Em série sul-coreana, o autismo e o espelho

Uma advogada extraordinária, cuja protagonista é uma brilhante jovem com transtorno do espectro autista, propõe o estranhamento à reflexão. Como dar lugar ao que foge à norma sem examinar, em nós, os mecanismos inconscientes da exclusão?

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Quando pensamos na diversidade do significado de certas palavras, por vezes, nos surpreendemos. Esse parece ser o caso do termo que intitula esse texto. Extraordinária é uma dessas palavras que abarcam sentidos que podem ser admirados ou estranhados, de pronto. Intrigante, mesmo, é o motivo de termos esse estranhamento com o que foge à ordem posta, uma vez que todos nós possuímos qualidades e comportamentos que escapam ao convencionalmente tido por comum.

Ao acompanhar o boom de produções que abordam o mundo jurídico, a série sul-coreana Uma Advogada Extraordinária, da plataforma de streamings Netflix, destaca-se, justamente, pela sensibilidade crítica. Na obra, nos é apresentado o dia a dia de uma jovem que se alberga sob os mais variados sentidos desse adjetivo. Acompanhamos a vida, e especialmente as aventuras jurídicas, de Woo Young Woo, jovem advogada com transtorno do espectro autista (TEA).

A sitcom traz à tona as muitas dificuldades enfrentadas por uma profissional, absolutamente competente em seu ofício, com qualidades até mesmo geniais, mas que não corresponde ao ethos que sua profissão encerra. Entre seus pares, o estranhamento é a marca com a qual ela é recebida. Um misto de afastamento e acolhimento piedoso perpassa a maioria das relações que ela cultiva com seus colegas.

Para entendermos a origem desta atitude refutatória ao diferente, é relevante  observarmos o quanto o ambiente externo conforma nosso comportamento social. Ao deslocarmos essa recepção ao diverso para o âmbito acadêmico, temos que: gostos e atitudes externados entre os pares; linhas de pesquisa, posicionamentos e produções científicas; tudo tende a acompanhar as modas recortadas para que o pensamento se uniformize, não avance. Repisam-se, ad infinitum, teorias que reforçam a imutabilidade das formas. E quando rompe-se o cerco da mesmice intelectual, cai-se na crítica pontual que toca no mínimo, nunca chegando às estruturas que encerram a prática e o pensar na eterna manutenção do mesmo.

O extraordinário, portanto, acaba por ser encarado com estranhamento. E como a psicanálise – desde seus primórdios freudianos – nos ensina, humanos, como seres geneticamente arquitetados pela e para a vida em sociedade, buscam incessantemente reconhecimento. Nisso, a fala que divirja e a ação que contrarie ao status quo são de pronto – antes mesmo de ganhar lume – reprimidas inconscientemente pelo próprio sujeito, que busca a aceitação e a validação do seu eu. Aqui se pode falar, também, de um fechamento de afetos em nichos. Classes que se reconhecem pelo condicionamento reiterado de um pensamento circunscrito às práticas que o sustentam, reproduzindo-os incessantemente. Com isso, o rechaço àquilo que é estranho ao produto derivante dessas relações é, dentro do regramento posto, algo natural(izado).

O amoldamento de si, pelo convívio entre pares, é uma inerência de qualquer relação social. Porém, este ajustamento pode – e deve – prescindir da interdição ao divergente. A forma mais concreta para fazer avançar qualquer ideia, teoria ou prática é a prova imposta por sua crítica. Quando subsiste o inviabilizar da discussão que sopese a validade de uma outra linha de argumentação ou forma de ação, resta provada a fragilidade da sustentação da premissa inicial. O medo de ser confrontado pelo outro impede o florescimento do novo que, ao menos em potência, pode ser concretamente melhor.

É da reprodução material das relações socioprodutivas, nos moldes postos, que deriva a subjetividade que afasta o que não é espelho. E da necessidade de reconhecimento, advém o desejo, mesmo, de seguir o encaminhamento do já dado. Um cálculo racional que desenha os limites das possibilidades de subjetivação dos sujeitos. A ideologia que os interpela é a mesma que os constitui, por tanto, o desejo de repressão e a necessidade de seguir é sempre mais forte do que a de destoar.

Somente uma mudança na materialidade da interpelação pode alterar a forma como os sujeitos se relacionam, seja consigo ou com o mundo exterior. Enquanto a concretude das relações for pautada pela métrica da mercadoria, a concorrência será a chave pela qual se darão as práticas sociais. 

E nisso, tudo que fugir ao ordenamento, intentando a instauração de outras formas e relações, será encarado como afronte ao que me conforma como ser-no-mundo. E, desse modo, inconscientemente repelido e conscientemente combatido como subversão ao que estrutura a única forma de orientação imaginada e – apenas e tão somente  por isso – desejada como possível e, ainda, como “o normal”.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

BALCONI, Lucas R. Direito e Política em Deleuze. São Paulo: Ideias e Letras, 2018.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo capitalismo e esquizofrenia 1. 2a ed. São Paulo: Editora 34, 2011.

FISHER, Mark. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?. São Paulo: Autonomia Literária, 2020

MASCARO, Alysson L. Crítica do Fascismo. São Paulo: Boitempo, 2022.

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