Sem ursos: “Onde fica a fronteira?”

Na mira do governo iraniano, cineasta exila-se num vilarejo enquanto dirige via internet o seu filme. Em debate, a ética sobre imagens — sobretudo quando vidas estão em jogo — e limiares: entre o Irã e Turquia; o documentário e a ficção…

.

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

Existem filmes que, mais do que borrar as fronteiras entre ficção e documentário, mostram a força do cinema e, ao mesmo tempo, seus limites e responsabilidades. É o caso do iraniano Sem ursos, de Jafar Panahi, em cartaz nos cinemas.

Temos ali, de início, uma situação aparentemente documental: um cineasta vigiado pelo regime iraniano – o próprio Panahi, que chegou a ser preso e está impedido de sair do país – dirige à distância, via internet, um filme rodado numa cidade turca. Panahi está num vilarejo perto da fronteira com a Turquia. É uma espécie de exílio dentro de seu próprio país.

No filme dirigido remotamente, um casal de iranianos está em busca de passaportes falsos para emigrar para a Europa Ocidental. A Turquia é apenas um trampolim. Sem ursos começa, aliás, com uma cena desse filme dentro do filme. Ao terminar uma tomada, o diretor-assistente Reza (Reza Heydari) pergunta via internet a Panahi o que ele achou da cena. É a primeira de muitas travessias de uma dimensão a outra desse filme cuja simplicidade é apenas aparente.

No vilarejo onde se enfiou, o cineasta é uma figura estranha, que desperta certa desconfiança dos moradores. Estará ele planejando cruzar ilegalmente a fronteira? Será que é um fugitivo da justiça?

Imagem perigosa

Com sua câmera fotográfica sempre em punho, Panahi pode ter fotografado inadvertidamente uma cena de grande importância para a vida da população local: o encontro proibido de um rapaz com uma moça prometida a outro. É inevitável pensar na obra-prima Blow-up, o filme de Antonioni, e no conto de Julio Cortázar Las babas del diablo, que o inspirou. Mas aqui, a par do conflito ético do fotógrafo, há o seu atrito de artista cultivado e cosmopolita com um quadro de tradições morais e religiosas opressivas.

O dilema ético do cineasta não fica só nisso: a certa altura ele se defronta com a acusação de manipular o casal de protagonistas de seu filme, que vivem na tela seus próprios papéis e a situação aflitiva em que se encontram.

Duas questões centrais se entrecruzam nessa narrativa híbrida. Uma diz respeito a sair ou não do país. Uma cena é especialmente significativa: levado por seu assistente Reza por uma estradinha de terra, na noite escura, Panahi chega ao alto de um morro de onde se avista a cidade turca onde seu filme está sendo rodado. Pergunta: “Onde fica a fronteira?” O outro responde: “Você está pisando nela”. Como que instintivamente, Panahi dá um passo para trás. É uma imagem breve, sutil e eloquente: ele não quer deixar seu país.

A outra questão crucial ao filme é, evidentemente, a da responsabilidade sobre as imagens, sua captação, manipulação e difusão, sobretudo quando o que está em jogo é a vida de outras pessoas.

Desde que passou a ser perseguido e vigiado pelas autoridades teocráticas iranianas, Panahi tem filmado com uma intensidade espantosa, às vezes entre as quatro paredes de uma prisão domiciliar. Essa circunstância limitadora parece ter ocasionado um processo de profunda reflexão sobre seu ofício, bem como de sua relação pessoal com o mundo à sua volta: o Irã, a sociedade globalizada, mas também o vizinho de porta, a pessoa anônima que ele vê passar na rua, o vendedor ambulante de doces.

Forma lapidada

Ao mesmo tempo, o cineasta lapida seus meios. O que parece ter o desleixo de um home movie obedece na verdade a um discreto rigor de construção. Panahi dá a dica ao comentar com o assistente a primeira cena que vemos, do casal em busca de um passaporte: “A câmera deveria ficar no Bakhtiar. Ao acompanhar a Zara e depois retornar a ele nós gastamos um frame inútil, prejudicando o ritmo do filme”. Essa lógica formal jamais é esquecida em favor do “conteúdo”, por mais importante e urgente que este seja.

Em Sem ursos não há nenhum plano supérfluo ou fora do lugar, nenhuma frouxidão ou quebra de ritmo em sua narrativa límpida e austera, que prescinde de toda música para sublinhar o dramático e o cômico de que é feita. O resultado potencializa a impressão de frescor e vitalidade. Um cinema, em suma, que se serve da ficção (ou seja, da mentira) para buscar a sua verdade.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *