O Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0: por uma visão integrada do desenvolvimento econômico, social e ambiental

RESUMO
A pandemia Covid-19 constitui um dos fenômenos mais importantes da história recente. O contexto atual nacional e global revelou, de modo dramático, o acerto da hipótese central do programa de pesquisa do CEIS, que indica a interdependência endógena, analítica e política, entre as dimensões econômicas e sociais do desenvolvimento. À luz do conjunto de desafios postos pelas transformações tecnológicas, econômicas e sociais em curso intensificados com a pandemia, este artigo aponta a necessidade de ousadia político-teórica para superar falsas e lineares dicotomias e
repensar estratégias de desenvolvimento. Finalmente, sugere uma nova agenda para o programa de pesquisa do CEIS, incorporando os desafios levantados pelas transformações contemporâneas e apontando caminhos para que saúde e bem-estar sejam pensados como possibilidades para superar o impasse histórico do desenvolvimento, em uma abordagem sistêmica e estrutural comprometida com o dinamismo econômico, com as necessidades sociais e com a natureza.
Palavras-chave
Covid-19; Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS); Sistema Único de Saúde (SUS); Desenvolvimento econômico; Quarta Revolução Tecnológica.

ABSTRACT
COVID-19 pandemic is one the most important phenomena of recent history. The current national and global context has dramatically revealed the correctness of the central hypothesis of CEIS research program, which indicates the endogenous, analytical and political interdependency between social and economic dimensions of development. In the light of the challenges presented by the current technological, economic and social transformations intensified with the pandemic, this paper points the need of political-theoretical daring to overcome false and linear dichotomies and rethink development strategies. Finally, it suggests a new agenda for CEIS research program, incorporating the challenges raised by the contemporary transformations and pointing out ways so that health and wellbeing are thought as possibilities to overcome the historical impasse of development, in a systemic and structural approach committed to economic dynamism, social needs, and nature.
Keywords
Covid-19; Economic and Industrial Complex of Health (CEIS); Unified Health System (SUS); Economic development; 4th technological revolution.

O subdesenvolvimento, como o deus Janus, tanto olha para a frente como para trás, não tem orientação definida. É um impasse histórico que espontaneamente não pode levar senão a alguma forma de catástrofe social. Somente um projeto político apoiado em conhecimento consistente da realidade social poderá romper a sua lógica perversa. (FURTADO, 1992)

Introdução

Introdução

A pandemia Covid-19 constitui um dos fenômenos mais importantes da história re- cente mundial e do Brasil. Os milhões de casos e mortes provocados pelo novo coro- navírus impactaram diversas esferas materiais e imateriais da organização da vida, além de evidenciar tendências estruturais em um mundo cujas relações econômicas e sociais encontram-se crescentemente marcadas pela conectividade e interdependência social. Diante de uma crise de tal envergadura, recoloca-se o desafio de pensar pers- pectivas teóricas que não se limitem a fazer frente aos elementos conjunturais e impre- vistos, mas também às dimensões estruturais relativas ao padrão de desenvolvimento global e nacional. O presente artigo tem como objetivo discutir o conceito e o progra- ma de pesquisa do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) e argumentar que, a partir dessa perspectiva, é possível propor análises e respostas concretas para os desafios sociais, políticos, tecnológicos, econômicos e ambientais que o mundo vem enfrentando nas últimas décadas, e que foram amplificados pela pandemia.

A hipótese teórica, com desdobramentos políticos do programa de pesquisa que norteia a concepção do CEIS, é a de que uma sociedade equânime, comprometida com os direitos sociais e a vida somente é viável com uma base produtiva, tecnológica e de inovação em saúde que lhe dê sustentação, havendo uma relação endógena entre a di- mensão social e econômica do desenvolvimento. A pandemia do novo coronavírus confirmou de forma trágica essa hipótese e, simultaneamente, a insuficiência de es- colas de pensamento que visualizam o mundo econômico como um sistema isolado da sociedade e da política.

Como em todo sistema complexo, o enfrentamento da emergência sanitária de- mandava, simultaneamente, a convergência de diversas atividades, envolvendo a ca

pacidade de tratamento e análise dos dados epidemiológicos; a produção e disponibi- lização de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para profissionais de saúde; ampla oferta de máscaras, luvas e materiais de higiene e limpeza no contexto de uma população extremamente vulnerável e sem recursos básicos de água e esgoto; capaci- dade de produção industrial em larga escala de testes de diagnóstico moleculares e de processamento dos exames em centros de diagnóstico; uma rede de serviços que en- volve desde a atenção básica até as Unidade de Tratamento Intensivo (UTI); capaci- dade tecnológica e industrial para a produção em escala de ventiladores, medicamen- tos e vacinas (GADELHA, 2020).

O enfrentamento da pandemia mobiliza, de fato, um sistema econômico produti- vo, tecnológico e de inovação de alta complexidade, que envolve diversas indústrias e serviços e a organização dos sistemas de saúde como dimensões interdependentes. O contexto atual nacional e global revelou o acerto da hipótese central do programa de pesquisa que vem sendo desenvolvido na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) há cerca de duas décadas, indicando a interpendência, analítica e política, entre as dimensões econômicas e sociais do desenvolvimento. A saúde, nesse programa de pesquisa, pas- sa a ser vista como um claro e destacado espaço de reprodução da dinâmica capitalis- ta em sua tensa articulação com a vida, a política e a sociedade, superando as visões fragmentadas e setorializadas que ora tratam a saúde como externalidade (ou como mero capital humano) ora como um campo específico e insulado das políticas sociais. A pandemia acentuou a importância de tratar a saúde como um espaço de desenvol- vimento, a um só tempo econômico e social, superando as falsas e lineares dicotomias entre essas esferas e ajudando a repensar estratégias nacionais e globais de desenvol- vimento que integrem e direcionem a expansão da atividade econômica para o aten- dimento das necessidades sociais e para a sustentabilidade ambiental.

O artigo apresenta, na segunda seção, o conjunto de desafios colocados pelas transformações tecnológicas, econômicas e sociais que já vinham se manifestando desde antes da pandemia. Na terceira seção, evidencia que qualquer resposta efetiva para estes desafios passa, necessariamente, pela adoção de uma perspectiva teórica que parta da articulação entre as dimensões econômicas e sociais do desenvolvimen- to. Na quarta seção, apresenta-se o conceito do CEIS tanto do ponto de vista descri- tivo quanto analítico. A quinta seção discute uma nova agenda para o programa de pesquisa do CEIS no contexto da Quarta Revolução Tecnológica, que incorpora os

desafios levantados pelas transformações econômicas e sociais contemporâneas. Nas considerações finais, apontam-se caminhos para que a saúde e o bem-estar sejam pensados como possibilidades para a superação do impasse histórico do desenvolvi- mento, enfrentado atualmente no Brasil e no mundo, requerendo uma abordagem sistêmica e estrutural comprometida com o dinamismo econômico, com as necessi- dades sociais e com a natureza.

2.  Transformações tecnológicas, econômicas e sociais em curso

O Brasil está inserido em um contexto nacional e global de profundas transforma- ções sociais, tecnológicas e econômicas que terão impacto decisivo para os sistemas de bem-estar social, e, em particular, para a área da saúde e para o Sistema Único de Saúde (SUS).

Nos próximos vinte anos, segundo o IBGE, o Brasil terá um crescimento popula- cional de 9,5%, acompanhado de uma profunda mudança demográfica e epidemioló- gica. A população com mais de 60 anos aumentará de 30 milhões para 54 milhões de pessoas, representando mais de 23% dos habitantes. Dentro dessa faixa, as pessoas com mais de 80 anos chegarão a quase 11 milhões de pessoas.3 O quadro de crescente complexidade epidemiológica se aprofundará, com o predomínio das doenças crôni- cas na carga de doenças, mas sem haver um processo linear de transição (FRENK et al., 1991; ARAÚJO, 2012). As doenças transmissíveis e as emergências sanitárias, co- mo revelado pela pandemia Covid-19, continuarão a ter uma presença central nas condições de saúde e na pauta do SUS, especialmente em um cenário de mudanças climáticas. Finalmente, a violência e outras causas externas, como os acidentes de trânsito, podem reforçar as pressões sobre a gestão e financiamento do SUS. O cená- rio em saúde do século XXI, portanto, se caracterizará por um contexto de alta com- plexidade e com um enorme desafio para que o SUS possa se consolidar como um sistema universal.

O avanço da Quarta Revolução Tecnológica e de suas tecnologias pervasivas tem na saúde um espaço privilegiado de desenvolvimento e de interação, trazendo enormes ameaças e potencialidades (SCHWAB, 2017; WORLD ECONOMIC FORUM, 2019; GADELHA, 2019). Digitalização e conectividade entre pessoas e coisas, inteligência artificial, uso de grandes bases de dados (big data), genética e biotecnologia, nanotec- nologia, neurociência, novas formas de geração e distribuição de energia, vida nas ci- dades e nos territórios, novos materiais e todo um conjunto de novas “combinações” (na definição clássica de inovação de Schumpeter) formam um bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar as bases técnicas do capitalismo, com intenso mo- vimento de automação baseado na utilização de redes de máquinas inteligentes, sem que haja uma apropriação social dos ganhos de produtividade (BELLUZZO, 2014). A pandemia Covid-19 acelerou o movimento de disseminação do uso das tecnologias da Quarta Revolução Tecnológica, intensificando a disseminação de tecnologias digitais remotas na área da saúde e da vida social em geral (MAGALHÃES; COULDRY, 2020).

O progresso tecnológico tem um potencial expressivo para aprimorar a qualidade de vida. Abrem-se oportunidades para a promoção de uma vigilância epidemiológica inteligente, uma atenção primária que aproveite as tecnologias digitais para ampliar as ferramentas dos profissionais de saúde na ponta, bem como para uma atenção de alta complexidade apoiada na genômica, entre outras possibilidades. Por outro lado, a Quarta Revolução também traz o risco imenso da perda de uma visão coletiva da saúde e de solidariedade, baseada em uma hipertecnificação e maior segmentação do cuidado para com a saúde. A ciência, a tecnologia e a inovação não são neutras. A di- reção da inovação é dada pela sociedade e, portanto, pode gerar benefícios, mas tam- bém aumentar a fragmentação, a exclusão e a desigualdade, de acordo com o padrão e a direção do progresso técnico e de seu uso social.

A Quarta Revolução Tecnológica também erode as fronteiras entre campos do co- nhecimento, entre o mundo biológico e o material, e entre os setores relacionados à pro- dução de bens e aos serviços para a saúde, provocando uma radicalização do caráter sistêmico da saúde que não mais pode ser ignorado. A produção de inovações em saúde torna-se mais complexa, envolvendo um conjunto de bases de conhecimento distintas, esmaecendo as fronteiras entre os setores industriais e de serviços para saúde.

A possibilidade de uma intervenção pública estruturante, sistêmica e ao mesmo tempo eficaz e eficiente, que aproveite as oportunidades dos novos paradigmas tec

nológicos para promover a sustentabilidade do SUS e dos sistemas de bem-estar nes- se novo contexto, demanda a compreensão desses processos e a aproximação de cam- pos diferentes de saberes, envolvendo, em particular, a economia política e o campo da saúde pública e coletiva, além de diversas áreas das ciências sociais, humanas, exa- tas e biomédicas. Relegar a direção destas transformações apenas a uma lógica mer- cantil fragmentada significa, de um lado, perder efetividade nas políticas de desen- volvimento econômico e tecnológico em saúde e, de outro lado, perpetuar apenas um padrão compensatório – quando possível – de políticas públicas em saúde, que refor- ça a segmentação da sociedade.

As tendências sociais e tecnológicas descritas estão intrinsecamente ligadas às transformações econômicas em andamento nas últimas décadas. O papel crescente dos mercados, agentes e instituições financeiras nos sistemas de saúde, em um fenô- meno de “financeirização” da saúde (BRAGA, 1985; BAHIA et al., 2016), mostra-se intenso e diferenciado entre os países e as regiões do mundo. O predomínio da lógica financeira reorganiza as forças produtivas, tensiona os rumos da Quarta Revolução Tecnológica e limita o desenvolvimento produtivo em várias regiões do globo, com impactos sobre o bem-estar de vários grupos, especialmente dos mais vulneráveis, que não têm acesso aos sistemas de proteção social. Portanto, torna-se imprescindível uma atualização da economia política que discuta, dialeticamente, a dinâmica capitalista na saúde e as especificidades da periferia no contexto atual de transformação, articu- lando a lógica financeira inerente ao capital com os espaços concretos de acumulação de capital, de inovação e dos sistemas de proteção social.

O aprofundamento do movimento de internacionalização e concentração também apresenta desafios para a articulação e desenvolvimento da base produtiva e tecnoló- gica da saúde, particularmente ao esforço de construir capacidades locais. O panora- ma contemporâneo revela crescentes assimetrias econômicas e de poder que reiteram o padrão centro-periferia em múltiplos temas e escalas geográficas.

Como desdobramento, consolida-se o vínculo entre os padrões nacionais de de- senvolvimento e as possibilidades e limites estruturais para a concretização de um sistema universal de saúde no Brasil.

Nesse contexto, torna-se essencial compreender o atual conjunto de transforma- ções que impactam o acesso universal, sob o risco de perpetuarmos políticas públicas ineficazes e incompatíveis com o contexto atual. Portanto, a análise dessas tendências

é essencial não apenas para pensar o futuro dos sistemas de bem-estar, mas para nor- tear ações no presente que visem transformar o futuro sob a perspectiva da garantia dos direitos sociais ao conhecimento e ao desenvolvimento.

3.  A dialética do desenvolvimento capitalista e a articulação endógena entre a lógica econômica e a social

A perspectiva na qual a abordagem do CEIS se sustenta remonta um esforço de pen- sar a saúde a partir dos referenciais das escolas da economia política do desenvolvi- mento. Pretende-se, neste tópico, dar “um passo atrás” para a recuperação das linhas básicas clássicas dessa abordagem para então demonstrar como ela “aterrissa na saúde” a partir do conceito do CEIS.4 O ponto de partida refere-se à própria visão do desen- volvimento capitalista como um processo de permanente transformação na estrutura econômica e social (MARX, 1996; SCHUMPETER, 1983). O sistema se desenvolve na medida em que se transforma, destruindo incessantemente velhas estruturas para a criação de novas. Esse processo incessante de transformação da base produtiva e so- cial, captado no conceito de inovação, foi observado tanto na percepção marxista quanto no processo schumpeteriano de “destruição criadora”.

O movimento histórico, concreto, do capitalismo pode ser compreendido ana- lisando como as forças sociais e políticas lidaram com a dinâmica contraditória en- tre expansão e acumulação de capital e a tendência imanente ao sistema capitalista de gerar assimetrias, exclusão, desigualdade, perda de legitimidade social e insus- tentabilidade.

Keynes, por sua vez, sob a influência do espírito da época, demonstrou teorica- mente as contradições entre os determinantes do investimento – definido em con- dições de incerteza, não passíveis de cálculos probabilísticos – e da demanda efetiva, fornecendo a base conceitual para a formação de um pacto entre mercado e socie

dade, manifesto na concepção e nas políticas que originaram o Estado de bem-estar social do pós-guerra.

Sem entrar na enorme diversidade das experiências dos países capitalistas desen- volvidos, a trágica experiência da primeira metade do século XX levou à formação de uma convenção no pós-guerra que associava a aceleração da acumulação de capital, crescimento, inovação e o consumo de massa com a promoção da intervenção do Estado na sustentação dos investimentos e na garantia de direitos e de proteção social. Essa convenção estendeu-se ao longo da segunda metade do século XX, ainda que os impulsos da lógica imanente do capital já se manifestassem após os “trinta gloriosos anos” (ERBER, 2007).

Em âmbito internacional, essa experiência de convergência virtuosa se mostrou bastante localizada em um grupo reduzido de países líderes, ainda que abrindo espa- ços para algumas experiências desenvolvimentistas, como a brasileira, e com a incor- poração de alguns poucos países no grupo “desenvolvido”, sempre havendo fatores geopolíticos estratégicos decisivos (a exemplo do Japão, Coreia do Sul e China, mais recentemente). De certa forma, a desigualdade e a polarização capitalista manifesta- ram-se de modo mais explícito na conformação (ou reafirmação) de uma ordem glo- bal essencialmente assimétrica e desigual.

A escola cepalina foi a que melhor captou essas assimetrias globais muito an- tes das “modernas” teorias da complexidade econômica. O subdesenvolvimento passa a ser compreendido como uma forma peculiar de integração ao capitalismo global e não uma etapa pela qual todos os países passaram ou devem passar em seu processo de desenvolvimento (FURTADO, 1964a; PREBISCH, 2010). Originalmente, Celso Furtado foi o desenvolvimentista que mais avançou teori- camente na conexão entre investimento, desenvolvimento industrial e transformação produtiva com as necessidades sociais e o modelo de sociedade. As estruturas social e econômica estão intrinsecamente ligadas, como revelado no caso do desenvolvimento brasileiro.

A Figura 1 ilustra o círculo vicioso do subdesenvolvimento em uma abordagem que integra a base produtiva com a reprodução de relações sociais comprometidas com o atraso e a dependência, superando qualquer visão determinista da base produ- tiva sobre o processo de desenvolvimento que envolve, indissociavelmente e por definição, o bem-estar, a qualidade de vida e relação com a natureza.

Figura 1 | A dinâmica interna do capitalismo periférico: relação endógena entre estrutura produtiva e social

Fonte: Elaboração do autor.

O encadeamento lógico-histórico de reprodução da dependência tecnológica-pro- dutiva parte então da constatação de que a estrutura econômica brasileira se caracte- riza pela determinação externa da acumulação capitalista, uma herança que perma- nece mesmo depois do esforço de internalização de setores realizado no processo de industrialização. Um sistema econômico desarticulado dos interesses nacionais que reproduz historicamente uma base produtiva incapaz de se manter e estar à frente de setores tecnologicamente mais avançados (FURTADO, 1999) e que gera fragilidades estruturais inclusive para as políticas sociais.

De um lado, a reprodução dessa estrutura econômica limita o potencial do cres- cimento da economia brasileira e torna vulnerável as políticas sociais pelas relações externas. A restrição externa é estrutural, sendo o balanço de pagamentos a grande expressão da dependência e do atraso tecnológico. De outro lado, simultaneamente, se reflete nos problemas crônicos do mercado de trabalho5 e na vulnerabilidade da política social, encapsulando a área social em suas funções compensatórias, sem ca- pacidade de se constituir como elemento dinâmico.

Em seu movimento dinâmico, a estrutura econômica brasileira leva inexoravel- mente à reprodução de uma estrutura social fundada na dependência e na desigual- dade, engendrando um círculo vicioso. A economia pode apresentar ciclos de cresci- mento, conforme as experiências dos períodos de industrialização no século XX e, mais recentemente, nos anos 2000, no entanto, os problemas estruturais relacionados à dependência tecnológica-produtiva se manifestam persistentemente, repondo – de modo agudizado – a condição de vulnerabilidade econômica e social.6

A superação do subdesenvolvimento passa, necessariamente, pela compreensão dessa realidade e pela superação de velhas fronteiras epistemológicas que cindem o mundo social, econômico e ambiental em dimensões distintas. As crescentes assimetrias internacionais, nacionais e regionais derivam da “natureza” dialética do processo de desenvolvimento capitalista e sugerem a existência de uma relação endógena entre a estrutura produtiva e a social. A partir dessa perspectiva, os atrasos econômico e social passam a ser compreendidos como dimensões distintas de um mesmo pro- blema, o subdesenvolvimento, que se expressa internacionalmente como assimetrias entre países e nacionalmente como heterogeneidades estruturais.

A análise dos trabalhos dos expoentes do estruturalismo latino-americano revela que constitui um erro grosseiro, caricato, generalizar que o pensamento desenvolvi- mentista se associava apenas à ideia de industrialização a qualquer preço, sem incor- porar a dimensão social e ambiental do desenvolvimento. Em praticamente todas as obras de Furtado aparece, no núcleo de sua visão, o dilema entre a transposição de um padrão de consumo exógeno e a reprodução das condições de marginalização da população dos frutos do progresso técnico. Era explícita e recorrente sua afirmação de que a industrialização e o crescimento em si não constituem condições suficientes para o desenvolvimento, podendo representar enclaves que fortalecem apenas o con- sumo mimético das elites dos países subdesenvolvidos (FURTADO, 1992).

Não obstante, o erro simétrico é desconsiderar a lógica do capital, a transformação produtiva e a capacidade de inovação como fatores essenciais de soberania e de desenvolvimento das forças produtivas para a concepção e implementação de projetos na- cionais de desenvolvimento nas suas vertentes econômicas e sociais. Pode-se afirmar que esta característica dialética do desenvolvimento foi, em grande medida, negligenciada, engendrando dicotomias simplistas que colocam em posições antagônicas a prá- tica social e a geração e absorção de tecnologias ou o desenvolvimento econômico e o socioambiental, como se fossem “mundos” que pudessem ser compreendidos isolada- mente e cuja intervenção do Estado pudesse ser compartimentalizada, ainda que sob o manto mais abrangente das políticas sociais, de um lado, e das políticas econômicas, de desenvolvimento e de ciência, tecnologia e inovação (CT&I), de outro.

A citação abaixo de Celso Furtado evidencia, em uma forma sintética, as dimensões do processo de desenvolvimento, incorporando a transformação social, a inova- ção e o atendimento das necessidades humanas:

cabe definir o desenvolvimento econômico como um processo de ‘mudança social’ pelo qual o crescente número de ‘necessidades humanas’ – preexistentes ou criadas pela própria mudança – são satisfeitas através de uma diferenciação no sistema produtivo’, decorrente da introdução de ‘inovações tecnológicas’ (FURTADO, 1964b, p. 29, destaques meus).

Para se contrapor ao projeto de submeter a sociedade aos imperativos do mercado desregulado é necessário um projeto corajoso, para superar nossa insuficiência teóri- ca. O papel dos intelectuais orgânicos do campo progressista neste contexto é decisi- vo: uma análise acurada, combativa, teórica e política do presente para construir uma visão alternativa de futuro que permita integrar as dimensões econômica, social, ter- ritorial, ambiental e nacional do desenvolvimento e que forneça, para nossa socieda- de, uma base sólida para a emergência de energias utópicas – no sentido sugerido por Habermas (1987), que trata a utopia como projetos concretos de mudança – necessárias à transformação.

Em outro trabalho, em conjunto com José Gomes Temporão, apontávamos que se, por um lado, o movimento histórico possui um papel-chave ao demonstrar que não exis- tem modelos gerais de organização da sociedade e do mercado no capitalismo para a superação desta dinâmica contraditória, por outro impede conclusões deterministas, ao apontar que a intencionalidade dos agentes, a ação da sociedade e o Estado possuem um peso decisivo para transformar as condições prévias, sem o que o sistema produtivo e so- cial pode ficar trancado no passado, em um lock in effect (GADELHA; TEMPORÃO, 2018).

A Figura 2 mostra, de modo direto e simples, o desafio teórico e político para o tratamento da relação entre dinâmica econômica e as transformações políticas, so- ciais, institucionais e ambientais. Não se trata apenas de captar a noção de que o cres- cimento econômico e a distribuição de renda contribuem para as políticas sociais ou que essas são funcionais ao desenvolvimento econômico com a noção do fornecimen- to de externalidades. Trata-se, sim, de pensar como a dinâmica capitalista se reproduz por dentro dos sistemas de bem-estar social, condicionando as políticas públicas. Em outras palavras, o Estado de bem-estar possui uma base material concreta – na saúde captada pelo conceito do CEIS – que está intrinsecamente vinculada à dinâmica do capital e a todas suas contradições.

Figura 2 | O processo de desenvolvimento: dimensões endógenas

Fonte: Elaborada pelo autor.

Essa perspectiva incorpora os processos de mudança estrutural no interior dos sistemas de bem-estar, sendo uma fonte decisiva de desenvolvimento a longo pra- zo, indo muito além do reconhecimento dos efeitos multiplicadores do gasto social, que possuem impacto na expansão da renda pelos encadeamentos nas cadeias pro- dutivas e pelos efeitos decorrentes dos gastos de consumo das pessoas e famílias beneficiadas (o gasto social possui um efeito multiplicador de quase duas vezes, segundo estimativas recentes). Dessa forma, a construção de uma sociedade e de um Estado de bem-estar emerge, simultaneamente, como condição essencial de ci- dadania e de um processo de mudança estrutural que abre oportunidades de in- vestimento, inovação, geração de emprego e renda, de receitas públicas e de cres- cimento sustentável a longo prazo. É essa a perspectiva sistêmica e estrutural que originou o conceito do CEIS e que possui fortes desdobramentos para repensar as políticas públicas com a articulação das dimensões econômicas, sociais e ambientais do desenvolvimento.

4.  O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS)

Seguindo a perspectiva do tópico anterior, o campo da saúde, pela práxis que lhe é inerente, tem significativo potencial para contribuir para uma visão integrada do de- senvolvimento global e nacional. A saúde constitui um espaço privilegiado, cognitivo e político para analisar como a dinâmica do capital se reproduz no campo social, transformando a base material e social da produção de bens e serviços, e, simultane- amente, gerando exclusão, desigualdade e risco social que abalam os objetivos huma- nistas de uma vida boa e saudável em âmbito coletivo e individual.

Trata-se agora de definir e inserir a abordagem e o conceito do CEIS a partir de um diálogo entre a abordagem da economia política do desenvolvimento com a tradição do pensamento em saúde pública. A história do desenvolvimento do campo da saúde cole- tiva, da medicina social e da própria concepção do SUS, o maior sistema público univer- sal de saúde do mundo, criado pela Constituição de 1988, contou com contribuições marcantes da atuação teórico-prática de intelectuais orgânicos como Mario Magalhães da Silveira, Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro, Cecília Donnangelo, Carlos Gentille de Mello, entre outros (HOCHMAN; LIMA, 2015), que foram além do puro exercício da crítica, para pensar a transformação do sistema de saúde a partir de uma base conceitual próxi- ma à da economia política (forte influência do pensamento marxista e estruturalista).

À tradição da saúde coletiva e da medicina social aliaram diagnóstico e inteligên- cia estratégica, de modo a associar aos problemas gerais do subdesenvolvimento bra- sileiro a questão democrática, o acesso universal à saúde e a necessidade de políticas dirigidas à redução da dependência associadas aos “insumos em saúde”. Nesta longa caminhada, foi fundamental um amplo processo de mobilização de forças políticas e organizações sociais para que o reconhecimento constitucional do direito universal à saúde como obrigação do Estado brasileiro se tornasse realidade.

O programa de pesquisa do CEIS estabelece uma agenda de investigação em torno da relação entre saúde e desenvolvimento dentro do contexto capitalista (GADELHA, 2007; GADELHA; TEMPORÃO, 2018), procurando captar a interdependência econômica, tec- nológica, política e institucional presente no campo da saúde. A abordagem emerge como uma aproximação crítica que busca integrar os campos da economia política e da saúde coletiva, superando, de um lado, visões reducionistas, economicistas e “técnicas” que se centram apenas em cadeias produtivas e setores de atividade isolados e, de outro, visões insuladas do campo da proteção social e bem-estar e da área da saúde. O grande desafio é captar, no campo da saúde, a relação entre o desenvolvimento da base produtiva e tecno- lógica com a sua contribuição para a sociedade de modo equânime, integral e universal.

A perspectiva sistêmica deveria ser uma decorrência natural da visão de saúde co- letiva. Se o SUS é pensado como sistema, sua base produtiva, material e de conheci- mento também teria que ser analisada de modo sistêmico para captar as interdepen- dências e interação com o sistema de saúde. Restringir o tema da base produtiva aos ‘insumos em saúde’ significa, inadvertidamente, assumir uma inaceitável relação de que o ‘bem’ industrial é o ‘insumo’ e a saúde – ou mesmo os serviços – o seu resulta- do natural (o produto final) (GADELHA; TEMPORÃO, 2018, destaques no original). Como mencionado no tópico anterior, o fundamento conceitual do CEIS está as- sentado em quatro abordagens do desenvolvimento: a marxista, a schumpeteriana, a keynesiana e a estruturalista. A combinação de conhecimentos dessas escolas permitiu a consolidação de aspectos teóricos e políticos centrais na abordagem do CEIS: a visão sistêmica do espaço da produção e inovação; a análise dialética do processo de desenvolvimento; a inovação como um processo de transformação política e social; a geração de assimetrias no processo de desenvolvimento, a importância da soberania nacional para alcançar a sustentabilidade do SUS (objetivo político e acadêmico da construção do conceito); e o papel decisivo do Estado para coordenar e dar direção às atividades do CEIS e promover o desenvolvimento.

Como resultado, o gasto em saúde passa a ser compreendido como investimento em saúde; em detrimento da estática alocativa, foi dada ênfase à dinâmica e à inova- ção em vez do foco nos setores; predomina a dimensão sistêmica; a estrutura econô- mica e a social são interligadas; as assimetrias e hierarquias entre pessoas e grupos sociais, regiões e países são enfatizadas; e o mundo do conhecimento se confronta com as necessidades sociais e humanas (GADELHA; TEMPORÃO, 2018).

Analiticamente, o CEIS constitui um espaço institucional, político, econômico e social delimitado, no qual se realizam a produção e a inovação em saúde. As dinâmicas de produção e inovação das atividades relacionadas ao campo da saúde são inter- dependentes, caracterizando-se como um sistema que capta a interface entre os sistemas nacionais de saúde e os sistemas nacionais de inovação. O espaço produtivo e de inovação do CEIS constitui a arena central em que a tensão entre os interesses do ca- pital e os objetivos sociais se concretizam na saúde.

A Figura 3 apresenta a morfologia do CEIS, a partir de sua concepção original, que delimitava o sistema e os subsistemas industriais e de serviços no contexto da Terceira Revolução Tecnológica (GADELHA, 2003). A produção em saúde envolve um espectro amplo de atividades industriais, com um conjunto de setores que adotam paradigmas de base química e biotecnológica e outro conjunto cujas inovações fundamentam-se em paradigmas de base mecânica, eletrônica e de materiais. A produção desse conjunto de segmentos conflui para o espaço produtivo de prestação de serviços de saúde, fortemen- te articulado, que envolve a atenção básica, serviços de diagnóstico e tratamento, am- bulatoriais e hospitalares, condicionando a dinâmica competitiva e tecnológica do CEIS.

A abordagem sistêmica do CEIS lida, simultaneamente, com a perspectiva da saúde como direito inerente à cidadania e como espaço estratégico de desenvolvimento da base produtiva e tecnológica, de criação de valor e de geração de investimento, renda, emprego, conhecimento e inovação. Desprovidas de políticas que garantam a sobera- nia nacional na produção e inovação em saúde, a expansão do SUS caminha em con- junto com a ampliação das restrições externas, gerando obstáculos à sustentação do crescimento econômico e à universalização do acesso à saúde. O papel do Estado, por- tanto, é central tanto para garantir os objetivos da capacitação produtiva e tecnológica quanto do acesso universal, superando a oposição simplista entre Estado e mercado.

5. As transformações contemporâneas, o CEIS 4.0 e uma nova agenda de pesquisa

As transformações econômicas, tecnológicas e sociais indicadas acima levaram a ne- cessidade de atualização da abordagem do CEIS para contemplar, especialmente, o movimento disruptivo em termos econômicos, sociais e políticos associados à Quarta Revolução Tecnológica, não importando a designação formal desse profundo proces- so de transformação. A trajetória do programa de pesquisa do CEIS, desde sua origem, procurou articular a geração do conhecimento com sua aplicação concreta nas polí- ticas públicas em saúde e na gestão das organizações de produção e de ciência, tecno- logia e inovação em saúde (tendo a Fiocruz como grande modelo e inspiração). Foram estabelecidas conexões orgânicas entre a teoria, as propostas de intervenção e a busca de mudança na realidade concreta, permitindo interações virtuosas, coerentes e con- vergentes no âmbito de um programa de pesquisa com forte vínculo com a transfor- mação social, configurando uma práxis.

O diálogo próximo com o contexto social, econômico e político, por sua vez, tem alimentado e tensionado a visão teórica, impondo uma crescente busca de evolução no programa de pesquisa, envolvendo desde a definição dos objetos, a formulação de hipóteses e a análise até sua avaliação da realidade, em uma busca incessante, que nunca chega ao fim, pela superação dialética dos resultados obtidos a cada momento. Ao avançar na dimensão teórico-conceitual da relação entre saúde e desenvolvimen-

to, na perspectiva do conceito do CEIS, evidenciou-se a necessidade de aprofundar a agenda de pesquisa relacionada ao impacto das transformações globais. Mudanças de- mográficas e epidemiológicas; globalização e financeirização crescentes; Quarta Revolução Tecnológica; aprofundamento das assimetrias econômicas e tecnológicas; mudanças climáticas e no mundo do trabalho. O conjunto de mudanças em marcha coloca novos desafios para a discussão da relação entre desenvolvimento e saúde no contexto capita- lista, dado que possui potencial de transformar radicalmente a saúde, tanto em sua ba- se social como produtiva. Portanto, as tendências contemporâneas geram novos proble- mas de pesquisa, demandam novas respostas e novas formulações teóricas, seguindo uma perspectiva contextualizada das ciências sociais, como a economia.

A escala vertiginosa da interconectividade da informação entre pessoas e com o mundo produtivo real, físico e biológico, é a característica decisiva da Quarta Revolução

Tecnológica. Mantendo uma perspectiva rigorosa da inovação como um processo de transformação política, econômica e social, torna-se essencial apreender seu impacto nas formas de produção, inovação e consumo em saúde que condicionam o cuidado e o acesso universal.

A erosão das fronteiras entre setores e campos do conhecimento é uma das con- sequências das transformações tecnológicas e provoca uma radicalização do caráter sistêmico da saúde. O surgimento de novos paradigmas e trajetórias tecnológicas acar- reta, simultaneamente, grandes transformações no campo da saúde, abrindo novos espaços de acumulação e oportunidades tecnológicas e engendrando riscos de ruptu- ra dos sistemas universais e da dimensão coletiva e pública da saúde em favor de uma organização fragmentada, individualista e estratificada do cuidado, corroendo por dentro, e de modo estrutural, os objetivos de universalidade e de equidade.

A Figura 4 atualiza a morfologia original do CEIS (GADELHA, 2003) para o contexto da Quarta Revolução Tecnológica com a emergência de um subsistema de base informacional e conectividade e um novo desenho para o subsistema de servi- ços de saúde. Nesse novo contexto, o caráter sistêmico do CEIS é reforçado e as fron- teiras entre seus diversos subsistemas e segmentos ficam borradas, destacando a in- terdependência entre todas as atividades econômicas, produtivas e tecnológicas em saúde, configurando um claro espaço simultâneo de acumulação de capital e de ino- vação crítico para o bem-estar e a sustentabilidade do SUS e dos sistemas universais de saúde em geral.

Os subsistemas do CEIS são definidos a partir de uma base de conhecimento cha- ve que une distintas atividades importantes para a dinâmica de inovação e produção em saúde e pela sua relevância econômica e social para as políticas públicas (GADELHA, 2003; GADELHA et al., 2013). Para além dos impactos pervasivos das tecnologias as- sociadas à Quarta Revolução Tecnológica, é possível identificar um conjunto de ati- vidades que compartilham uma base de conhecimentos utilizada para a digitalização e conectividade em grande escala da base produtiva de bens e serviços em saúde e pa- ra a produção, gestão e exploração dos dados em saúde. Ao mesmo tempo que emerge esse novo espaço de acumulação em saúde, cresce a relevância de atores associados a essa nova base de conhecimento, com elevado poderio econômico e político no siste- ma produtivo e de inovação da saúde, condicionando toda dinâmica do CEIS para além das fronteiras do próprio subsistema de informação e conectividade.Neste esforço analítico, também foram introduzidas no âmbito do CEIS as formas institucionais e monetárias de organização das atividades entre os agentes e as estru- turas econômicas. O acesso à saúde e as relações monetárias de produção no âmbito do CEIS são condicionadas pela organização do SUS, da Saúde Suplementar e pela re- lação direta dos usuários na compra de bens e serviços. Esse ambiente institucional e monetário constitui o substrato social concreto no qual a dinâmica de produção e inovação em saúde se realiza. Desse modo, evidencia-se o nexo político e institucional típico de uma abordagem de economia política que trata o CEIS como um sistema a um só tempo econômico, social, produtivo e tecnológico que incorpora uma determi- nada visão da relação entre saúde e desenvolvimento.

Fonte: Elaboração do autor.

O aprofundamento do movimento de internacionalização e concentração do capital nesse espaço sistêmico interdependente, seguindo uma lógica financeira inerente ao capitalismo, representa enormes desafios para a articulação e desen- volvimento do CEIS, especialmente na periferia. O panorama contemporâneo re- vela crescentes assimetrias econômicas e de poder que conformam a reiteração do padrão centro-periferia em múltiplos temas e escalas geográficas. Como desdobra- mento, consolida-se o vínculo entre os padrões nacionais de desenvolvimento e as possibilidades e limites estruturais para a concretização de um sistema universal de saúde no Brasil.

Essa perspectiva que associa o econômico, o social e o político – ou seja, a dimen- são de economia política – se aplica também para pensarmos o desenvolvimento re- gional. Ao refletir sobre a regionalização da saúde a partir da configuração da rede do serviço de saúde no território brasileiro, cuja estrutura de oferta “congela” o padrão desigual da atenção à saúde, coloca-se a necessidade de se propor uma estruturação da base produtiva de serviços que não seja reprodutora de desigualdades. Mais uma vez, “por dentro” da questão geral do desenvolvimento, em sua dimensão territorial, a saúde “mostra sua face” como parte do projeto nacional adotado. Se saúde está rela- cionada ao desenvolvimento da forma estrutural proposta, a dimensão territorial se revela crítica e endógena ao padrão nacional, sendo ponto de partida e um dos ele- mentos-chave de sua transformação.

As transformações tecnológicas, produtivas e institucionais também provocam mudanças profundas no mundo do trabalho e do emprego. O surgimento de novas ocupações, competências, capacitações e formas de contratação afetam a questão do trabalho e do emprego de forma decisiva, com uma tendência à ampliação da polari- zação da estrutura social. Ao mesmo tempo, as diversas atividades ligadas à saúde e ao cuidado se mantêm como grandes geradoras de ocupações qualificadas. Dessa for- ma, torna-se vital compreender como as transformações no mundo do trabalho im- pactam a relação entre saúde e desenvolvimento, especialmente tendo como objetivo um padrão de crescimento inclusivo, isto é, que persiga simultaneamente a elevação da produtividade, do salário real e do bem-estar.

A incorporação da dimensão ambiental e dos desafios colocados pelas mudan- ças climáticas são questões incontornáveis na agenda de pesquisa contemporânea em saúde. As abordagens que tratam a questão ambiental como meras externali

dades devem ser abandonadas por outras que permitam captar a natureza interde- pendente dos modelos de organização da produção e da sociedade com o meio am- biente. Ao mesmo tempo, rejeita-se a dicotomia entre crescimento e proteção ao ambiente. O desenvolvimento e a inovação são fundamentais para a promoção de uma mudança estrutural que garanta a sustentabilidade ambiental. A reprodução do subdesenvolvimento, a ausência de inovações e a estagnação reproduzem uma estrutura produtiva insustentável que agride o meio ambiente e amplia as assime- trias globais.

Há um acúmulo de trabalhos e experiências concretas que permitiu a constru- ção de instrumentos e políticas públicas para fomentar o desenvolvimento produ- tivo em atividades do CEIS ao mesmo tempo que garantiu maior sustentabilidade ao SUS. Os trabalhos evidenciaram que o uso do poder de compra do Estado possi- bilitou a incorporação tecnológica de processos produtivos em laboratórios públicos e privados nacionais por intermédio da garantia de compra desses produtos para o sistema público de saúde. Dadas as transformações globais apontadas, torna-se es- sencial investigar quais devem ser as formas de atuação do Estado em uma nova ge- ração de políticas públicas que permitam a coordenação e o desenvolvimento das atividades do CEIS de forma a garantir o acesso universal à saúde no Brasil. De cer- ta forma, a abordagem adotada para pensar a saúde remete para a necessidade de repensar e de avançar na concepção de um novo Estado desenvolvimentista que aprenda com as experiências e os erros do passado e que se atualize para enfrentar os desafios do futuro.

Em suma, buscou-se apresentar uma síntese dos conhecimentos apreendidos e apontar para novas agendas de pesquisa relacionadas à relação entre desenvolvimen- to e saúde a partir da perspectiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. O esforço empreendido propiciou um maior suporte às políticas públicas recentes rela- cionadas ao desenvolvimento e à saúde coletiva e à sustentabilidade do SUS. Ao mes- mo tempo, permite identificar uma agenda futura, incluindo os temas da Quarta Revolução Tecnológica; financeirização; mundo do trabalho; dimensão ambiental e regional do CEIS; e a necessidade de formular novas políticas públicas para lidar com o conjunto de transformações em curso e os desafios para garantir a sustentabilidade estrutural do SUS no século XXI.

4.  A saúde e o bem-estar como saída estruturante da crise

A crise atual global, cujas conexões teóricas e da vida foram reveladas durante a pan- demia, colocam em evidência o papel decisivo dos Estados de Bem-estar e dos siste- mas universais, da base produtiva e de inovação nacional e a inserção soberana do País na geopolítica global, elucidando perspectiva sistêmica na qual o conceito do CEIS se desenvolveu e pretende avançar, considerando os desafios contemporâneos do ca- pitalismo global e de desenvolvimento do SUS.

A pandemia evidenciou o longo processo de desindustrialização, de fragilidade da ba- se produtiva e tecnológica nacional e que esta posição de dependência é insustentável não só do ponto de vista do desenvolvimento econômico, mas também se apresenta como questão de soberania e segurança em saúde. Essa discussão deve ser ampliada para pen- sarmos o desenvolvimento da base econômica, produtiva e tecnológica em saúde – o CEIS

– como fator estrutural para a sustentabilidade e para o próprio funcionamento do SUS. A crise Covid-19 antecipou e intensificou desafios decorrentes das transformações contemporâneas, considerando a emergência de um novo paradigma industrial em direção à indústria 4.0 e o imperativo da sustentabilidade socioambiental do cresci- mento econômico. A pandemia colocou em xeque as cadeias globais de valor, o co- mércio internacional e os investimentos, evidenciando amplos desafios para os países em desenvolvimento.

Considerando as dimensões continentais do Brasil e a potência de seu mercado interno para induzir a diversificação e internalização de setores produtivos dinâmicos (MEDEIROS, 2015), emerge a decisiva questão de qual base social e política condicio- na simultaneamente a montagem de estruturas densas de bem-estar social e de desen- volvimento tecnológico. A diversificação produtiva e o avanço em setores mais dinâ- micos, relacionados à demanda por atividades de maior conteúdo tecnológico, estão fortemente associados à demanda do governo (MAZZUCATO, 2013), como re- velado no caso da busca da vacina para a Covid-19.

Entre as áreas líderes no contexto da Quarta Revolução Tecnológica, a área social e a saúde, em particular, têm forte protagonismo, e isso pode ser uma oportunidade de superação das vulnerabilidades históricas brasileiras. Os desafios do Estado Social do século XXI passam pelo reconhecimento do poder de transformação da Quarta Revolução Industrial, como chama atenção Wanderley Guilherme dos Santos (2018).

Estamos diante de um mundo que abre enorme potencial de abundância material em meio ao risco de relegar enorme contingente da população ao desamparo, à miséria, ao abandono. Durante o século XX, os ganhos de produtividade foram enlaçados na direção da construção do Estado de Bem-estar, da ampliação de direitos, levando a um modelo de desenvolvimento onde puderam ser conciliados crescimento econômi- co, redistribuição de renda e maior igualdade. E agora? Como atuar para que os enor- mes ganhos de produtividade decorrentes da emergência do novo padrão sejam com- partilhados? Ou vamos virar uma sociedade ainda mais cindida? A direção depende da capacidade política de orientar um padrão de desenvolvimento para enfrentar a dependência e o atendimento das necessidades sociais, simultaneamente.

É necessário um novo tipo de desenvolvimento, com dinamismo e forte sentido de equidade social. Para consegui-lo, políticas anticíclicas e compensatórias são ne- cessárias, mas insuficientes. Diante da crise e dos desafios atuais, impõem-se profun- das transformações estruturais que abram espaço para as forças expansivas que estão gravemente refreadas, em detrimento das vastas possibilidades de melhora humana oferecidas pelos avanços científicos e tecnológicos.

Transformações de estrutura exigem uma estratégia e a recuperação da capacida- de de planejamento, mas assumindo a necessidade de recriar um novo Estado desen- volvimentista. Torna-se necessário aprender com os erros do passado para superar resistências, evitar a captura pelos interesses arcaicos, a burocratização da criativida- de e o isolamento da sociedade, sem a qual os caminhos para a transformação ficam bloqueados para a (re)construção de um novo futuro que vá muito além de um velho e atrasado normal que se apresenta sob o manto da mudança.

A área da saúde revela sua potência para contribuir política e conceitualmente pa- ra o Brasil transpor os velhos desafios de superação do subdesenvolvimento. A trans- formação da base produtiva e tecnológica mostra sua conexão com um modelo de so- ciedade. O acesso universal, a inclusão social, a equidade e as políticas sociais mostram-se não apenas compatíveis, mas como fatores essenciais para a retomada do desenvolvimento econômico e social. Os direitos não apenas “cabem no PIB”, mas, ao se concretizarem em grandes desafios nacionais, são fontes estruturais de demanda para o setor produtivo. Podem e devem ser vistos como parte da solução da crise atu- al, gerando renda, emprego, investimentos, inovação e tributos, permitindo um ajus- te progressivo e não de regressão civilizatória do País.

A crise contemporânea global e nacional impõe aos intelectuais, às instituições de pesquisa e ao Estado nacional o desafio de correr riscos, de promover a inovação e o experimentalismo nas políticas públicas e de quebrar os muros entre as políticas so- ciais, ambientais, econômicas e de inovação. É hora de ousadia para incorporar novas abordagens e, progressiva e coletivamente, buscar uma visão que forneça o substrato para um novo projeto de desenvolvimento que incorpore uma profunda mudança no padrão de atuação do Estado. Essa é a condição primordial para que a sociedade não seja enganada pelas soluções únicas e possa voltar a ter utopias e energias transforma- doras com vistas à construção de um País dinâmico, inovador, inclusivo, democrático e social e ambientalmente justo.

Agradecimentos

O autor agradece a Felipe Kamia, Juliana Moreira, Karla Montenegro, Leandro Safatle e Marco Nascimento (Coordenação das Ações de Prospecção e Grupo de Pesquisa so- bre Desenvolvimento, Complexo Econômico-Industrial e Inovação em Saúde/Fiocruz), pelas valorosas sugestões e contribuições no levantamento de informações em suas respectivas áreas de atuação.

Notas:

  1. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e-mail: [email protected]
  2. Este artigo conta com apoio financeiro da Fiocruz por meio do projeto “Desafios para o Sistema Único de Saúde no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas – CEIS 4.0”. As opiniões expres- sas refletem a visão do autor.
  3. Baseado na projeção da população do Brasil, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para os anos de 2020 e 2040 (IBGE, 2018).
  4. Este tópico pretende, particularmente, dialogar com leitores do campo da saúde coletiva que não viveram a traje- tória teórica da economia política do desenvolvimento. Ao mesmo tempo ressalta para os economistas que se- guem essa tradição o salto que precisa ser dado, voltando aos clássicos, para integrar analiticamente o campo das políticas sociais na visão do desenvolvimento, para além de uma perspectiva insulada, compensatória e exógena de sua relação com a mudança econômica estrutural.
  5. Marcado pela informalidade, fundado em baixos salários e com pouquíssimos empregos qualificados associados à classe média.
  6. O colapso na oferta de ventiladores pulmonares no auge da crise pandêmica da Covid-19 refletia, ao mesmo tem- po, a vulnerabilidade econômica e social, mostrando a clara interdependência endógena entre essas dimensões. Foi necessária a crise pandêmica para que essa perspectiva fosse vista com maior clareza pelos economistas.

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