Vulnerabilidade, essência da Educação pós-capitalista

Frente à ameaça invisível, a fragilidade humana — e a necessidade de outra formação. Daí, diz Judith Butler, também virá a busca coletiva por proteção. Das angústias da pandemia, o Comum poderá surgir como alternativa ao ultraliberalismo

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Os períodos de isolamento social que estamos experimentando nas últimas semanas, em decorrência da pandemia global causada pelo coronavírus, acaba impulsionando nossos pensamentos em muitas direções. Algumas vezes, tomados pela ansiedade e pelo medo coletivo, ficamos imobilizados e restringimos nossas leituras a dados e tabelas epidemiológicas que, mesmo que sejam úteis, não preenchem nossa vivência cotidiana de novos sentidos. Outras vezes, ficamos mirando esta situação desde uma perspectiva socioeconômica: contabilizando déficits, lamentando pelo desemprego e refletindo sobre a intensificação das desigualdades que dessa situação decorrerá. Sim, todos esses caminhos de reflexão são legítimos e nos favorecem uma ampliação de nosso repertório sobre esta questão crucial neste início de século.

Entretanto, uma dimensão que é pouco discutida por setores de nossa sociedade é o reconhecimento de nossa vulnerabilidade. A exposição a um vírus, a uma catástrofe ou às incertezas em relação ao futuro servem para lembrar-nos que somos frágeis. Aproveitando meus dias de confinamento decidi explorar neste texto que o reconhecimento de nossa vulnerabilidade pode ser uma condição para uma educação pós-capitalista. Quando escrevo sobre as possibilidades de uma educação pós-capitalista, levo em consideração a advertência de Paul Mason, em livro bastante conhecido, de que o pós-capitalismo não pode ser derivado de um conjunto de sonhos, como realizaram as comunidades utópicas do socialismo inicial. Antes disso, pontua que “precisamos de um projeto coerente baseado na razão, na evidência e em esquemas testáveis; um projeto que esteja de acordo com a história econômica e seja sustentável em termos do nosso planeta”.

Diante desta ressalva, posso destacar que aprendi com os escritos políticos de Judith Butler (2019) que a vulnerabilidade pode ser considerada como um conceito central neste tempo. A autora argumentava, há alguns anos, que suas atuais investigações tinham se voltado para a referida questão e para os tipos de mobilizações que estavam ocorrendo em todo o mundo, à medida que assistíamos a um movimento em que a economia global produzia uma desigualdade crescente e tornava cada vez mais indivíduos e populações como dispensáveis ou supérfluos.

Butler não entendia que vulnerabilidade e precariedade eram expressões sinônimas, ainda que estivessem conceitualmente entrelaçadas. A vulnerabilidade refere-se à condição humana de fragilidade e necessidade de proteção. A precariedade, por sua vez, é a exploração política e econômica de nossas vulnerabilidades. Objetivamente, em termos educacionais, poderíamos inferir que a boa educação deve enfrentar as precariedades e valorizar as potências (políticas) de nossa vulnerabilidade.

Pela vulnerabilidade podemos buscar pelo outro e engendrar novos modos de vida e de enfrentamento das desigualdades. O exemplo trazido pela filósofa, recorrentemente, são as assembleias públicas. Em seu prisma, ao sermos vulneráveis a uma precariedade que é socialmente imposta, cada sujeito pode perceber como sua própria experiência de sofrimento encontra relação com a sociedade de seu tempo. Mais uma vez recorrendo à filósofa, “a partir daí podemos começar a desarticular essa forma individualizadora e exasperante da responsabilidade, substituindo-a por uma concepção solidária que ratificará nossa dependência mútua, e essa sujeição às infraestruturas operativas e as redes sociais, abrindo espaço para uma forma de improvisação que concebe formas coletivas e institucionais de manipular a precariedade imposta”.

Questionar as formas coletivas de pensar a precariedade que nos é imposta e, ao mesmo tempo, potencializar nossas vulnerabilidades. Dentre as inúmeras leituras produzidas sobre a pandemia global, aquela que me interpelou mais profundamente foi escrita por Bifo Berardi. Em seu diário, argumenta que “não podemos saber como sairemos da pandemia cujas condições foram criadas pelo neoliberalismo, em seus cortes à saúde pública e por nossa hiperexploração nervosa. Poderíamos sair dela definitivamente sozinhos, agressivos e competitivos”. Entretanto, prefiro apostar que poderíamos sair desta crise coletiva, ainda junto com Berardi, “com um grande desejo de abraçar: solidariedade social, contato e igualdade”. O vírus pode estar nos oferecendo a oportunidade de recolocar a igualdade no centro das alternativas coletivas e, em termos educacionais, precisaríamos buscar outros princípios.

Sob essa grade argumentativa, defendo nesse texto que o reconhecimento da vulnerabilidade apresenta potencial político para pensar em uma educação pós-capitalista. Tal forma educativa abdica da lógica da performance estudantil como único vetor para definir a qualidade educativa e aposta em modelos de inovação educativa mais democráticos, com uma agenda mais aberta e capazes de reenquadrar a dimensão da justiça. Uma educação pós-capitalista é capaz de assumir o Comum como horizonte político à medida que reconhece que precisamos uns dos outros, ou ainda: nossa vulnerabilidade é que potencializaria uma educação em comum.

Referências:

BERARDI, Bifo. Cronaca della psicodeflazione. Disponível em: https://not.neroeditions.com/cronaca-della-psicodeflazione/.

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

MASON, Paul. Pós-capitalismo: um guia para o nosso futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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3 comentários para "Vulnerabilidade, essência da Educação pós-capitalista"

  1. josé mário ferraz disse:

    Uma vez que a educação é a forma do comportamento, o ser humano não pode ter comportamento diferente do que tem porque aprende que deus e dinheiro são valores maiores. Aí está a inclusão do ensino religioso no sistema educação e a excomunhão de Paulo Freire por pregar a necessidade de estimular o desenvolvimento da capacidade raciocinar das crianças. Por mais difícil que seja mudar os hábitos secularmente enraizados, por maior que seja o medo do novo, faz-se extremamente voltar as atenções para a necessidade urgentíssima em nome da sobrevivência humana substituir por outra a cultura atual do enriquecimento e da pobreza exagerados. Ou vai tudo para o brejo ou se substitui esta forma inexplicavelmente mantida ainda de se deixar a cargo de frequentadores de igreja, axé e futebola a responsabilidade pela escolha das pessoas às quais será entregue a chave do cofre do erário. O resultado disso é a existência de fabulosos templos para abrigar orações e espetáculos do pão e circo em lugar de escolas e hospitais.

  2. Adriano Picarelli disse:

    PAULO FREIRE, UM HOMEM DO MUNDO – UM SONHO DA BONDADE E DA BELEZA. Alvo de ofensa proferida pelo capitão que ocupa o Palácio do Planalto, educador ganha desagravo em documentário, Eduardo Escorel, Revista Piauí/Uol, 08 de abril de 2020

    https://piaui.folha.uol.com.br/paulo-freire-um-homem-do-mundo-um-sonho-da-bondade-e-da-beleza/

  3. Adriano Picarelli disse:

    Compartilhando…

    Paulo Freire: um homem do mundo, Cristiano Burlan, Bela Filmes, Sesc TV/Consulado da Suíça em SP, Brasil, 2019 ( 5 episódios )

    https://sesctv.org.br/programas-e-series/paulo-freire/

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