, que é uma parceria da Enel… da Enel com a Vale do Rio Doce. Essa daí foi construída, ela usou o BNDES também, mas ela não precisou da parceria com a Eletrobras. Todas as outras, Belo Monte, Santo Antônio, Girau, Teles Pires, Baguari, Três Irmãos, todas essas usinas, até algumas pequenas, eu fico até surpreendido, usaram a parceria com a Eletrobras, por quê? Porque a Eletrobras já sabe como fazer uma usina e ela já tem a experiência de como é que se lida com os problemas ambientais, então… até um dia que a gente for abrir essa caixa preta – infelizmente, viu, Antonio? – do governo Dilma, que ela impôs à Eletrobras a fazer essas parcerias. Você vai ver que a que a Eletrobras, na realidade, assumiu diversos custos que deviam ser divididos, entendeu?

Antonio Martins: Belo Monte faz parte disso, Roberto?

Roberto D’Araújo: Faz! Belo Monte é uma usina privada. A participação da Eletrobras é minoritária, a linha de transmissão de Belo Monte, que nos atende aqui no Sudeste, é privada, é dos chineses, é CTG dos chineses, os chineses já compraram duas usinas da Cemig. Então, na realidade nós, na verdade é o seguinte, Antonio, nós não sabemos privatizar, privatizar não é vender empresa, privatizar é principalmente você pensar em como é que você regula. O Brasil, a agência reguladora que nós temos, Antonio – só uma comparação com os Estados Unidos – o federal NG Resort Commit, que seria o equivalente a ANEEL, tem triplo de funcionários que a ANEEL tem, cada estado americano tem agência reguladora que fiscaliza eletricidade, água, gás e assim por diante, cinquenta e tantos estados fiscalizando. Então, aqui essa ideia de que nós precisamos partir pro estado mínimo, né? E aí, os caras nunca olharam o estado regulador americano. É enorme, o estado regulador americano é enorme, e lá o setor privado tem uma dureza. Depois eu posso contar coisas que aconteceram lá, e como as empresas privadas, como é que a agência reguladora funciona. E aqui nós não temos a mínima condição de funcionar dessa maneira, nós não temos gente, não temos capacidade para isso. Então, nós não sabemos privatizar.

Antonio Martins: Mas você está continuando aqui na sua exposição. Eu ia te fazer outras perguntas aqui, bom, você já respondeu a segunda questão que eu ia te fazer, como que a matriz energética piorou tanto. Piorou porque faltou investimento e porque se adotou uma relação com o setor privado que permitiu que ele nadasse de braçada. E você também explicou como é que o preço subiu tanto, né? E o preço subiu porque, no fundo, se permitiu que o mercado, que é controlado por uns poucos, definisse os preços. E você mostrou até o o gráfico sobre isso. Você tem usado, Roberto, em vários textos e entrevistas, dados muito chocantes sobre a irracionalidade do sistema. Eu estou me lembrando de uma entrevista que você deu, no Rodaviva, mostrando como as térmicas, por exemplo, vendem aquela energia que não produzem, e de que forma isso provoca fenômenos como apagão. Ou apagão é provocado, essencialmente, pela falta de investimento público?

Roberto DAraújo: É, olha só, depois eu vou mostrar para você que não foi só esse plano prioritário de térmico que aconteceu. Em 2008 nós tivemos uma outra termificação, outra vez contratamos a quantidade enorme de términos, eu queria te mostrar que isso foi função da falta de investimento do Mercado Livre. Eu eu posso te mostrar algumas coisas, alguns gráficos?

Antonio Martins: Claro, vamos lá!

Roberto D’Araújo: Vamos lá! Então, aqui ó, já tinha te mostrado, esse é o gráfico da termificação, né? Mas vamos adiante. Isso aqui é uma comparação, o vermelhinho são o que o quanto nós pagamos no setor residencial por pelo MW-H. O azul é o quanto o Mercado Livre pagava pelo MG-h. Olha aqui, esse trecho aqui, você sabe quanto é que era aqui? No início de 2003, quatro reais para o MW-h.

Antonio Martins: Mercado Livre, só para explicar para quem está nos assistindo, que como eu não conhece o setor atual. Mercado Livre é quem compra da… explica pra gente o que é o Mercado Livre.

Roberto D’Araújo: O Mercado Livre só pode ser composto por grandes consumidores, grandes produtores e por comercializadores de alumínio que compra de na hidrelétrica. Exatamente. Então, por exemplo, uma grande fábrica que, sei lá, produz automóveis, por exemplo, ela pode estar no Mercado Livre e ela compra, ela paga a distribuição para, digamos que… tem uma fábrica aqui no Rio, ela paga a distribuição, o fio, mas a energia ela liquida no Mercado Livre, ela compra no Mercado Livre, ela não sabe de quem ela compra. Como que eu expliquei, né? Como o Brasil tem reservatório, você não sabe de quem está comprando.

Então, esse preço aqui de baixo, liquidação de diferenças, é, por exemplo, uma térmica que ganhou um certificado de duzentos – digamos – duzentos MW-h médios, ela não gerou, mas ela tem direito a comprar por esse preço aqui. Ela compra, digamos, ela revende cem megawatts médios, por esse preço, mais o por centos para outro cara. Então, o consumidor que está no Mercado Livre, ele se aproveita dos preços baixos. Por que ocorre os preços?

Antonio Martins: Grandes empresas?

Roberto D’Araújo: Isso! Por que ocorreram os preços baixos? Primeiro porque, depois do racionamento – eu vou mostrar pra você – o consumo caiu 15%. Nós consumimos 15% acima. Aí nos obrigaram a consumir menos, aí nós desligamos os nossos freezers, né? E passamos a consumir menos. Bom, se nós passamos a consumir menos, com aquela entrada de térmicos que o Fernando Henrique inventou, sobrou usina e faltou consumo. Bom, se sobrou usina, faltou consumo, sobrou a oferta. Ou seja, você teve uma sobra. Quem se aproveitou da sobra? O Mercado Livre. Então, olha só aqui, uma coisa engraçada, olha aqui – essa aqui é a evolução do nosso consumo depois do racionamento – é para que essa retinha aqui, nós estávamos seguindo nessa linha, caiu, esse é o racionamento. E olha como é que nós crescemos, Antonio, não conheço nenhum produto tão fácil de você prever como o consumo brasileiro de energia elétrica, é quase que uma reta. Por isso que eu não consigo entender o desinteresse do setor privado, porque você construiu, você vende. É uma demanda altamente previsível, agora está caindo em função da pandemia, da crise econômica. Isso aqui, por exemplo, essas oscilações do nosso calor, no verão nós usamos mais ar-condicionado, depois, no inverno cai, mas a média é quase uma reta.

Então repara, quem se aproveitou disso foi o Mercado Livre. Olha aqui, como é que evoluiu os reservatórios, demoraram um pouquinho pra encher, depois encheram. Olha a quantidade de energia que nós conseguimos guardar. Isso aqui é o consumo, tá? O reservatório é a onda azul, e a linha branca é o que nós consumimos. Então, aqui, por exemplo, em 2011 nós conseguimos guardar 5 meses de consumo, qual país que tem isso? Nenhum país tem isso! Olha o que está acontecendo agora, depois de 2014 os reservatórios começaram a cair e vamos saber porquê? Vou explicar porquê. Vou mostrar primeiro que essa crise não é inédita, o que faltou foi investimento. Isso aqui é um gráfico das afluências.

Antonio Martins: Roberto. O que são afluências?

Roberto D’Araújo: Afluência é a vazão dentro dos rios. Quando se você pegar essa vazão em metro cúbico por segundo, e simular ela passando dentro da turbina, você transforma isso em energia.

Antonio Martins: Então, afluências dentro dos reservatórios, isso?

Roberto D’Araújo: São as afluências dos rios, você pega o metro cúbico por segundo, que vai passar pelo pelas turbinas, e você calcula… aqui geraria tanto de energia, então aqui é igualzinho o metro cúbico por segundo, só que está por energia média. Repara aqui, a década de cinquenta, olha aqui a seca que nós tivemos, de 1946 até 1956, nós tivemos uma crise crescente. Olha aqui o que está acontecendo agora, olha o que aconteceu aqui no racionamento, foi muito menor, olha aqui na década de 1950.

Antonio Martins: O que está rolando agora é pior, bem pior do que…

Roberto D’Araújo: Não é não, eu já fiz essa comparação. As afluências da década de cinquenta.

Antonio Martins: Não, não, do racionamento… nós estamo pior que no racionamento da virada.

Roberto D’Araújo: Pior! Pior! Exatamente! Ou seja, se agora nós, por exemplo, na década de setenta nós não tivemos racionamento. Você repara que a década de setenta foi pior que o racionamento. O que mostra é o seguinte, na realidade faltou outra coisa, no racionamento, faltou investimento, não houve investimento suficiente pra enfrentar essa crisezinha aqui.

Antonio Martins: Mas essa matriz tem dois fatores, um fator é quanto o rio está vazando de água, o outro fator é quanto você investiu para aproveitar a água desse rio?

Roberto D’Araújo: Exatamente, por exemplo, você tem usinas com reservatório, se você fizer uma nova usina, sem reservatório, como os nossos reservatórios não estão cheios, essa nova usina sem reservatório ajuda com o seu reservatório, porque quando ela estiver gerando, a com o reservatório diminui a sua geração. Repara como é que nós estamos mal no entendimento… não serve usina sem reservatórios… impossível! Nós não temos mais lugar para fazer usinas com reservatório, alagando grandes águas, grandes áreas, porque nós não temos mais esses lugares, não podemos fazer isso na Amazônia, mais. Se nós já estamos com uma crise que tem muito a ver com desmatamento, imagina que a o problema dessa crise atual é que, nessa aqui, por exemplo, nós não tínhamos desmatamento… nessa aqui nós temos. Qual é o efeito?

Eu não sou especialista, mas os especialistas dizem que os rios voadores estão diminuindo. Se os rios voadores estão diminuindo, e eles jogam água dentro dos rios que não são voadores, que a gente usa, provavelmente 2022 pode ser um ano pior. E aí nós vamos ter uma situação muito grave, muito grave, e a gente não tem investimento. Na realidade, você vê que nessa nessa medida provisória da Eletrobras estão botando mais 8 mil Megawatt de usina térmica, onde não tem gás, se o Brasil já tem trinta e tantas mil megawatts de usina térmica, vai precisar mais? E aí eu vou mostrar uma coisa pra você! Olha aqui que coisa engraçada. Isso aqui é a evolução da potência hidroelétrica, essa linha, essa mancha azul aqui.

Isso aqui, essa subida aqui, é Itaipu. Quando a Itaipu entrou, olha como é que ela vai declinando, declinando, depois aquilo, ela começa a subir. Depois de 2010, essa linha vermelha aqui, são os privados que não entraram com parceria com a Eletrobras. Na realidade, os privados só construíram 5 mil MG de usina hidroelétrica. Na realidade, quando a Eletrobras ofereceu parceria…

Antonio Martins: Para o público entender, cinco mil megawatts é um quarto de Itaipu?

Roberto D’Araújo: É um terço. Itaipu é quatorze mil, ela é um terço de Itaipu, ou seja, durante todo esse período aqui.

Antonio Martins: Em vinte anos eles não construíram um terço de Itaipu.

Roberto D’Araújo: Exatamente! E olha só o que a Eletrobras fez, evidentemente que foi com sacrifício financeiro pra Eletrobras, né? A Dilma inventou a sociedade de propósito específico, que ela ofereceu Belo Monte, Telespirius, Santo Antônio, todas essas grandes usinas foram oferecidas para a Eletrobras, para que os parceiros entrassem. Veja, essas usinas são privadas.

Antonio Martins: Deixa eu entender aqui esse gráfico seu, Roberto. A gente vê que a capacidade ou a mancha azul, a capacidade de geração, ela aumenta um pouquinho a partir de 2010, mas entre 1980 e 2010, ela se mantém, um aumento muito pequeno, mas tem essa curva amarela que é impressionante, o que que é isso, que tem essa subida gigantesca em 2013, esse privado consorciado? O que que é isso?

Roberto D’Araújo: Isso é o privado que aceitou a grande vantagem, o privado que aceitou ser parceira da Eletrobras. Na realidade, atrás dessa linha amarela tem a Eletrobras, não fosse a Eletrobras oferecer aqui, nessa região aqui, não fosse a Eletrobras oferecer parceria com o setor privado, com certeza essa linha ia mais ou menos por aqui… ou seja, na realidade o setor privado precisou da Eletrobras para ser a parceira, porque senão ele não entrava.

Antonio Martins: Mas ele não instalou grande coisa, porque a mancha azul continua uma pequena elevação?

Roberto D’Araújo: Não, aqui, Antonia, aqui, essa subida aqui, é significativa. Nós subimos 30 mil megawatts, daqui pra cá, essa luz vermelha. e a linha amarela o título dela está aqui, por volta de 30 mil megawatts.

Antonio Martins: Quer dizer… dá uma impressão, Roberto, é que… a mancha azul e a linha amarela se cruzam, significa que quase toda energia da Eletrobras está consorciada com o privado.

Roberto D’Araújo: Está! Exatamente isso. Aquelas usinas que nós pensamos que sejam da Eletrobras, majoritariamente, não é verdade. Itaipu não, Belo Monte é majoritariamente privado, Santo Antônio é majoritariamente privado, Girau é majoritariamente privado, Telespires é majoritariamente privado, ou seja, o único chamariz que nós tivemos para o setor privado foi, além do BNDES – que eu vou mostrar pra vocês – foi oferecer a Eletrobras como parceira minoritária.

Agora eu quero ver a abrir essa caixa preta, quais foram os custos administrativos, ambientais, institucionais, que a Eletrobras teve que assumir para que esses projetos de sociedade se tornassem realidade. Essa caixa preta a gente não abriu ainda. Então, na realidade, infelizmente, claro que era o jeito, se nós não tivéssemos feito isso não tínhamos energia, mas foi feito a custa de uma fragilização da Eletrobras, porque ela tinha custo.

Antonio Martins: Roberto, isso que você está falando vai ser muito importante nessa próxima parte que a gente vai conversar porque mostra como essa opção por fazer parceria com o setor privado alargou, e muito, a participação do setor privado… pelo que eu estou vendo aqui, do seu gráfico. Tem que aumentar, na mesma proporção, a geração total de energia, porque se você pega, por exemplo, 2010, a gente tinha 20, de geração total hidrelétrica. Nós passamos de 20 para 27, digamos assim. Nós tivemos um aumento de 30%, mas a curvinha amarela mostra que a participação do setor privado passa, nesse mesmo período, de 25% para 100%.

Roberto D’Araújo: O que é importante aí é ver o seguinte, depois da invenção da Sociedade Propósito Específico o Setor Privado se animou, está aqui, é isso aqui, e aí fez o seguinte, que na realidade todas as usinas da Eletrobras tiveram que ser construídas com parceria com o setor privado.

Antonio Martins: Ou mesmo as que já estavam construídas tiveram que deixar…

Roberto D’Araújo: Alguma coisa por aqui, entendeu? Porque isso aqui, por exemplo, tem alguma coisa que a Eletrobras construiu, que ela não participou com o setor privado, mas a maioria foi com o setor privado, depois vou te mostrar a lista das usinas com participação do setor privado, foram quase 17 mil megawatts, mais que uma Itaipu, uma Itaipu e meia, entende? Então, a minha intenção aqui, Antonio, é desmontar essa ideia de que o setor privado é pujante. Não é pujante! O setor privado é dependente do Estado, é dependente do Estado através de financiamento do BNDES, ou é dependente do Estado através de parcerias com estatais. Portanto, se nós vendermos a Eletrobras, nós vamos ficar sem essa ferramenta de última instância. Vai ser um risco monstruoso!

A última coisa que eu queria te mostrar é essa setinha aqui, olha aqui, período pré-racionamento, anúncio de privatização. Vai lá. Nada! Não aumentou nada, entendeu? Eles não investiram nada. Estava todo mundo esperando as usinas hidroelétricas serem vendidas.

Essa é a lista das usinas que foram construídas em parceria. Olha a quantidade: Belo Monte, Santo Antônio, Jirau lá no Madeira, Teles Pires no Tocantins, Peixes ali também no Tocantins, Serra do Facão, Baguari, Sinop, Retiro Baixo, Mauá, Três Irmãos, Dardanelos, Foz de Chapecó. Repara que tem aqui, Mauá, por exemplo, a mãozinha de onze megawatts. nem isso o setor privado conseguiu fazer sozinho. Aqui, o Retiro Baixo, é uma usina pequena, Baguari, é uma usina pequena, Três Irmãos, é uma usina pequena, entendeu? A Eletrobras teve que entrar em tudo isso! Se você mostrar isso fora do Brasil as pessoas vão dizer “peraí, vocês… então quer dizer, uma estatal serve para convidar o setor privado pra ela ser minoritária e conseguir construir essas usinas?”

Antonio Martins: Em tudo isso a Eletrobras é minoritária?

Roberto D’Araújo: Todos, todos, todos esses! E veja, não é só em usina hidrelétrica, tem eólica e tem linha de transmissão também. Então, se você somar tudo, se somar as eólicas, em vez de dar 17 mil, vai dar uns 22 mil gigawatts, você tem praticamente duas Itaipus onde a Eletrobras, ela é parceira minoritária com o setor privado. Olha, eu acho que o mínimo que nós devíamos perguntar é assim: “Bom, o setor privado precisou de parceria com o setor público, como é que nós vamos garantir que ele vá agora, ele vai investir sem parceria”

Antonio Martins: Pois é, antes… eu estou vendo que a gente vai conversar muitas vezes ao longo desse Resgate, se você nos der essa alegria. Eu estou vendo que cada item desses, que você está falando, merecia uma conversa específica e que, ao longo desse projeto do Resgate, se você puder e topar, a gente vai conversar muitas vezes. Antes de de passar para uma rápida imaginação do que pode ser a recomposição de um setor elétrico público, eu queria que você me falasse o que pode acontecer com a privatização da Eletrobras?

Roberto D’Araújo: Bom, aumento de tarifa. É mentira que vai abaixar a tarifa. Eu vou usar uma metáfora, porque, olha só, suponha que você tenha uma padaria, você é um padeiro ou tem uma padaria, aí o teus clientes começam a reclamar que teu pão está caro. Aí, o que que você faz? – Olha o que o Brasil vai fazer – Você vende o seu apartamento, seu apartamento, não é padaria não, você vende o apartamento, pega uma parte do dinheiro do apartamento e bota lá na padaria para compensar o preço do pão, ao invés de, por exemplo, trocar o forno, melhorar a organização da sua padaria, melhorar a contabilidade, não, você pega um pedaço do ativo… isso não existe, Antonio! Redução de tarifa se faz com redução de custo. Então, o que nós tínhamos que fazer era agregar novas fontes de energia, que sejam mais baratas do que as hidroelétricas, ou novas hidroelétricas, para fazer com que nós não esvaziemos o reservatório. O reservatório, o esvaziamento do reservatório, não é só um sintoma de que não está chovendo, é um sintoma que não há investimento.

Se você tivesse outras fontes, você não esvaziaria o reservatório, mesmo com a fluência mais baixa, isso já aconteceu em 1971, entende? E nós não tivemos racionamento, em 1971. Eu entrei em Furnas em 1972, e a minha tese de mestrado foi sob previsão de vazões, eu no mês seguinte eu já estava falando com o diretor de operações, porque eles estavam loucos para entender como é que a variação das afluências pode dar esses sustos no Brasil, né? E, na realidade, muitos dos erros cometidos, às vezes pelo operador nacional do sistema, é porque justamente eles não conseguem prever essas afluências. Às vezes eles preveem para mais, às vezes preveem para menos.

Antonio Martins: Tá. Roberto, vamos imaginar agora o pós-pandemia, o pós-pandemônio, o pós-extrema direita e o pós-neoliberalismo, em especial, que é o que mais importa nesse tema. De que forma você veria os caminhos para reconstituir um sistema elétrico público, capaz de oferecer energia a preços razoáveis ou módicos para as famílias? Capaz de garantir que toda a população brasileira tenha acesso à eletricidade e capaz de garantir também a energia necessária para as transformações que o Brasil precisa ter na infraestrutura, na conversão para uma economia livre de carbono, na reindustrialização, na transição para a agroecologia, por exemplo? Você vê essa possibilidade?

Roberto D’Araújo: Claro, vou falar num número aqui, que você vai ficar chocadésimo, vai achar que eu estou mentindo, mas eu vou falar porque eu tenho fotovoltaicas aqui no meu apartamento, e tem um terraço, tem 40 metros quadrados de placas fotovoltaicas. Ela gera mais ou menos, em média, no verão gera mais, mas geram 500 KW-h por mês. Minha conta de luz caiu muito. Bom, se 40 metros quadrados geram 500 KW-h/mês, eu posso pegar e calcular quanto eu precisaria de área pra gerar a carga brasileira. Veja. Olha que maluquice! Eu vou gerar tudo que a gente consome. É uma uma doideira, né? Porque se eu fizesse isso, se o Sol vai embora, a gente não tinha nada. Claro que não é isso, é só pra mostrar, sabe sabe quanto é? Quanto? 15% da área do estado de Sergipe. Com 15% da área do estado do Sergipe eu consigo gerar a energia que o Brasil inteiro consome. Não estou propondo isso, eu tô dizendo…

Antonio Martins: Mas deixa eu ver, porque tem algo extraordinário, porque isso significa que houve uma transformação gigantesca na tecnologia dos solares.

Roberto D’Araújo: Claro! E você sabe que as placas fotovoltaicas ainda são muito ineficientes, por volta de 18%… Já existem placas fotovoltaicas que têm uma eficiência maior.

Antonio Martins: Agora, você realmente me chocou muito… Metade do estado de Sergipe é menos, certamente é muito menos, do que nós temos alagado pelos lagos das hidrelétricas.

Roberto D’Araújo: Olha que perigo, se você vende as usinas, quem vai ficar, por exemplo, com o potencial de colocar placas flutuantes em cima do reservatório? Não todos os reservatórios. E olha, olha a vantagem, placas flutuantes, em cima dos reservatórios, você liga ela direto na subestação da usina, não gasta transmissão. Outra coisa, essas placas flutuantes geram energia que vai ser economizada na usina. Alguém falou quem que vai ficar com isso? Imagina essa área toda, mas claro que ninguém vai fazer isso.

Antonio Martins: Mas quem pode fazer isso é o público, é o Estado brasileiro.

Roberto D’Araújo: Claro, agora, na realidade, estão confundindo. Vamos falar sobre, depois eu quero falar sobre as eólica. Estão confundido duas coisas. Uma coisa é uma usina solar, ela está no meio do campo lá, e ela foi construída por alguém e ele quer transmitir essa energia pra vender. Bom, então ele tem que pagar a transmissão, ele tem que pagar pela rede coisa é o meu telhado, o meu telhado está antes do meu consumo. Eu, por exemplo, eu consumo mais energia do que esses 500 KW-h, entendeu? É ar-condicionado, neto, não sei o que lá, então – aqui a gente consome muita energia. Agora, eu exporto energia – olha que coisa maluca – a distribuidora está querendo me cobrar porque eu uso a rede. Que eu uso a rede da distribuidora, entro na rede de transmissão e minha minha energia vai lá pro centro-oeste. Claro que não! A energia que eu exporto é muito pequena. Quem consome é o meu meu vizinho aqui de baixo. Entende? Ela não sai do circuito de duzentos e vinte volts. Inclusive o TCU já se meteu nisso, querendo favorecer a cobrança dessa taxa de uso da rede. Eu já mandei uma mensagem para o TCU mostrando a conta, eu falei assim… mostrei para eles que, no máximo, no máximo, meu solar aqui gera, quando está um sol de rachar, sem nuvem, ela gera 24 amperes.

24 amperes, se você pegar um ar condicionado de, digamos de doze mil BTUs, ele consome 15 amperes. Então, eu posso exportar, sei lá, dois, três amperes, que é a medida da corrente, né? Quem consome isso é meu vizinho de baixo e, veja, se eu estou diminuindo o meu consumo através do seu lar, eu estou facilitando o atendimento dos outros consumidores, porque eu diminuo a carga. Outra coisa, se eu estou gerando solar, alguma gota de água pode ser guardada nos reservatórios, ou eu posso desligar uma térmica ou desligar um pouquinho as térmicas, eles não querem reconhecer esse efeito sistêmico.

Na Alemanha, o que a Alemanha fez? Ela deu um subsídio. Quem colocar fotovoltaica no seu telhado, durante um certo tempo – depois interrompeu o subsídio porque tem solar a beça agora lá – paga a metade da tarifa. Eu boto o solar ao contrário, aqui nós já queremos cobrar mais, entendeu? E você vê, imagina a insolação da Alemanha e a insolação brasileira, é um negócio assim… você não consegue acreditar, sabe?

E aí o teu negócio, assim como a Dilma falou que nós podíamos empacotar ventos, estocar vento, ela tinha toda razão, ela só não sabia explicar. Por exemplo, se você for olhar hoje, o Nordeste, que tem tantas eólicas, o Nordeste não está com os reservatórios tão vazios, e o Nordeste está exportando energia. Imagina você, que e a região mais seca do Brasil, hoje, que só tem praticamente um Rio, o Rio São Francisco, está exportando energia para o Sudeste e para e o Norte. Eu, como engenheiro, jamais pensei que isso ia acontecer. Agora são as eólicas do Nordeste, tem muito lugar ainda para explorar, de eólica, no Nordeste. Tem muito lugar para explorar, de eólica, no Sul. Os ventos do Sul não são tão constantes quanto do Nordeste, mas tem vento forte lá. Então nós podíamos estar aproveitando essa eólica.

Antonio Martins: Você pode fazer com as eólicas, mais ou menos um cano de vento, como se faz com o cano de água das hidroelétricas, né?

Roberto D’Araújo: Se algum especialista for ver esse filme eles vão me xingar, porque realmente algum custo você tem, você tem que melhorar a transmissão. Não, você tem que estar preparado, por exemplo, quando pára de ventar. Imagina você, um parque gerador de eólica, de repente pára de ventar ali, é como se a a carga tivesse subido. Quem é que responde rapidamente à carga? São as hidroelétricas. Porque é igual uma torneira, né? Você abre a torneira e sai mais água. Só que só que elas estão bem vazias, inclusive eu vou comentar, hoje, depois da transmissão do ministro, eu vou comentar uma coisa que eles estão esquecendo. Eu gosto desses exemplos simples porque as pessoas podem fazer em casa. Enche a tua pia do teu banheiro, enche a pia toda, depois abre o ralo assim, e vê esvaziar, você vai ver que ela vai começar a rodar, rodar, rodar e no final ela faz umas bolhas, faz até um barulho, né?

Bom, se os reservatórios estão muito vazios, vai acontecer isso, só que se acontecer isso em cima de uma turbina, estraga a turbina, porque ela suga a água e forma uma bolha que tem uma pressão negativa muito grande, ela estraga o ácido da turbina, chama-se cavitação, e aí eles não estão contando com isso. Se nós ficarmos com os reservatórios muito vazios, algumas usinas vão ter que desligar algumas turbinas, você vai ter que desligar para não sugar… e aí nós podemos ter apagões, porque aí você não vai conseguir responder a variações de carga repentina.

E nem dentro desse planejamento de utilizar as térmicas, porque repentinamente você vai ter uma queda brusca.

Roberto D’Araújo: É, tem uma maneira, você tem que manter a térmica ligada o tempo inteiro, pronta para aumentar a geração, mas ela não aumenta rapidamente, você não pode ligar uma térmica para fazer isso… para ligar uma térmica você demora cinco, seis horas, para ligar uma térmica, porque é como se uma panela de pressão, ela precisa ferver lá a cumbuca para poder gerar o vapor, né? Então, se não consegue gerar

Antonio Martins: Então é… desculpa. Termina o teu raciocínio, que eu quero imaginar o futuro, agora. O futuro em que a gente vai superar o neoliberalismo e como você veria, você que tem tanto conhecimento – isso aqui é uma aula que você está dando, praticamente. Digamos, imagina uma situação em que o Brasil, como está acontecendo nos Estados Unidos, num certo sentido, como aconteceu na Ásia, na China, em especial, não aceita a disciplina fiscal do neoliberalismo e fala “nós vamos ter, num período de vinte anos, condições de reformar o nosso parque de geração de energia”. Você deu uma ideia aqui que eu nunca tinha visto ninguém falar antes, mas, por exemplo, uma ideia seria, digamos – vou interpretar você, você me corrija se eu estiver errado – forrar os reservatórios das hidrelétricas de placas solares, para multiplicar a geração de energia numa Eletrobras, que fosse uma Eletrobras solar, também… e, em segundo lugar, por exemplo, estimular a população a gerar, nos seus telhados, no pequeno produtor rural, no no seu território, alguma coisa assim.

Roberto D’Araújo: Antonio, você já imaginou o valor social que haveria ao reconhecer esses efeito sistêmicos benéficos da energia solar? Se você colocar essa energia solar nas favelas, com certeza nós acabaríamos com o roubo da conta de luz, entende? Você além de uma coisa que as pessoas também não imaginam. Quando você bota uma fotovoltaica em cima de um telhado, a casa fica mais fresca porque a fotovoltaica absorve todo o calor e a laje não esquenta tanto. Portanto, se uma pessoa que mora numa favela, estava roubando uma energia, se arriscando a ser multado, ele pode, talvez, não precisar mais. Então, tem um valor social enorme isso, agora, evidentemente, é preciso que a gente acabe com essa bobagem de achar que, por exemplo, que a nossa dívida pública é alta.

Pô, se a dívida pública brasileira é alta, por volta de novo 80%, 90% do PIB, então o Japão está ferrado, porque ele deve 230% do PIB. Agora, por que o japonês bota dinheiro na mão do Estado? Porque ele tem um plano, nós não temos plano nenhum, nós destruímos o planejamento. A Eletrobras tinha um planejamento, o planejamento era obrigatório… Você tinha uma usina para ser construída, se o setor privado quisesse participar ele tinha que entrar naquela usina… depois que houve a mercantilização, o planejamento passou a ser indicativo, então a EPE, empresa de planejamento energético de pesquisa energética, ela produz uma previsão do futuro, com algumas usinas, e o mercado não faz aquelas usinas, faz outras, por exemplo as térmicas. As térmicas acontecem numa situação de desespero… Então, você faz um leilão, como foi feito em 2008, que a surpresa foi que contrataram térmicas a diesel. Olha o combustível! Meu Deus do céu, mostra um país nesse século XXI que tenha contratado térmica a diesel! Custa mais de mil reais, e aí elas estão contratadas, não geram… é aquilo que eu te falei, não geram, e aí o operador fala assim “é melhor não gerar”, então continua usando água. Então nós arranjamos um jeito caro de esvaziar o reservatório.

Eu queria te mostrar, para terminar, eu queria te mostrar só uma coisa aqui, para falar um pouquinho da situação que nós não obedecemos regras… olha só, vou te mostrar um negócio, é o último slide, Só.

Antonio Martins: Dessa primeira conversa, hein, Roberto?

Roberto D’Araújo: Eu sei, eu sei. Vamos fazer depois outros, olha aqui, é o último slide. Então olha só, a Eletrobras tem um estatuto, se você pegar o estatuto da Eletrobras, já no capítulo capítulo dois, parágrafo terceiro, tem a seguinte informação: “caso a empresa seja usada para exercer um papel de política pública atendendo o governo, se resultar em prejuízo, ela deveria ser ressarcida pelo tesouro.” Todos os governos, Antonio, sem exceção, todos, desde o Fernando Henrique até agora, no Bolsonaro, desobedeceram essa régua. Quer dizer, eu fico assim abismado porque isso aqui é uma lei, o estatuto de uma empresa pública é como se fosse uma lei.

Então, eu vou te exemplificar o que fizeram com a Eletrobras. Ela teve que teve assumir dívida para comprar a distribuidora rejeitada, a privatização da década de noventa. Roraima, Rondônia, Acre, Piauí e Alagoas foram compradas pela Eletrobras, sem ela ter essa função de distribuição, usando um fundo, que era o fundo global de reversão, que não tinha nada a ver com isso, e ela ficou endividada para comprar aquilo que o mercado não quis. O mercado quis a Eletropaulo, o mercado quis a Celg, quis comprar a Rio Grande do Sul, mas a Roraima, não quis.

Depois, ela foi descontratada, quando teve o racionamento, ela foi descontratada, ela tinha os preços mais baixos do que todas as usinas que foram contratadas, mesmo com preço mais baixo ela foi descontratada e continuou sendo obrigada a gerar energia. Então, naquele situação do Mercado Livre, ela que patrocinou a energia quase gratuita, ela não podia atuar no Mercado Livre porque o governo, veja bem, Antonio, o governo Lula proibiu a Eletrobras de vender energia no Mercado Livre. Ela poderia minimizar, um pouquinho, o seu prejuízo. Foi proibido! Furnas ficou com 2.000 megawatts médios, equivalente a duas usinas de Itumbiara, que é simplesmente a nona maior usina brasileira, vendendo energia por quase nada, ela teve um prejuízo monstruoso, depois foi obrigada a entrar em 178 parcerias como minoritária, já estava com problema financeiro ruim, e aí se endividou mais ainda.

Aí você começa aquele negócio assim, você está criando um problema facilitando os privatistas, porque aí eles vão dizer “está vendo? A Eletrobras lá, como ela está endividada?” e outra, aí você vai você vai se lembrar, a FIESP fez uma campanha, em 2011, dizendo que a nossa tarifa era cara por causa das usinas antigas. Mentira! Entende? Nós tínhamos a tarifa cara por causa das térmicas, e aí o governo da Dilma aceitou a tese, e apesar dessa tese ser perfeita, porque tanto a Noruega quanto o Canadá fazem isso, ela amortiza as usinas antigas, ela fez um verbo da maneira errada, ela retirou a usina da empresa, então a usina só cobre o seu próprio custo. Bom, se ela só cobre o seu próprio custo, ela não paga nada além disso, dos funcionários, além dos parafusos que ela tem que trocar, além das peças que ela tem que trocar lá na usina.

Portanto, só para te dar um exemplo, que é uma desgraça. Por exemplo, na administração, no custo de administração da Eletrobras tem o CEPEL, o CEPEL é o maior centro de pesquisas da América Latina, e ele ficou órfão da Receita de quatorze mil MW de usinas que foram atingidas pela MP 579, ou seja, você deixou a administração órfã, aí a administração em termos percentuais começou a crescer, aí o Wilson Ferreira adora, ele falou assim “tá vendo, olha como é que a Eletrobras é ineficiente, porque o custo dos administrativos dela aumentou”… claro! Você obrigou ela a vender energia de graça, então o custo administrativo…

E uma outra coisa mais grave, nós anulamos o nosso autofinanciamento, porque parte do financiamento de novas usinas vinham de usinas antigas. Você cobrava uma tarifa, você amortizava um pedaço, você tinha um certo lucro. Esse lucro é que financiava uma parte das usinas novas, com essa … que a Dilma fez, interrompeu isso, portanto, agora nós só podemos pegar financiamento fora do setor, e o que é um absurdo, evidentemente, que o setor privado quer anular essa decisão da Dilma, mas ele não vai colocar o preço no preço que nós poderíamos colocar, teria algum aumento tarifário, mas a Eletrobras ganharia, recuperaria, toda a sua capacidade de financiamento.

Eles vão botar muito mais, cinco ou seis vezes. Eles querem que fique mais ou menos no preço médio do Mercado Livre, que é por volta de duzentos e cinquenta reais. Então, meu filho, vai se preparando para pagar a tarifa pro cara aí que vai ser muito caro mesmo.

Antonio Martins: Roberto, nós vamos nos preparar, não só para isso, mas nós vamos nos preparar, que essa é a ideia do Resgate, para pensar o Brasil depois disso. E tudo que você falou, em especial nesse último trecho, eu acho que mostra como foi trágico, inclusive nos governos ditos de esquerda, o predomínio da ideologia do neoliberalismo, que dizia que tudo que era público era pior e que o Estado tinha que fazer tudo o que fosse necessário, inclusive dar muitos recursos da Eletrobras e do BNDES, como você está falando, para financiar os privados que nos jogaram nesse buraco que você demonstrou aqui, também.

Mas você mostrou também e, inclusive com exemplos muito vivos, a possibilidade que existe de recompor um sistema elétrico público do comum, necessário para, você deu desde o exemplo da favela até o exemplo de uma pequena comunidade agrícola, que pode se autossustentar, em parte, gerando energia solar, como exemplo das próprias obras que já existem, nós não vamos desmontá-las, mas onde você poderia acrescentar à energia hidroelétrica, a energia solar. E você deu um exemplo muito eloquente sobre como os desenvolvimentos tecnológicos da fotovoltaica podem produzir, talvez, uma revolução na geração de energia.

Eu te agradeço muito, por essa essa conversa, pelo seu tempo, pela sua inteligência, pelas suas informações.

Roberto D’Araújo: Não exagera.

Antonio Martins: Eu gostaria muito que você, que a gente continuasse em diálogo, para o Projeto Resgate do Outras Palavras.

Roberto D’Araújo: Vamos fazer sim, ótimo. Eu é que te agradeço muito, vamos fazer isso porque a gente, infelizmente, nós temos uma barreira na mídia, apesar dos jornais serem contra o Bolsonaro, eles são a favor do Paulo Guedes, então você não consegue transmitir essas coisas para o consumidor. Eu já tentei, muitas vezes, e nunca consegui. Há uma barreira na mídia. Então eu acho que é através desses canais que estão surgindo, no YouTube, esses canais é que vão possibilitar a gente a fazer isso. Eu tenho atendido a muita gente e eu me sinto muito mais recompensado pelo tempo que você me deu do que pra conversar com um repórter, porque conversa comigo dez minutos e geralmente o que eu falo não aparece no jornal. Então, vamos tocar isso pra frente.

Antonio Martins: Você conte com a gente e estamos juntos nesse projeto de reconstruir o Brasil. Obrigado, Roberto.

Roberto D’Araújo: Antonio, um abração aí. Boa noite pra você

Antonio Martins: Um abraço.

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