As mutações do capital e a tragédia do rentismo
Mariana Mazzucato alerta: Estado comandou os avanços tecnológicos das últimas décadas – porém, os rentistas capturaram os resultados, e agora bloqueiam soluções para os grandes dilemas da crise civilizatória. A China tirou as lições corretas, mas é preciso ir além
Publicado 15/01/2025 às 18:22 - Atualizado 15/01/2025 às 18:24
Por Antonio Martins
Algumas falas iluminam. Autora de livros celebrados, como O Estado empreendedor, Missão Economia e O Valor de tudo, a italiana Mariana Mazzucato integra um grupo de economistas que conseguiu aos poucos, nos últimos anos, cavar a crosta dos velhos dogmas e tornar visível a infâmia das relações socials contemporâneas. Assessorou governos como os da Colômbia, México e Brasil. Tornou-se conhecida principalmente por sua ideia de políticas orientadas por missões. Mas uma entrevista que concedeu a Martin Wolf, principal analista econômico do Financial Times, no apagar das luzes de 2024, permite vislumbrar amplamente suas ideias e abre as portas para um exame mais profundo de sua obra.
No diálogo, Mariana oferece visões não convencionais, mas muito consistentes e provocadoras, sobre alguns dos principais fenômenos que marcaram as economias do Ocidente nas últimas décadas. Polemiza sobre a origem dos impulsos que permitiram a notável transformação tecnológica que levou à internet e todos os seus desdobramentos, ou a drogas e tratamentos revolucionários contra doenças como o câncer. Sustenta, contra o pensamento hegemônico, que o motor essencial foi a ação dos Estados.
Descreve, a seguir, a captura dos benefícios destas transformações, o que terminou gerando o caos desinformativo global patrocinado pelas Big Techs, ao ao apartheid vacinal. Frisa que este sequestro bloqueia agora o esforço que seria necessário – e perfeitamente possível – para fazer frente a desafios ainda mais urgentes: o empobrecimento das maiorias, as catástrofes climáticas, a falta de assistência digna à Saúde, o esgotamento das fontes de água. Mas ressalta: ainda é possível reverter o tempo perdido, se surgirem novas condições políticas. E vê como exemplo a China – onde o Estado não perdeu a capacidade de coordenar a inovação socialmente relevante, e ao promovê-la não favorece as mega corporações.
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Na entrevista com Martin Wolf, o alvo da primeira lapada de Mazzucato é o mito da inovação comandada por jovens que se tornaram CEOs visionários, como Steve Jobs, Mark Zuckerberg ou Elon Musk. Em O Estado empreendedor, a economista descreve em detalhes o conjunto de “instituições estatais decentralizadas” que esteve por trás de todas as grandes inovações contemporâneas: a internet, os celulares, o GPS, a tela sensível ao toque, os assistentes virtuais. Os garotos legendários que iniciaram em suas garagens na Califórnia empresas hoje dominantes, ironiza ela, não partiram do nada.
Nos anos 1960 e 70, em meio à Guerra Fria, os EUA empreenderam um gigantesco esforço para superar tecnologicamente a URSS. O marco simbólico maior deste movimento foi a missão que o então presidente John Kennedy anunciou pela TV, em 1961: chegar à Lua naquela mesma década, antes dos soviéticos. Era tempos keynesianos e a fala de Kennedy expressava apenas a face mais pública de um processo que envolvia a criação de uma rede de agências e laboratórios estatais (boa parte deles dirigidos pela CIA e pelo Pentágono). Em paralelo, foram criados mecanismos de financiamento de longo prazo e de amortização de riscos – pois inovação se faz, necessariamente, por meio de tentativa e erro.
Mariana mostra como, por exemplo, a necessidade de fazer os satélites e centros de lançamento nuclear comunicaram-se entre si levou à criação da internet. Ou como o GPS surgiu do esforço para localizar os navios mercantes ou de guerra. Algo muito semelhante ocorreu na área de medicamentos. Nos EUA, o Institutos Nacionais de Saúde (NIH, em inglês) assumiram a pesquisa básica que levou às grandes inovações farmacêuticas contemporâneas – inclusive as vacinas de RNA, que permitiram responder em tempo recorde à covid.
Todo este movimento, Mariana prossegue, envolveu o setor privado – porém com coordenação inequivocamente estatal. Era preciso, por exemplo, encontrar maneiras de alimentar os astronautas, de vesti-los, de resolver o problema do banheiro. A NASA encomendava soluções, de maneira inteligente e desburocratizada, trocando o critério tosco do “preço mais baixo” pelo estímulo à inovação constante.
Quando estas inovações amadureceram, o capitalismo havia assumido a brutalidade neoliberal – por isso, dá-se a captura. Seus aspectos mais evidentes são o controle da internet por um oligopólio privado e o apartheid vacinal. O Estado criou a rede capaz de estabelecer uma intercomunicação humana jamais sonhada antes. Mas permite que ela seja reduzida a “jardins murados”, onde quatro grandes corporações apropriam-se da produção intelectual e simbólica de bilhões de pessoas, e onde viceja a desinformação. No campo farmacêutico, um sistema estatal de patentes permite que megaempresas apropriem-se da tecnologia desenvolvida em laboratórios públicos, monopolizem a produção de vacinas e outros medicamentos de ponta e impeçam seu acesso pelas populações que mais necessitam. O sequestro da tecnologia é um dos elementos essenciais do rentismo.
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O pior, adverte Mazzucato, é que sob a lógica neoliberal tornou-se impossível articular o mesmo tipo de esforço que levou o ser humano à Lua – agora, para enfrentar os problemas cruciais da crise civilizatória. Seria perfeitamente viável, provoca a economista, a partir de sua teoria de missões políticas. “Há 4,5 milhões de pessoas, mais da metade da população do planeta, sem acesso a serviços adequados de saúde”, lembra ela – e provoca: por que não transformar este problema num desafio semelhante ao formulado em 1961? Por que não fazer o mesmo em relação ao aquecimento global, numa “missão zero emissões de carbono”, que exigiria mudanças na alimentação, nos transportes, na infraestrutura?
O que seria perfeitamente possível torna-se quimera não por faltarem os meios necessários, mas porque, ao menos no Ocidente, as grandes corporações apoderaram-se da política. Não são mais comandadas pelo Estado – controlam-no. A catástrofe climática mostra suas garras mas, uma após a outra, as conferências sobre o clima fracassam, porque ninguém ousa impor limites e orientações ao grande poder econômico. Os dogmas vigentes dizimaram a própria capacidade de planejamento das instituições estatais. “É otimo que o Estado trabalhe com outros agentes. Mas quando ele não tem o conhecimento, a inteligência e os instrumentos para isso (…) torna-se incapaz sequer de entender os problemas e estabelecer os termos de referência. Torna-se refém”, lamenta Mariana.
Tudo está perdido? A economista vê, em meio ao desastre que se aproxima, dois elementos de esperança. O primeiro exige uma mudança essencial de orientação política. Os Estados conservam a capacidade de mobilizar recursos – inclusive emitindo dinheiro. Fazem-no… nas guerras. “Com elas, o dinheiro é criado a partir do nada. Mesmo na Alemanha [conhecida pela rigidez fiscal], depois da Ucrânia, bilhões foram criados para o esforço bélico. Poucos meses antes, eles não sabiam se haveria recursos para o clima ou a saúde. Ao longo da história, todos os países foram capazes de emitir dinheiro, Mas para nossos problemas sociais, fingimos que não temos. (…) Vamos admitir que não estamos fazendo nada diante dos impasses sociais porque preferimos não tratá-los como urgências”…
Ao contrário do que se passou no Ocidente, argumenta Mazzucato, a China desenvolveu a capacidade de colocar os desafios políticos acima do interesse das corporações. Os chineses “estão dominando os segredos do Estado empresarial dos Estados Unidos no exato instante em que estes estão desaprendendo. (…) Eles dão consequência a suas palavras. Fizeram enormes investimentos. Esta é razão para estarem muito adiante, na corrida pelas energias renováveis e pelos carros elétricos”.
Os impasses, contudo, são globais, frisa a economista ao final de sua entrevista. “Assim como não poderíamos ter um apartheid vacinal durante a pandemia, não podemos admitir um nacionalismo verde, porque o prolema é global. Por isso são necessários, por exemplo, acordos de compartilhamento de conhecimento e tecnologia.
A crise civilizatória perdura e se aprofunda. No Ocidente, diante da falta de saídas reais, parcelas crescentes das sociedades são tomadas pelo ressentimento e aderem à ultradireita. As esquerdas tradicionais parecem incapazes de encontrar respostas. Conforme afirmou o sociólogo Manuel Castells num texto recente, têm dificuldades de encarar “sociedades em plena transformação ecológica, tecnológica, cultural e política”, porque “aferram-se a marcos mentais, ideologias e táticas que não se conectam à maioria das pessoas – especialmente os jovens”. Ao desfazer mitos sobre as causas desta crise e ao mostrar caminhos para superá-la, Mariana Mazzucato merece atenção.