Voltará o cinema a escarnecer os burgueses?

O Discreto Charme da Burguesia faz 50 anos. Ressurgem, nas telas, obras sobre os ricos. Mas há um fosso entre Buñuel – que expôs crueldade e medo – e a brandura das novas produções. Mudou a luta de classes? Poderá a arte afiar sua navalha?

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Por Sam Russek, em Dissent Magazine | Tradução: Maurício Ayer

O último outono marcou o cinquentenário de O discreto charme da burguesia, de Luis Buñuel, uma comédia surrealista e de enredo leve sobre as ansiedades das classes altas na França. Filmado passados três anos dos protestos de maio de 1968, após o trêmulo triunfo do presidente Charles de Gaulle sobre a maior greve geral liderada por estudantes já tentada no país, O discreto charme vê seu rico sexteto vagar de festa em outra, sonhando com seus próprios constrangimentos e mortes. O aniversário não poderia ter vindo em melhor hora.

A indústria cinematográfica dos Estados Unidos parecia ter esquecido o conceito de classe até o lançamento do filme de Bong Joon-ho, Parasita, um hit surpresa em 2019. Desde então, estúdios de cinema e TV nos inundaram com comédias de classe, thrillers, dramas, whodunits e combinações retorcidas de todos os itens acima. No ano passado, houve Triângulo da Tristeza, que satiriza os papéis de gênero e a exploração a bordo de um iate de luxo; O menu, uma fantasia de vingança de terror sobre a exploração de trabalhadores em um restaurante gourmet; Glass Onion, sobre, entre outras coisas, Elon Musk; e a segunda temporada de The White Lotus, que, assim como a primeira, ataca a galera dos resorts de luxo, mas dessa vez com golpes mais suaves.

Não é preciso fechar os olhos para que essas imagens se misturem. Mas e a sátira deles? Eles oferecem alguma visão nova? Não exatamente. Em vez disso, na maioria das vezes, é o mero luxo – a ideia de que alguém pode bancar um estilo de vida caro – que devemos achar absurdo. Isto é absurdo; mas esse ponto ou se enfraquece com o uso repetido ou se achata em uma espécie de fantasia de realização de desejo. Afinal, não seria bom passar férias na Sicília?

Embora os personagens centrais de Discreto charme sejam praticamente os ancestrais de nossos hóspedes de resort contemporâneos, Buñuel adota uma abordagem totalmente diferente, entrelaçando uma crítica furiosa, embora contida, ao poder com um olhar mordaz de dentro do inconsciente coletivo dos abastados. Ele faz isso não apenas para zombar, mas para desestabilizar completamente nossa visão de dominação de classe. Parafraseando Friedrich Engels, Buñuel disse uma vez que sua visão do propósito do artista era “destruir o otimismo do mundo burguês” e forçar o espectador “a questionar a permanência da ordem vigente”. Apesar de todas as articulações surrealistas e sequências de sonhos emaranhados, o filme é compulsivamente lúcido.

As comédias com consciência de classe de hoje não pretendem ir tão longe. Em vez disso, eles se contentam em provocar o Schadenfreude – um substituto desajeitado para a verdadeira política. O resultado é uma esterilidade abrangente no tom, uma ausência de interesse ou intenção concertada e um tópico rico reduzido à fachada. Buñuel costumava ser didático e propenso ao sadismo, e nunca foi muito otimista. No entanto, em retrospecto, há uma confiança sob toda essa insolência. Seus filmes ainda surpreendem, não apenas por sua novidade visual, mas porque ele acreditava que, por meio de ações grandes e pequenas, simbólicas e literais, nossa ordem social poderia ser virada de cabeça para baixo. Ele já tinha visto isso acontecer antes.

Quando Buñuel nasceu em 1900, o primeiro de sete filhos, a Espanha estava se recuperando da perda de suas colônias na Guerra Hispano-Americana. Em resposta, as classes dominantes voltavam-se com nostalgia para o monarquismo, como se a reificação da tradição pudesse restaurar o que havia sido perdido, se não materialmente, pelo menos espiritualmente. Buñuel escreveu que sua infância em Calanda, uma pequena aldeia agrária do nordeste da Espanha, teve uma “atmosfera quase medieval”. Ele era um estudante rico da escola jesuíta, cercado pela pobreza e pela morte. Seu pai, Leonardo, acumulou uma fortuna na Cuba colonial antes de retornar à sua terra natal após a guerra. Como muitos estudantes burgueses antes e depois dele, Buñuel não apenas rejeitou os princípios de sua educação, mas fez carreira com seu desprezo por eles.

Matriculado na Universidade de Madri, Buñuel estudou entomologia por um ano antes de se envolver com artistas. Na residência estudantil, tornou-se amigo próximo de Federico García Lorca, José Moreno Villa e Salvador Dalí. Com Dalí, Buñuel conheceu o movimento surrealista em Paris. Ele estava mais interessado em peças teatrais antes de co-dirigir Un chien andalou (1929), seu primeiro filme, com Dalí, e L’Âge d’or (1930) – duas obras fantasmagóricas de vanguarda que desafiavam os costumes sexuais da classe média. O público achou esses filmes chocantes, punk e mais do que um pouco misantrópicos. Em 1932, Buñuel havia se dissociado completamente do movimento surrealista – mais tarde chamando-o de “revolta burguesa contra a burguesia” – e ingressado no Partido Comunista Espanhol. Seu próximo filme, Terra sem pão (1933), era mais abertamente político, um falso documentário com elementos surreais retratando a pobreza na Espanha rural. Quando a Guerra Civil Espanhola estourou três anos depois, Buñuel coordenou o esforço de propaganda cinematográfica dos republicanos espanhóis de Paris. Em 1938, ele estava em Hollywood como consultor em um projeto de filme quando parecia quase inevitável que os nacionalistas de Franco vencessem. Com o retorno à Espanha agora impossível, ele saltou entre Los Angeles e Nova York em busca de um trabalho estável antes de se estabelecer na Cidade do México em 1946, onde sustentou sua família dirigindo filmes populares.

Esses filmes populistas de baixo orçamento eram “desiguais”, como o próprio Buñuel admitiu; seus cronogramas de filmagem raramente duravam mais do que 24 dias. (Ainda assim, existem algumas joias, como Os esquecidos, uma história de amadurecimento ambientada nas favelas da Cidade do México e O bruto, sobre um trabalhador de matadouro que é contratado para acabar com uma greve de aluguel.) Seu filme de 1961, Viridiana, sobre uma aspirante a freira na Espanha que tenta “reformar” os sem-teto da cidade pagando-lhes para morar em sua propriedade herdada, marcou seu retorno ao público europeu. Os mendigos se comportam bem quando Viridiana está por perto, mas quando ela chega à cidade eles se rebelam, invadem sua casa e fazem um banquete que lembra A última ceia de Leonardo da Vinci. O filme é uma crítica contundente à caridade, que apesar das melhores intenções não consegue mudar a distribuição desigual da riqueza. Em 1962, Buñuel lançou O anjo exterminador, sobre uma força sobrenatural que prende um grupo de convidados ricos em um jantar após obrigar os auxiliares a deixar seus postos. Sem os criados, supõe o filme, os patrões não poderiam nem sair de casa.

Discreto charme se desenvolve a partir de Viridiana e O anjo exterminador profanando novamente o banquete do jantar. Cada vez que o bando de socialites parisienses se senta para comer, eles são interrompidos por incidentes cada vez mais graves. Um café fica sem chá, leite e café; o exército chega sem avisar; um pelotão de fuzilamento os alinha contra uma lareira. Embora essas reuniões sejam símbolos do poder de um grupo interno, no filme de Buñuel elas se tornam sinais de impotência – de uma elite apaixonada por suas cerimônias, mas incapaz de realizá-las. O que são os ricos sem seus jantares?

No início do filme, um dos seis, François Thévenot, propõe um “experimento”. Ele prepara um martini e chama um motorista para beber na mansão. O motorista obedece, virando o copo inteiro de um só gole, e Thévenot sorri. “Vê isso?”, pergunta a seus amigos. O motorista tropeçou diretamente no ponto de Thévenot: como criado, ele não saberia que um dry martini é para se beber aos golinhos. O amigo de Thévenot, Don Rafael, concorda. “Nenhum sistema jamais permitirá que as massas adquiram refinamento.” O refinamento, significado pelo luxo, requer um oposto para preservar seu valor.

O mau tratamento dos trabalhadores de serviços por consumidores ricos também é de interesse central para a comédia de classe contemporânea. Mas o mau comportamento dos ricos parece derivar do esquecimento, e não da crueldade deliberada, sugerindo que ainda há esperança para o cliente sem noção – que ele poderia restaurar a dignidade dos trabalhadores simplesmente ajustando sua perspectiva. Quando a esposa de um oligarca russo em Triângulo da Tristeza insiste que os trabalhadores do iate parem suas tarefas diárias para descer o tobogã, ela diz que quer que eles experimentem os privilégios pelos quais não podem pagar, essencialmente ordenando que se divirtam. Suas ações são bem-intencionadas, mas cegas; ela não vê que os trabalhadores não podem recusá-la. Intercaladas entre essas cenas de ingenuidade estão lembretes de que os personagens ricos são apenas humanos, envolvidos em seus próprios dramas familiares, brigas entre amantes e coisas do gênero: eles não sabem o que fizeram; podemos apenas esperar que eles mudem. “PESSOAS RICAS DE PRIVILÉGIO, ESTE FILME É SOBRE VOCÊS”, exclamou um pôster promocional, que anunciava o filme ao modo de uma fita instrutiva.

Esse enquadramento sugere que tais maus-tratos são incidentais à estrutura de classes, e não fundamentais para ela. Buñuel ia mais fundo. Seus filmes revelam como os pequenos rituais que diferenciam o estilo de vida dos ricos do comum agem como lembretes cotidianos da hierarquia social vigente e servem para fortalecê-la. Em seu trabalho, não há expectativa de que possamos incitar envergonha nos ricos e edificá-los a uma conduta respeitosa. Em vez disso, toda a hierarquia é desafiada de baixo para cima. Não importa o vencedor, Buñuel viu as classes em conflito persistente umas com as outras, agindo e reagindo a repetidas tentativas de poder. Quando recebem ordens, é possível que seus personagens simplesmente digam não. E mesmo quando não o fazem, por meio de uma intervenção surreal, a ação se desenrola como se o fizessem.

O que acontece nos anos seguintes a uma defesa bem-sucedida de uma hierarquia? Discreto charme é uma tentativa de jogar fora essa questão. Isolados como os personagens principais estão, protegidos pela polícia e por agentes à paisana de algum regime secreto, eles não podem deixar de se atormentar com os sonhos do que pode perturbar sua paz.

Os pesadelos começam de forma bastante inócua. Na metade do filme, depois que um coronel do exército francês convida o grupo para um jantar privado, Henri Sénéchal sonha que, quando eles aparecerem, não é uma casa, mas um palco de teatro, com decorações falsas e comida de plástico, e ele esqueceu as suas falas – um clássico sonho de ansiedade. Imediatamente após o despertar de Sénéchal, outro sonho começa, retratando o mesmo jantar, desta vez na casa real do coronel, mas focado em Don Rafael, embaixador do fictício país latino-americano de Miranda, que defende sua pátria contra uma onda de insultos. “Disseram-me que é prática comum em seu país subornar um juiz ou um policial”, diz um convidado. Sem fazer contato visual, Don Rafael nega todas as acusações. “Hoje somos uma verdadeira democracia”, diz ele. “A corrupção não existe mais.” Isso de um homem que contrabandeava cocaína para a França para distribuir com a ajuda de seus colegas.

À medida que o filme se desenrola, os sonhos se expandem, impulsionando a narrativa, embora não tenha ocorrido muita coisa. Don Rafael é perseguido por um grupo de guerrilheiros mirandenses em idade estudantil, que ele rotula de terroristas. A etiqueta, em suas mãos, é uma espécie de escudo. Quando uma das guerrilheiras o confronta em sua casa, ele retira sua arma de uma sopeira ornamentada e a empurra contra as costas dela antes de oferecer champanhe e perguntar sobre sua família. Quando ela protesta, ele a repreende: “A violência não leva a lugar nenhum. Eu sempre digo isso.

Don Rafael é a antítese das representações dos ricos em muitas comédias de classe contemporâneas; eles são quase invariavelmente estúpidos ou infantis. É mais provável que encontremos esses pretensos vilões como refrações embaraçosas de The Office, de Michael Scott: idiota mas de um jeito charmoso, incapaz de se defender sozinho e em grande parte inconsciente de como seu poder afeta os outros. Entre as socialites francesas – algumas das quais são estúpidas e infantis –, Don Rafael é um caso atípico. Mas sua presença torna explícito o vínculo entre seu estilo de vida confortável e a violência que o protege fora da tela.

Em mais de uma ocasião, o foco de Buñuel se desvia de seus seis personagens principais para mergulhar no subconsciente de um policial ou soldado; seus destinos, como suas psiques, estão ligados aos nossos convidados pelo jantar por seu interesse na ordem social. Enquanto a vida dos policiais e soldados é calma, chata até, no passado recente eles usavam brutalidade e tortura e agora são assombrados por fantasmas encharcados de sangue. À luz das revoluções dos anos 1960, o filme apresenta uma tese: até os fracassos têm consequências e, embora as rebeliões possam ser reprimidas, a burguesia ainda pode desmoronar sob seu próprio peso psíquico.

Meio século depois, pode ser difícil saber o que fazer com essa afirmação. Durante décadas, a maioria das rebeliões parecia ineficaz em meio a um senso de estagnação generalizada – o suposto fim da história. Podemos dizer que Buñuel previu esse estado de coisas. Pontuando o filme em intervalos aleatórios estão as cenas em que o elenco central desaparece abruptamente de Paris e aparece em uma tranquila estrada rural. Não há sons além de seus passos. É um silêncio misterioso, tenso com o que pode acontecer, e ainda assim nada acontece. Esses segmentos, que lembram o purgatório, são o floreio mais abstrato do filme.

Discreto charme foi considerado o trabalho mais acessível de Buñuel e ganhou vários prêmios importantes, incluindo o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Se o otimismo burguês foi destruído, o establishment tinha uma maneira engraçada de mostrar isso. Ele não apareceu para receber o prêmio, mas quando a Academia ligou, pedindo que ele enviasse uma foto sua com seu novo troféu, ele obedeceu, vestindo uma peruca e óculos grandes demais para a foto em um fraco ato de protesto. Por volta desse ponto de sua carreira, Buñuel disse a Max Aub: “Sou um revolucionário, mas a revolução me horroriza. Sou anarquista, mas sou totalmente contra os anarquistas.” Talvez a razão pela qual Discreto charme tem sido tão popular é que não pode ou não fará mais do que nomear o problema – embora nomeie o problema melhor do que a maioria. Um anticapitalismo vago não é tão difícil de vender. Seu argumento fica em grande parte não dito, o que permite que os diretores se esquivem do dever de abrir novos caminhos e permite que o público pegue o que quiser e ignore o resto.

Uma série como The White Lotus está impregnada de inevitabilidade: no final da primeira cena de cada temporada, o espectador sabe que alguém vai morrer, mas pode presumir com segurança que o resto dos ricos viverá, praticamente imperturbável, de resort em resort. À primeira vista, a premissa de que os ricos podem escapar impunes de um assassinato é realista, mas os eventos que levam a trama a essa conclusão são fáceis. Não há um senso real de abertura de possibilidades. As classes mais baixas podem cerrar os dentes e praguejar, mas nunca poderiam esperar mudar materialmente sua situação. Enquanto isso, se alguém levou a sério a crítica da série, é difícil encontrá-la. Depois que a segunda temporada foi ao ar, o hotel Four Seasons na Sicília, onde The White Lotus foi filmado, viu uma multidão de fãs reservando quartos – que custam mais de US$ 4.200 por noite – para imitar as férias de seus personagens favoritos. Claramente, para alguns, essas sátiras eram vistas como uma forma de lisonja.

Se Discreto charme estava respondendo às repercussões dos protestos de Maio de 68, quando países ao redor do mundo canalizavam milhões para policiar os dissidentes, as comédias de classe de hoje estão avaliando o estado das coisas após décadas desse investimento. O fato de que as possibilidades pareçam ser muito maiores em Discreto charme é algo provocado intencionalmente, mas também é um subproduto do tempo. Apesar ou por causa desse fechamento de nossa imaginação coletiva, merecemos o tipo de abertura estética na qual Discreto charme nos convida a entrar. Muitas vezes penso naquelas cenas pastorais em que as socialites de Buñuel caminham para o nada, inquietas, quase frenéticas no silêncio acentuado. Esses momentos eram carregados de potencial. Se a comédia de classe pode retornar com tanta força cultural, esse senso de possibilidades também pode. Mas será necessário mais do que programas de TV conciliadores para trazê-lo de volta.

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