Um vagido triste sob o pó de estrelas

Na estrada, deixando a metrópole em direção a outro modo de existir, a serra dança suas sombras e cores intensas. Uma vaca canta pelo bezerro que lhe arrancaram; acende num só peito a compaixão da mãe e da filha – cujo pai aboiava no sertão

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O caminho vai se tornando familiar. Chego até à Marginal Pinheiros em direção à rodovia Ayrton Senna, depois Carvalho Pinto, Dutra e a transversal Paulo Virgínio. Mas ainda estou saindo de São Paulo, carregando comigo minhas coisas e meus pensamentos. A vida anda complexa nestes tempos, exigindo de nós uma autoconsciência ainda maior, no sentido de saber que somos um coletivo e não indivíduos absolutos plenos de poder sobre todas as coisas.

Deve ser o peso de encarar a vida urbana tão conturbada de hoje em dia que trouxeram esses pensamentos. O neurocientista Sidarta Ribeiro começa seu novo livro Sonho manifesto dando um verdadeiro soco no estômago, mostrando as nossas feridas civilizatórias que estão mais abertas do que nunca: 800 milhões de pessoas passando fome no mundo; 800 mil pessoas se suicidam anualmente em todo o planeta, o dobro do número dos homicídios; crianças, mulheres e até caciques indígenas violentados e mortos na Amazônia; jovens sem perspectiva de futuro; trabalhadores esgotados para se manter no Brasil, no Japão e nos EUA; a cada minuto, onze pessoas morrem de fome… E por aí vai a lista tenebrosa.

Adicione-se a essa receita triste as mudanças climáticas que nos têm atingido e que atingiu minha terra, Pernambuco, nestes últimos dias. Mais de cem pessoas mortas em uma nova tragédia causada pelas mudanças climáticas. Estamos alcançando uma linha de chegada perigosa que, se a cruzarmos, poderá ser o começo de muitos fins. No entanto, ainda há tempo.

Cheguei na casinha da roça no sábado à tardinha. As cores do céu pintadas pelo crepúsculo formavam uma paleta riquíssima de amarelos, laranjas, vermelhos e até violetas e rosas. Alguns verdes da terra se amarelavam para se aproximar do céu ou até se saturavam ainda mais, tornando-se mais verdes, para nos mostrar os avermelhados de algumas nuvens. Opostos magníficos que são cores complementares… Na medida em que seguimos pela estrada de terra e o sol vai baixando no horizonte recortado das montanhas, os verdes e os tons terra vão se tornando escuros. Há um momento em que quanto mais escuro é o que está próximo de nós, mais há luz no céu. E quanto mais luz há no céu do fim do dia, mais escura é a sombra concentrada nas massas de árvores. Pura ilusão óptica, mas um dos mais belos jogos perceptivos da mente humana… ou da alma? O resultado? Beleza! Ainda vou pintar essas cores!

Chegamos trazendo a noite. Uma fogueira já estava acesa e uma roda de amigos novos, visitantes, tinha se formado entre a fogueira e a cozinha, onde Lumena cozinhava pinhão para todos. Todos artistas da modelagem, do desenho, da criação. As conversas foram leves, plenas de risos e do prazer das nossas narrativas pessoais, que são estimulantes e curativas. Depois que eles saíram e que nos prometemos reeditar este encontro no Morro do Querosene em São Paulo, fomos dormir.

Desde que cheguei, ouvi com estranhamento o mugido de um boi nas redondezas. Dentro do silêncio da noite, aquele som era tão triste que me tocou, trazendo um sentimento de solidariedade àquele ser que sofria. Fiquei com muita vontade de procurar e abraçar aquele bicho, porque seu mugido era um verdadeiro e doloroso lamento. Mas não saberia me guiar pelos meandros da noite escura e encontrar o animal que, num intervalo de alguns minutos, repetia seu grito.

Adormeci, enquanto ouvia o lamento do boi que foi se misturando a um som da minha infância, que veio de lá do fundo da minha memória: os aboios que meu pai cantava. Ele muito cedo aprendeu a guiar o gado pelas pastagens ou a levá-los de volta ao curral, entoando esses cantos chamados de “aboio”, que todo sertanejo nordestino pratica. O gado reconhece a voz do dono e parece ficar em silêncio, encantado pelos aboios cantados do vaqueiro. Porque nesses mundos por muitos de nós esquecidos, homens, mulheres e natureza se entendem, falam a mesma língua. Porque “já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas”, diz Guimarães Rosa em “Conversa de bois”.

Amanhecido o dia, soube que o bicho era uma vaca. Homens tinham vindo comprar bezerros e tinham levado o dela porque era chegada a hora do desmame. Na mesma hora meu sentimento materno emergiu e me identifiquei de imediato com a dor que essa mãe sentia. Mais tarde, deparamo-nos com ela: uma vaca preta que, ao nos ver, abriu a boca num novo som que parecia querer atravessar todas as montanhas e que trouxesse seu bezerro de volta. Parecia nos ameaçar… Foram seres como nós que lhe causaram essa consumição. Mas “não, ela é boazinha”, disse o dono dela depois. Só estava sofrendo. “Em dois dias passa”, completou seu Francisco, homem acostumado à dinâmica dos bois.

Ainda estamos naquela fase de aprender tudo desse lado do mundo: o tempo das sementes e da colheita, como cortar a braquiária, usar a enxada e a foice, podar, coroar as árvores tomadas pelo mato. E o aprendizado inclui as temporalidades todas: quando é tempo de semear e de colher, no ritmo da natureza em cuja rede está envolvida até a Lua! Já sabemos que é melhor colher bambu na lua minguante… Até mesmo os mais céticos das crenças populares se calam diante do fato de que os bambus colhidos em lua cheia, por exemplo, racham mais porque soltam mais líquido.

Uma das grandes lições que tenho aprendido desde que resolvi me alinhar à esta rede dos que defendem a interrupção do modo de vida atual que nos leva à morte, é que toda a nossa racionalidade ajuda, mas não basta. “Compreender” as coisas só com a mente é limitante, pois somos também feitos de coração. Nossos mundos reais são entremeados do imaginário individual e coletivo. É justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar oculto o que nos faz mais ricos: a percepção de que somos parte desse grande mistério que chamamos Vida. Oxalá isso se torne consciência nesse mundo que parece ter decretado seu fim. Epa Babá!

As noites de outono em Cunha, na lua minguante ou na nova, trazem um presente especial. A Via Láctea surge no céu quase ao alcance de nossas mãos e podemos admirar as nuvens de poeira cósmica que se formam em redor de constelações e estrelas. Ali atrás da casinha está “subindo” no céu o Cruzeiro do Sul. Oposto a ele, me virando mais para o Norte, o Sete-Estrelo, como chamamos as Plêiades no Brasil. O Sete-Estrelo, na lenda tupi, são os sete filhinhos que Sy, a mãe, abandonou. Girando meu corpo um pouco mais, encontro as Três Marias do Cinturão de Órion. Maria da Glória, Maria da Penha, Maria das Dores?… Assim sigo dançando na noite, tocada pelas estrelas e pela minha imaginação que agora vê o “gado” celeste se movimentando junto comigo, dançando a dança do universo…

Vou me deitar porque a noite é gelada também. A vaquinha finalmente silenciou, a dor amainou. Entro murmurando a música de Lulu Santos e Nelson Motta, inspirada por minha visão noturna:

“Tudo o que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo…”

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