Psicanálise e a irrespondível pergunta

Proliferam, hoje, autodiagnósticos e conteúdos de “aroma” freudiano. A análise, no entanto, segue longe dessas pílulas midiáticas. Trata-se de um espaço de escuta a uma fala que não se dis-trai da dor – nem da delícia – de ser quem se é

Imagem: Detalhe de uma colagem com nanquim e guache de Loui Jover
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Psicanalista e doutor em ciências sociais pela Unicamp. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios).

Entre os mais diversos meios e canais de informação e entretenimento, podcasts, Youtube, Tiktok etc., observa-se a produção desenfreada de conteúdos midiáticos em torno da psicanálise. Esse tipo de olhar pretensamente lançado sobre assuntos os mais diversos alimentam um tipo de interrogação sobre si mesmo balizada por categorias analíticas colhidas aqui e ali entre saberes psiquiátricos e psicanalíticos. Ao ouvir tais conteúdos, qualquer um se acha a partir de então capacitado a elaborar minimamente um arsenal de questões endereçadas a si, não sem certo divertimento: “quer dizer então que sou bipolar, histérico, obsessivo, melancólico e algumas vezes perverso?”. 

No entanto, uma pergunta ainda resiste: qual o papel da psicanálise hoje? Apesar do cenário atual aparentar certa consolidação e pujança da prática analítica, esta é uma questão que não deve se dirigir, essencialmente, a essas modalidades de “pílulas” que fazem tanto sucesso nas mídias sociais. 

Deixando as “pílulas” de lado, a pergunta endereçada ao lugar ocupado pela psicanálise deve responder, assim como foi desde o início da aventura freudiana, à sua capacidade de estar à altura de um tratamento possível do sofrimento humano. Um tipo de resposta que só pode advir com a condição de não lançar mão de um saber exterior à própria experiência daquele que sofre. Nesse caso, qualquer “pílula” se tornaria inútil: o impasse existencial que nos habita indica que nada nem ninguém pode preencher completamente as lacunas que a vida vai abrindo ao longo do caminho. No entanto, e aqui reside toda a aposta psicanalítica, ainda resta a fala e um espaço de escuta. O que não quer dizer que seja fácil estar diante daquilo que nos faz sofrer:  quando a única saída é a via da palavra – não de qualquer palavra, mas daquela destinada a atravessar a ferida sem se deixar dis-trair –, o difícil reencontro com a dor é inadiável.

Em comparação com o que se promete hoje em dia na prateleira das soluções definitivas (mágicas) para a cura da dor de existir, pode-se dizer de partida que o registro da palavra aponta no horizonte um fracasso inevitável. No melhor dos casos, obtém-se no trabalho de fala/escuta um frágil tecido de sons e de silêncio. Um processo que muitas vezes pode levar tempo, entediar e desesperar. Pode levar até mesmo ao reconhecimento de que aquilo que foi dito o foi sem que talvez nunca pudesse ter sido. Algo que quem já experimentou sabe ter o efeito de um remexer de placas tectônicas. 

Esse tecido resultante da análise, matéria imprevisível e inexistente até o momento de sua articulação, um acontecimento como que vindo de um exterior desconhecido, apesar de tudo, constitui uma corda sobre o abismo. Nesse sentido, a psicanálise resiste e nos mostra ainda hoje ser impossível atravessar de outro modo as crateras abertas no caminho senão tecendo sobre elas uma teia de palavras e sentidos.

Uma frase célebre do escritor francês Victor Hugo retirada do romance Os miseráveis nos dá aqui o que pensar. Ele diz: “Ce n’est rien de mourir, C’est affreux de ne pas vivre” (“Morrer não é nada. Horrível é não viver”). A verdade contida nesta frase vale para uma diversidade de contextos. Seja diante de um estado de miséria material no qual a morte representa um mero acaso e a vida um grande risco; ou o instante de suspensão que guarda o gesto de quem vai à guerra. Enfim, a miséria de todos os dias que insiste em nos perguntar se é essa vida mesmo que queremos viver deve nos ensinar que horrível mesmo é não viver. Nesse espaço onde a vida cobra seu valor diante de qualquer vivente a psicanálise ainda hoje se anuncia.

O drama desencadeado pelo sofrimento de cada um de nós está enraizado na condição impossível de uma resposta definitiva ao que fazemos de nós mesmos e mesmo àquilo em que devemos nos tornar. As receitas que ensinam a viver são várias, e aí mora o perigo. Mas, perigo de quê? Como na frase de Victor Hugo, aqui trazida ao contexto moderno em que vivemos, não tanto de morrer, mas, o que é pior, de não viver. 

Há uma diversidade de figuras que anunciam o triunfo da morte em vida: o medo de morrer, o desejo de segurança absoluta, a exclusão da alteridade no interior dos circuitos sociais e da intimidade, o risco zero. Para a realização de tais anseios, o projeto biopolítico onipresente nas sociedades contemporâneas avança a passos largos, já que, em sua essência, trata-se de fazer viver a vida domesticada e separada de seu contexto social, natural e político vitais. Seus produtos são conhecidos: lógica do condomínio, uberização da economia, assimilação e destruição dos saberes locais e dos povos originários… enfim, todo o receituário liberal da última hora.

Penso que é possível dizer, a partir de uma perspectiva psicanalítica, que morrer é a outra face que consiste em não correr o risco de viver. O desejo, feito vida-matéria-vertente, sempre insiste. Essa é uma aposta subentendida em toda empreitada psicanalítica: não há remédio para os desafios que a vida nos impõe, senão viver. Uma constatação que é também a de Guimarães Rosa: 

“Viver (…) é muito perigoso. (…) Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. (…) Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. (…) O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.”

Ainda hoje é possível exigir da psicanálise uma resposta a qualquer um que se arrisca nesse estado em que a palavra é convidada a re-virar-se sobre si mesma. Trata-se de uma modalidade de “resposta impossível”, de impossível apreensão, embora sua verdade possa ao menos ser tocada. Nessa estrada se arrisca a errância própria do viver. Não mais o labirinto da morte representado pelas formas de vida condenadas à adaptação, monotonia e artificialidade. Se podemos responder afirmativamente que a psicanálise hoje se coloca como tratamento do sofrimento humano, afinal, é porque morrer não é nada, horrível é não viver.

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9 comentários para "Psicanálise e a irrespondível pergunta"

  1. Muito bem colocado o que se passa em uma análise: …”quando a única saída é a via da palavra – não de qualquer palavra, mas daquela destinada a atravessar a ferida sem se deixar dis-trair –, o difícil reencontro com a dor é inadiável.”

  2. Alex disse:

    O problema do viver é o tal saber definido o que se quer, como disse Guimarães Rosa. Não é debate para qualquer um. Ainda que todos vivam, aprender a viver e refletir sobre isso é para pouquíssimas pessoas. Não é de graça que tão poucos consigam externar isso em um texto.

  3. Olga Teixeira de Almeida disse:

    Ótimas dicas! Valeu o texto sb a análise da pasicanálise contemporânea

  4. Nilton Kiesel Filho disse:

    Lacan dá o dado do impossível para abrir o caminho. Belo texto do caminho para o irrealizável. Nosso enigma, o de cada um, não nos cabe. Não cabe nem em nós mesmos. E la nave va…

  5. Sharmila Laroca Homem disse:

    Ontem mesmo discuti com a minha analista esse lugar inatingível de resposta absoluta. Bom é viver.
    Obrigada pela reflexão.

  6. Cida Sepulveda disse:

    O que é “não viver”? O que é morrer?

  7. Deusa Cardim de Moura Estevão do Couto disse:

    Alerta a banalização da psicanálise.

  8. Deusa Cardim de Moura Estevão do Couto disse:

    Muito apropriada o viés da matéria sobre psicanálise.

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