Londres-2012, euforia e fantasmas

Numa Grã-Bretanha mergulhada em incertezas, romance convida a repensar Jogos, dissipar discurso ingênuo de orgulho-e-legado e enxergar interesses em conflito

 

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Numa Grã-Bretanha mergulhada em incertezas, romance convida a repensar Jogos, dissipando discurso ingênuo de orgulho-e-legado e enxergando interesses em conflito

Por Joanna Kavenna,* no Prospect | Tradução: Antonio Martins

Londres sedia pela terceira vez os Jogos Olímpicos. Em 1908, a Inglaterra era uma nação rica e imperial e os atletas britânicos encabeçaram o quadro de medalhas. Nos “Jogos da Austeridade”, em 1948, Londres vivia, sob um regime de racionamento, as cicatrizes dos bombardeios e dos sofrimentos de guerra. Não havia dinheiro para novas construções, e os atletas foram abrigados em barracas da Royal Air Force. Os Estados Unidos venceram a disputa por medalhas, enquanto o Grã-Bretanha descia para o 12º posto. Este ano, o país está de novo atolado em incerteza econômica. Mas a conquista do direito de realizar os Jogos deu-se nos período inebriante que antecedeu a crise financeira. Em 6 de julho de 2005, quando veio a notícia da escolha da cidade, houve cenas de júbilo genuíno, não-fabricado, em Trafalgar Square. O discurso oficial falava em inspirar uma geração, transformar os esportes britânicos e regenerar a parte leste da cidade (East London), em especial um trecho abandonado a leste de Stratford, uma área multiétnica de casas velhas, galpões industriais, estações ferroviárias e parques urbanos inacabados.

“Temos uma grande oportunidade de… deixar um legado para o futuro”, disse o então primeiro-ministro Tony Blair. No dia seguinte, 7 de julho, uma série de atentados suicidas atingiu o sistema de transportes da cidade; 52 pessoas foram mortas e mais de 700, feridas. Blair, desafiador, falou em “afirmar o British way of life”. O então prefeito de Londres, Ken Livingstone, citou Péricles de Atenas (“Tudo o que é grande flui para a cidade”) e opôs o sonho olímpico ao terrorismo global.

A construção do Parque Olímpico, em Stratford, tornou-se um empreendimento de alta segurança: toda a área foi entupida de aparatos de segurança. Atrás das cercas, o Parque emergiu: um estádio de aço para 80 mil pessoas, armado em estruturas piramidais reluzentes; um centro aquático; um velódromo; e uma vila de atletas. Enquanto isso, o Reino Unido decaía de uma prosperidade ilusória para uma depressão profunda; uma coalizão deselegante entre Conservadores e Liberais substituiu um Partido Trabalhista, afetado irreparavelmente por lutas internas e a descoberta da mentira de Blair no caso das supostas “armas de destruição de massa” no Iraque. A sequência de crise bancária e escândalo dos jornais de Rupert Murdoch revelou corrupção generalizada entre a elite econômica e política. Em agosto de 2011, a polícia matou, em Tottenham (norte de Londres), Mark Duggan, um negro de 29 anos – e a cidade mergulhou em revolta, saques e violência – que se espalharam em seguida para Birmingham, Manchester e Liverpool.

Em meio a tantas turbulências, poderia se esperar que os Jogos Olímpicos oferecessem um foco patriótico, como em 1948. Numa entrevista ao Los Angeles Times em maio, Sebastian Coe, um medalhista dos anos 1980 e hoje membro destacado do Comitê Olímpico Organizador, disparou esta frase positiva: “Quero que as pessoas deixem Londres com a imagem da cidade de que muito me orgulho. Extraordinariamente diversa. Multicultural. Quero que Londres, todos os seus valores de tradição e história sejam vistos num arranjo contemporâneo. Quero que os visitantes sintam uma cidade que está de bem consigo mesma”.

Mais recentemente, houve fortes protestos contra o patrocínio do Estádio Olímpico (oficialmente apresentado como o “mais sustentável já construído”) pela Dow Chemical, que controla a companhia responsável pelo vazamento letal de gás em Bhopal, na Índia – um dos piores desastres industriais da história. Porém, resta muito entusiasmo entre os britânicos, para castigo dos “duvidosos”. Parece provável que, apesar de toda a oposição anterior ao evento, as Olimpíadas gerarão o patriotismo de curto prazo que normalmente acompanha as disputas esportivas, casamentos reais e jubileus na Inglaterra. Depois, tudo voltará ao tribalismo vulgar de todos os dias. Exceto, é claro, se algo der errado – e o fato de eu sentir-me obrigada a escrever “exceto” pode sugerir a ansiedade geral que cerca todo o trabalho.

* * *

 Neste terreno complexo de incertezas e expectativas, entra Iain Sinclair, romancista, poeta e memorialista londrino, fundador de seu próprio anti-cânone criativo (em que comparecem alquimistas perdidos no tempo, ocultistas, diretores semi-esquecidos, influências dos escritores J. G. Ballard e Thomas de Quincey e muitos, muitos outros elementos). Em obras de prosa que apagam os limites entre ficção e não-ficção, Sinclar traçou uma vida de serpenteios em torno de Londres, desenterrando traços do que era antes ignorado, mergulhando nas trevas. Era, talvez, inevitável: o discuso pomposo sobre “legado” convocou-o ao combate. Além disso, o Parque Olímpico foi fincado em torno de Hackney, a região, no leste de Londres, onde Sinclair viveu nos últimos 44 anos, descrita por ele num livro recente: Hackney, That Rose-Red Empire: a Confidential Report (2009).

As obras de Sinclair seguem frequentemente um atalho tortuoso da busca do herói, começando com o autor atraído por alguma nova vertente de esoterismo: um livro que ele adquiriu num pulgueiro, algo resgatado do esquecimento, um mistério ou um fantasma (em White Chappel, Scarlet Tracings (1987), é a história sinistra de Jack, o Estripador; em Edge of the Orison (2005), Sinclair persegue o poeta romântico John Clare. Em London Orbital (2002), Sinclar caminha em torno do anel viário M25, de Londres, passando por alguns dos trechos em que a antiga beleza natural da Grã-Bretanha está mais corrompida. Em quase todos os seus livros, Sinclair vagueia, satirizando suas obsessões, meio seduzido por anticlímax suaves, um mestre da descrição topográfica. Como W. G. Sebald, a quem ele se refere em Ghost Milk, Sinclair tornou-se seu próprio adjetivo literário. Sinclairesco sugere uma prosa rica em metáforas inesperadas e em encontros daquilo que usualmente vemos dissociado. A aglomeração ritual de frases sem verbo: “Um austero narcisista … Um turista em seu prório território…”

No início de Ghost Milk, Sinclair descobre-se nas garras de uma nova obsessão. Quando os trabalhos começam, no Parque Olímpico do leste de Londres, ele dirige-se para lá a cada manhã, até ser bloqueado por uma enorme cerca azul. “Bem-vindo ao Parque do Povo”, diz uma placa. “Cães de Guarda patrulham esta área”, anuncia a próxima. Sinclair lembra-se como, 40 anos antes, “cheguei a este local, examinando os páteos de trens, através de montes de terra e guindastes”. Então, o lugar era “uma zona típica de negócios noturnos, inconvenientes e sujos, e de relíquias pastorais abortivas. Máquinas. Campos de futebol. Uma trilha para bicicletas”. Agora, Sinclair fareja algo novo no ar: “Partículas, poeira vermelha… A mescla da incineração”.

Outra investigação começa, agora em busca do “mistério olímpico, o enigma oculto por trás da cortina de fumo do otimismo de relações públicas”. “Quando ela começou?” quer saber Sinclair, referindo-se à “ligação íntima entre a indústria imobiliária e o governo, para reconstruir o corpo de Londres, em proveito mútuo”. Uma área de 70 hectares próxima ao Parque Olímpico foi vendida a um bilionário dos shopping-centers, Frank Lowy (residente na Austrália); a vila dos atletas, Sinclair escreve, vai converter-se em “habitações-satélites” a um shopping gigantesco. Ken Livingstone admite que “fingiu entusiasmo pelos Jogos de 2012 para gerar fundos para empreendimentos de reutilização de espaço, em East London”. Mas Sinclair entrevista um procurador londrino, Bill Parry-Davies, e este sugere que o Parque Olímpico está contaminado com material radiativo usado na manufatura de mostradores eletrônicos. Junto com as velhas áreas industriais, estão desaparecendo campos de futebol, teatros vitorianos, terraços georgianos e espaços verdes. “Para oferecer mais habitação teórica”, Sinclar escreve, “é necessário despejar os que já haviam arranjado um jeito de se abrigar”. Agrupamentos humanos são desfeitos e substituídos por empreendimentos imobiliários que oferecem, sugere o livro, a mesma “comunidade” que acabam de destruir.

Num certo sentido, Ghost Milk é um “catálogo de perdas”. Também é um ato ampliado de desmistificação. Imune às versões oficiais de legado-e-orgulho sobre os Jogos, Sinclair viaja a Berlim e visita o local dos Jogos de 1936, para encontrar “anéis… enlaçados num arame entre pilares gêmeos de tijolos, sobre os quais há luzes de vigilância. O acesso ao estádio está estritamente proibido. No limite noroeste deste Parque Olímpico está Spandau, onde “Albert Speer [arquiteto e ministro da era nazista] percorreu o pátio da prisão por tantos anos”. Os Jogos de 2008 são considerados “um brinquedo de ditadura, parte da propaganda do comunismo”, quando o poeta chinês Yang Lian fala a Sinclair sobre seu exílio em East London. Nas antigas instalações olímpicas de Atenas, Sinclair vê o estádio deserto como “símbolo da falência de uma nação” e “uma imensidão ornada com estruturas refinadas e ruinosamente caras, para as quais ninguém mais tem uso algum”.

Há argumentos razoáveis para muitas das afirmações de Sinclair. Pode-se lembrar, por exemplo, que alguns Jogos são menos artificiais que outros, e que muitas pessoas estão genuinamente interessadas em testemunhar feitos esportivos excepcionais. Sinclair não faz estas concessões parciais. “Espasmos de desenvolvimento” em Londres foram “discretos, quando comparados com… a Beijing pré-olímpica, por exemplo”. Mas Sinclair evita, quase sempre, qualificar sua obra. Ao definir o “ghost milk” [leite fantasma] do título, ele escreve: “as imagens geradas por computador mancham a cerca azul (…) Líquido embalsamante. Uma sopa de negativos fotográficos. (…) O elemento universal em que afundamos e nadamos”. Sinclair, ao que parece, vê nos Jogos um dispositivo de foco para sua preocupação mais ampla: a de que a vida pública torne-se algo como uma Zumbilândia, em que ninguém dirá o que realmente pensa.

Na parte final de Ghost Milk, Sinclair viagem ao Centro Harry Ransom, na Universidade de Texas, em Austin, para entregar décadas de notas e manuscritos. Depois, ele senta-se à biblioteca com um notebook. “Sujeira – processada, tornada segura – caiu na superfície antisséptica da mesa”, ele escreve. “Clínquer. Poeira de carvão. Um resíduo… dos barracões ferroviários de Stratford”. Decidido a não “esfregar os grãos em minha pele” – um final muito fácil –, Sinclair prefere relembrar Exit Ghost, o romance de Philip Roth. “Caminhando pelas ruas como um espírito, ele faz conexões que explodem sua solidão cuidadosamente protegida”.

Contemplando a mortalidade, despindo-se de tantos fantasmas do passado, Sinclair sugere que talvez esta forja de conexões, este ato de assombrar os pensamentos de outros, para emanar seu próprio outro, seja o que se pode esperar de melhor. Ghost Milk oferece, portanto, um elogio robusto da arte de escrever e, de forma mais genérica, do trabalho de construir interpretações pessoais sobre o mundo. É uma última barricada autoral, um apelo à ação a todos os “habitués dos piores botecos, dos cafés mais sinistros, pássaros da noite, deformadores de cadernos”, que “se alimentam do glamour da verdade”.

Os Jogos de 2012 já são cenário de uma grande disputa de palavras: retórica oficial e jornalismo, lobbying e protesto, proibições legais contra não-patrocinadores (aos quais são vedadas quaisquer menções aos Jogos, em publicidade), restrições similares a indivíduos que comparecem às Olimpíadas (proibidos de postar vídeos em seus blogs privados). Mas as pessoas que assistirem aos 100 metros rasos no novo estádio de Londres não estarão preocupadas com lixo e partículas radiativas, a moralidade dos acordos de patrocínio ou a erosão das liberdades civis. Elas vão celebrar e aplaudir os vencedores; os jornais produzirão manchetes sobre medalhas e glória – mesmo aqueles que, uma semana antes, publicavam matérias do tipo “Tudo é caos”.

Sinclair sabe que está lidando com o peso inescapável dos esportes e patriotismo. “Proponha-se a testemunhar. Grave e recorde”, ele propõe. É sua aproximação máxima a um anti-slogan: se você gosta realmente de esportes, ou ama seu país, vá em frente; apenas não se deixe enganar, não seja massacrado pelas ideias dos outros sobre o mundo. Conduzindo pelo exemplo, Sinclair caminha por conta própria; desenvolve uma trajetória pessoal em meio à história dos Jogos; grava e recorda como lhe parecer melhor. O resultado é controverso, emocionante, irado, brilhante: a expressão incontida de um ponto de vista particular, e um convite vibrante a que os outros façam o mesmo.

* Joahanna Kavenna é escritora, jornalista e ensaísta britânica. É autora de Inglorious (2007), The birth of love (2010) e Come to the edge (2012)

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2 comentários para "Londres-2012, euforia e fantasmas"

  1. Imaginem a herança triste que ficará para nós brasileiros, será com certeza uma segunda Africa do Sul, submersa em problemas, mas orgulhosa de ter patrocinado uma COPA DO MUNDO.

  2. O patriotismo é bom? Lennon escreveu Imagine dizendo que o ideal é que todos dessem as mãos e acabassem as fronteiras, que fôssemos um só mundo! Por outro lado, as competições provocam o desenvolvimento tecnológico e físico do ser humano. Então pensamos se seria possível mudar o direcionamento dos objetivos das pessoas em rumo ao bem comum, ou seja, competir para verificar quem consegue ajudar mais aos que necessitam. Premiar aos altruístas! Seria possível isso?

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