Na pandemia, fermenta o Comum

Índia, China, África do Sul, Europa. Face à crise, multiplicam-se pelo mundo iniciativas de compartilhamento e auxílio mútuo. São embrionárias. Mas apontam para novas relações e subjetividades, diante do colapso das lógicas neoliberais

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Por George Monbiot | Tradução: Antonio Martins

Agora, assistimos ao vivo ao colapso do neoliberalismo. Os governos, cuja missão era reduzir ao máximo o Estado, cortar impostos e desmantelar os serviços públicos, estão descobrindo que as forças de mercado que fetichizavam não podem nos defender da crise. A teoria foi testada e abandonada em quase todos os lugares. Pode não ser verdade que não havia ateus nas trincheiras, mas não há neoliberais numa pandemia…

A mudança é ainda mais interessante do que parece à primeira vista. A iniciativa não migrou apenas do dinheiro para o Estado, mas de ambos para outro lugar: os Comuns locais. Em todo o mundo, as comunidades mobilizam-se, onde os governos fracassam.

Na Índia, jovens auto-organizam-se em grande escala, para providenciar pacotes de ajuda aos diaristas: gente sem reservas financeiras ou estoque de mantimentos, que dependem totalmente do fluxo de receitas que agora foi interrompido. Em Wuhan, na China, assim que o transporte público foi suspenso, motoristas voluntários criaram uma frota comunitária, para transportar trabalhadores de Saúde entre suas casas e hospitais.

Na África do Sul, as comunidades de Johannesburg produziram pacotes de sobrevivência para pessoas que vivem em ocupações: álcool gel, papel higiênico, água engarrafada e comida. Na Cidade do Cabo, um grupo local mapeou interativamente todas causas de um distrito, pesquisou sobre seus moradores e reuniu gente com experiência médica, pronta para ajudar se a capacidade dos hospitais se esgotar. Outra comunidade instalou pias na estação de trem e trabalha para transformar um estúdio de cerâmica numa fábrica de desinfetantes.

Nos EUA, o HospitalHero conecta trabalhadores de Saúde agora sem tempo para cuidar de sua própria vida com pessoas que podem oferecer refeições e acomodação. Um grupo chamado WePals, criado por um garoto de oito anos, organiza encontros virtuais (“play dates”) para jogos, para crianças. Um novo site, o schoolclosures.org, permite que pais sobrecarregados busquem aulas, refeições e cuidado de última hora para crianças. Uma rede chamada Money During Corona [Dinheiro sob o Corona] reproduz notícias sobre oportunidades de emprego para gente a procura de trabalho.

Na Noruega, um grupo de pessoas que se recuperaram da Covid-19 oferece serviços que poderiam ser perigosos, se realizados por não-imunes. Em Belgrado, voluntários organizam cafés e aconselhamento sobre a crise. Estudantes, em Praga estão cuidando de filhxs de médicxs e enfermeirxs. Em Dublin, inventou-se o bingo de varandas: o sorteador senta-se numa praça entre os prédios, com um grande megafone, enquanto os jogadores sentam-se em suas varandas, de onde ouvem os números.

No Reino Unido, milhares de grupos de auxílio mútuo encarregam-se de fazer compras em supermercados e farmácias, instalar equipamentos digitais para idosos e organizar equipes de amizade por telefone. Um grupo de mulheres que costumavam correr juntas em Bristol reinventou-se como “corredoras por remédios”. Mantêm-se em forma transportando drogas das farmácias para pessoas que não podem deixar suas casas.

Em todo o mundo, grupos auto-organizados de médicos, tecnólogos, engenheiros e hackers estão oferecendo equipamentos e experiência a quem necessita. Na Letônia, programadores organizaram uma maratona de ideias (hackaton), para desenhar os componentes mais leves de uma máscara facial que pudessem ser produzidos com uma impressora 3D. Diversos grupos na Inglaterra estão pressionando empresas com equipamento de proteção em seus armazéns a doá-los a trabalhadores expostos no setor de Saúde. Nas Filipinas, designers de moda readaptaram seus espaços de trabalho para produzir roupas de proteção. Ao compartilhar tecnologias, por meio do site PatternReview, costureirxs que trabalham em casa estão produzindo máscaras e jalecos.

Em apenas uma semana, um grupo de médicxs, tecnólogxs e outros especialistas organizaram-se para conceber coletivamente um respirador artificial, o OxVent, que pode ser produzido por menos de R$ 6 mil, a partir de peças facilmente encontráveis. Outra opção o VentilatorPAL, pode ser construído por R$ 1800, segundo a comunidade de tecnólogxs que o criou. O Manual Tecnológico do Coronavírus [Coronavirus Tech Handbook] é uma biblioteca copyleft que descreve tecnologias e novos modelos organizacionais para enfrentar a pandemia. Nos EUA, alguns grupos de especialistas auto-organizados estão enfrentando as catastróficas falhas na oferta de serviços de saúde, realizando projetos de testagem de vírus e rastreamento das vítimas, criando relações das pessoas vulneráveis, e colocando trabalhadores da saúde em contato com os hospitais que precisam deles.

Os filmes distópicos erraram. Ao invés de nos transformar em zumbis sedentos por corpos, a pandemia converteu milhões de pessoas em pessoas colaborativas.

No livro Free, Fair and Alive [“Livres, Justos e Vivos”], David Bollier e Silke Helfrich definem os Comuns com “uma forma social que permite às pessoas desfrutar de liberdade sem reprimir os demais, praticar justiça sem controle burocrático… e afirmar soberania sem nacionalismo”. Os Comuns não são nem capitalistas, nem comunistas; nem mercado, nem Estado. São uma insurgência de poder social, a que chegamos juntos como iguais, para enfrentar nossos desafios compartilhados.

Mil livros, filmes e fábulas empresariais repetem que o conto de fadas a que todos deveríamos aspirar é o de nos tornarmos milionários. Então, poderemos nos isolar da sociedade numa mansão com muros altos, Saúde, Educação e até um jato privado. Os Comuns sugerem um futuro oposto: encontrar significado, propósito e satisfação trabalhando juntos para melhorar as vidas de todos. Em tempos de crise, redescobrimos nossa natureza social.

É possível falar muito a respeito de uma sociedade a partir de suas idiossincrasias de linguagem. Nós frequentemente deturpamos a palavra “social”. Falamos de “distanciamento social”, quando nos referimos a distanciamento físico. Falamos sobre “segurança social” e a “rede de segurança social”, quando fazemos alusão a segurança econômica e redes de segurança econômica. Enquanto a segurança econômica é (ou deveria ser) oferecida pelos governos, a segurança social emerge da comunidade. Um dos aspectos extraordinários da resposta ao Covid-19 é que, durante o auto-isolamento, algumas pessoas – em especial, as mais velhas – sentem-se menos isoladas do que estiveram por anos. Suas vizinhanças asseguram-lhes que não estão sós.

Ainda precisamos do Estado: para garantir Saúde, Educação, redes de segurança econômica. Para distribuir a riqueza social entre as comunidades. Para impedir que interesses privados tornem-se muito poderosos. Para nos defender de ameaças. O Estado realiza estas funções, ainda que de maneira pobre, por sua própria natureza. Mas se confiarmos apenas no Estado, vamos nos descobrir atirados em silos de abastecimento e altamente vulneráveis a cortes. Relações sociais ricas serão substituídas por relações frias, de transações. As comunidades não são um substituto para o Estado, mas um complemento essencial.

Não há garantia de que este ressurgimento da ação coletiva possa sobreviver à pandemia. Podemos retroceder ao isolamento e à passividade que tanto o capitalismo quanto o estatismo estimularam. Mas não creio que isso ocorra. Sinto que algo está criando raízes, algo que havíamos perdido: a força mobilizadora e transformadora do auxílio mútuo.

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Um comentario para "Na pandemia, fermenta o Comum"

  1. GEORGE disse:

    Por que o autor usa o termo “estatismo”? O quer dizer?

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