O (difícil) adeus à vida urbana e seus cantos de sereia

A noite chega — e a chuva cai. Matas bailam com a ventania. Amanhã é dia de trabalhar a terra. O breu absoluto traz paz… e dúvidas. Afinal, a cidade faz promessas: bares, cinemas, museus. Por que, então, fugir a uma comunidade pós-capitalista?

Imagem: Alberto da Veiga Guignard
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Por Mazé Leite, na coluna Viver fora da engrenagem

O tempo voou entre janeiro e abril, quando retomo minhas crônicas sobre meu novo projeto de vida, a mudança da cidade para o campo. Nesse meio-tempo, adquirimos um pouco mais de três alqueires de terra em meio ao mar de montanhas da região de Cunha. Nesse meio-tempo, perdi um gatinho, o Miguilim, meu amigo felino que deixou a vida com apenas um ano de idade, e me fez refletir muito sobre a natureza da Vida em seu sentido maior. Meu gatinho me ensinou, em seus doze dias finais de vida, que se faz cada vez mais necessário, além de ter consciência ambiental e respeito à Natureza, o respeito pela Vida que pulsa em tantas outras formas. Fomos educados na cultura ocidental branca a ter respeito somente ou prioritariamente à vida humana, e caminhando dentro do conceito do homocentrismo nos damos todas as prerrogativas para ocupar, expandir, limitar, destruir, adaptar, queimar e até matar outros seres vivos que atravessarem nossos projetos e nosso desenvolvimentismo a todo custo.

Viajei para Cunha na última quinta-feira carregando comigo, além desses pensamentos, vários itens para nosso futuro trabalho na terra: enxada, cavadeira, tesoura de poda e rastelo mas também vários itens para equipar a casinha de roça que alugamos enquanto não temos nosso primeiro teto. Cheguei no fim da manhã, sozinha, pois meus amigos viriam em outro carro um pouco mais tarde… Fiz uma arrumação geral em tudo, preparando para a chegada dos meus companheiros. O céu estava se fechando e um vento forte começou a cantar em todas as direções. Uma frente fria tinha chegado em São Paulo e, nas montanhas, ela vinha com mais força ainda. Por volta das 18 horas, fui pra porta da casa, ficar de olhos e ouvidos atentos para a chegada deles. Mas o vento forte trouxe consigo uma chuva intermitente e isso era preocupante, uma vez que a noite estava caindo e a estrada de terra é sempre um perigo a enfrentar, em especial na escuridão molhada.

Ela foi tomando conta do lugar. À noite, toda a variação de verdes possíveis dos morros e montanhas se tornam uma mesma massa cinza escura. O mistério parece descer sobre a terra… Ventos vindos de direções variadas arrancavam sonoridades diferentes para meus ouvidos atentos: estalos nos bambus, farfalhar das folhas das árvores, algum barulho surdo de algo que cai e as águas que dançam na ventania, estalando sobre as folhas e o mato. O mistério se fez maior, e uma pontinha de medo me deu um leve arrepio. Lembrei do poema do Drummond “Anoitecer”, que Zé Miguel Wisnik musicou:

“É a hora em que o sino toca
mas aqui não há sinos;
(…)
Hora de delicadeza
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos
bicando em mim meu passado
meu futuro, meu degredo…”

Esse clima de mistério que se abateu sobre mim, sozinha nas montanhas, numa cabana isolada, sem internet, sem telefone, sem possibilidade de comunicação, me trouxe à lembrança uma conversa que tive com minha mãe recentemente. Falávamos de vida na roça, como foi a vida dela até a adolescência, vivendo no meio do sertão do agreste pernambucano, onde viveram seus pais, meus avós e bisavós, e outros antepassados que saíram de Portugal para tentar a vida no Brasil selvagem e nunca mais voltaram. Lá pelas tantas, minha mãe me lembrou do nome do lugar onde nasceu e viveu meu pai, meu avô, meu bisavô… Cunha! Cunha! No mesmo momento em que ela pronunciou a palavra, ouvi a voz do meu pai me chamando muito pequena para ir para “o Cunha”! Assim mesmo no masculino ele falava, pois resumia numa expressão que o lugar onde meu avô vivia tinha esse nome.

Cunha! Mistérios da vida, dos giros que o mundo dá, como esse vento que sopra em redemoinhos trazendo gotas d’água e mais frio pra dentro da cabana. Me veio a vontade de agradecer a meus ancestrais; talvez eles tenham a ver com o fato de eu estar me mudando agora para Cunha? Nem o vento soube me responder pois soprava ainda mais forte qualquer braveza, entrando pelas frestas do telhado, me fazendo ir lá dentro buscar um cachecol de lã de lhama. O que importa? Mistérios são para serem contemplados, ficarem pulsando na alma como possibilidade de poesia, infinitamente…

Mais de sete da noite e meu ouvido atento não detectava nem sinal de meus amigos… Pensei: aguardo mais uma hora e se ninguém aparecer tento sair para ver se não encalharam em algum lamaçal da estrada. Mas uns quarenta minutos depois ouço vozes: da Sandra, da Paty, da Jane? Peguei minha lanterna e meu guarda-chuva, pronta pra ajudar a abrir as duas porteiras que separam a casa da estrada. Mas encontro elas e Luciana carregando malas e mochilas nas costas, sob a chuva. O carro não conseguiu a última subida. Fui com a Paty até ele buscar o resto das coisas e o Kawni, que lá tinha ficado de guarda. E a noite foi só festa e alegria, finalmente todos juntos.

Em breve teremos uma espécie de mapeamento do nosso terreno: onde ficará a casa-sede, onde estarão as cotas individuais, onde estará nossa horta, como canalizar a água do riacho que, sim, corre solto e limpo pela terra. Nos dois dias seguintes fomos, as seis pessoas prontas a acariciar nossa terra: limpamos ao redor das fruteiras cítricas e das cinco mudas de árvores que plantamos, todas um pouco sufocadas pela braquiária e pelos lírios. Respiraram, estão crescendo. Logo nosso primeiro Ipê plantado, por nove mãos, será uma imensa árvore que vai nos dar sombra, flores e beleza. Colhemos macaxeira (mandioca ou aipim, nas línguas do sudeste) e dela fizemos a sopa que aqueceu nossa próxima noite. Fizemos fogueira e comemos pinhão, numa roda ao redor do fogo, com Jéssica e Leo que se juntaram a nós. Lumena, Flávio e Johnny desta vez não vieram, mas foram incluídos na roda do afeto.

Na tarde seguinte foi preciso cobrir os dois quartos com lonas que eu tinha trazido de São Paulo. Aquele vento frio insistia em nos castigar à noite, minhas amigas tinham dormido mal e nada como uma noite mal-dormida para trazer maus pensamentos, dúvidas, medos, toda espécie desses monstros mentais que nos atacam nas horas da escuridão. Mas essas devem ser as horas “da delicadeza, gasalho, sombra, silêncio”… Lonas colocadas e a próxima noite foi passada mais confortavelmente.

Não sabemos ainda ao certo quando será o momento de chegar e ficar em Cunha, de forma definitiva. Em alguns momentos vem a vontade de ser logo, em breves meses; em outros, é claro que domina a dúvida e ela pede tempo. Tempo pra pensar, pra sentir, pra resolver as paradas todas de quem se enrolou muito numa cidade grande como São Paulo. Nesse rolê metropolitano, mil garras nos seguram, verdadeiras teias nos enredam. E há os diversos cantos de sereias urbanas enganadoras que nos iludem com promessas as mais diversas como as oferecidas por uma grande cidade e seus bares, restaurantes, cinemas, teatros, museus e shows aos quais quase nunca vamos com a frequência que deveríamos… ou gostaríamos. Enquanto isso, o tempo passa… E a música de Criolo confirma e decreta e não me deixa duvidar:

“Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva a minha vida e morra
afogada em seu próprio mar de fel!
Aqui ninguém vai pro céu!”

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