O cinema do cangaço e a representação da polícia

Mostra “Nordestern” da Cinemateca reflete sobre a mítica do cangaço e o papel das polícias na forja de um Brasil brutal. Na pauta, as raízes históricas da crença – tão atual em vozes bolsonaristas – de que a paz se alcança pela violência

Cena do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, 1953
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Por Aloe Rosa de Sousa e Amauri Gonzo, na Ponte Jornalismo

Ao som do clarim, um homem de meia-idade com ar de funcionário público, óculos, bigode e terno (mesmo sob o sol inclemente do sertão) lê com a voz empostada e dicção de radialista , um documento — a página que ele lê, avantajada para nossos padrões contemporâneos, mostra o texto completo da convocação:

Á culta população desta cidade:

A fim de desagravar a honra da nossa gente, sobre a qual tripudiou o miserável Capitão Galdino Ferreira, o Comandante Alcides, de acordo com as altas autoridades locais acaba de organizar a briosa 3ª Volante formada por patriotas de coragem e que sairá de imediato a fim de destruir aquele bando de cangaceiros e castigar os que tão covardemente feriram os foros de civilização da nossa querida Pátria. Viva a 3ª Volante!” 

Enquanto o comunicado é lido, como numa montagem de filme de super-herói, os voluntários da tal “volante” vão aparecendo: jovens imberbes, correndo pelas ruas de terra, de uniforme e chapéu, juntando cavalos, munição, mosquetes.

Dentro da gelada sala Grande Otelo, ia chegando ao fim a mostra “Nordestern: bangue-bangue à brasileira”, organizada pela Cinemateca Brasileira entre os dias 19 e 28 de janeiro. Durante duas semanas o antigo matadouro municipal foi lembrado do tempo em que o sangue corria solto pelo chão, só que, agora nas telas, o sangue não era bovino, mas sim da recriação ficcional da disputa entre os “bandoleiros” do cangaço e a ainda nascente polícia brasileira.

O Cangaceiro, filme de 1953 que fechou a mostra, é o mais célebre representante do gênero “nordestern”, espécie de contraponto nacional ao faroeste americano, trocando os desertos ocidentais dos Estados Unidos pela caatinga do Nordeste brasileiro e a disputa entre brancos e índios pela saga da tentativa dos poderes centrais e locais em acabar com o fenômeno de “banditismo” brasileiro celebrado sob o nome de “cangaço”.

Premiado em Cannes, O Cangaceiro de Lima Barreto (diretor homônimo do famoso escritor) segue mantendo um longo legado, que influenciou obras como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, cuja “continuação” O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1968) foi exibida na mostra, e Bacurau (2019), que também participou do evento com direito a debate com o diretor Kleber Mendonça Filho sobre o aspecto “nordestern” do seu último longa.

O que se consolidou sob o nome de “cangaço” na virada dos século XIX para o XX nos interiores do nordeste brasileiro (nas áreas de agreste e sertão) é um fenômeno social de fundação mais antiga: já em meados dos anos 1700, José Gomes de Britto, o Cabeleira, já aterrorizava o sertão pernambucano liderando um bando de arruaceiros, como conta Franklin Távora em seu romance histórico O Cabeleira, de 1876.

Quase um século depois de decretado seu fim, o cangaço segue vivo na memória e cultura nacional, não só no sertão nordestino: a campeã do primeiro carnaval carioca pós-pandemia foi a escola de samba Imperatriz Leopoldinense, com o enredo “O aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarida”, homenagem a Lampião, maior nome do cangaço.

Subsidiário à criação pastoril, que foi por séculos a força econômica por trás da ocupação da caatinga e do cerrado brasileiros, o cangaço se estabeleceu no imaginário da população local como um espelho revoltoso que devolvia ao coronelato estabelecido nas regiões onde operava, onde os latifundiários, à moda feudal, exerciam todo o poder sobre a vida e a morte dos meeiros, vaqueiros e suas famílias. Se esse poder era exercido com aberta violência, Darcy Ribeiro lembra em O Povo Brasileiro que a semente do cangaço foi plantada pelos próprios senhores de terra que depois por ele foram aterrorizados:

“Frequentemente os fazendeiros aliciavam grandes bandos, concentrando-os nas fazendas, quando duas parentelas de coronéis se afrontavam nas frequentes disputas de terra. Esses capangas, estimados pela lealdade que desenvolviam para com seus amos, pela coragem pessoal e até pela ferocidade que os tornava capazes de executar qualquer mandado, destacavam-se da massa sertaneja, recebendo um tratamento privilegiado de seus senhores.”

Banditismo por uma questão de classe

O cangaço ganhou força no sertão do nordeste brasileiro entre os séculos XIX e XX, quando a então recém nascida Velha República esforçava-se para dar ao Brasil um ar de Estado-nação. A movimentação cangaceira era uma pedra no sapato desse novo país, de olhos sempre voltados à “civilização” europeia, que procurava criar um código legal que fosse respeitado de norte a sul, na contínua tarefa de criar “instituições” que se sobreponham à “selvageria” da ex-colônia. 

Não à toa, o fim do cangaço só acontece após a Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas centraliza os poderes do executivo federal em seu longo projeto de “desfeudalizar” o Brasil. E nessa empreitada, os governos (estaduais e federal), contam com o trabalho da força de controle social mais moderna disponível aos poderosos até os nossos dias: a polícia. A partir de então, o que vai definir um brasileiro das classes populares como brasileiro é o seu direito nato de tomar um enquadro.

O auge popular do cangaço é também muito próximo do seu fim. Virgulino Ferreira da Silva, autodenominado capitão (após ter sido arregimentado para combater a Coluna Prestes num acordo costurado entre o presidente Arthur Bernardes e o Padre Cícero, que deu em nada), é mais conhecido pelo “vulgo” (já à época essa marca permanente de distinção, ainda presente nos modelos de elaboração de boletins de ocorrência policiais) Lampião. De todos os nomes que vararam ferozmente as dimensões do “mediterrâneo seco” (palavras de Darcy Ribeiro) do sertão, nenhum personificou melhor o paradoxo do romantismo cangaceiro que ele.

Robin Hood da caatinga, Lampião parecia encarnar a luta de classes possível da geografia onde nasceu e se criou. Virgulino e seu bando roubavam dos ricos e ajudavam os pobres, mesmo que todas as classes fossem atingidas pelos crimes (que incluíam extorsão, roubos, homicídios, estupros e tortura) e que o fenômeno fosse fruto do descaso e corrupção dos governantes e donos de terra. Os cangaceiros ainda também eram admirados pelos seus métodos de sobrevivência de forma nômade em cenários inóspitos da caatinga, de coragem no enfrentamento, pela união diante do inimigo mais municiado, bem como por serem responsáveis por trazer vingança e progresso.

O historiador britânico Eric Hobsbawn, em seu famoso estudo Bandidos (1969), onde comparava suas impressões sobre os bandoleiros italianos ao cangaço e aos foras-da-lei que fizeram a Revolução Mexicana, diz que o “banditismo é formado por aqueles que, por um motivo ou outro, não se acham integrados à sociedade rural e que, por isso, são também forçados à marginalidade”. 

Trata-se de um fenômeno de fases complexas, onde fatos e lendas se misturam e os bandidos sociais são esses capazes de conectar ambas as imagens, como fica transparente no documento jornalístico audiovisual Lampeão, o Rei do Cangaço (1939), censurado pela ditadura Vargas, que registra momentos de convivência e rotina onde os cangaceiros aparecem descontraídos, sorrindo, dançando e mostrando seu armamento.

Ao reunir a díspar produção audiovisual em torno do cangaço, a mostra Nordestern jogou certa luz sobre as atitudes culturais populares associadas à atividade policial dentro do contexto do sertão nordestino na virada do século XIX para o XX, como, por exemplo, na maneira em que os agentes da lei eram referidos.

Os cangaceiros chamavam seus algozes de “macacos”. Os motivos para a adoção do dialeto são incertos, há versões que indicam que o epíteto nasceu do fato de que os integrantes das forças volantes corriam e pulavam de pedra em pedra na caatinga para se esconderem dos tiros trocados em combate; outras dão conta de que a adoção se deu ao comparar os homens obedientes (em tese) à lei e à hierarquia a “macacos mandados do governo” — ou seja, aos olhos dos bandoleiros, tais policiais são inferiores alvos de deboche. 

Como mostra o filme O Cangaceiro, de Aníbal Massaini Neto (1997), após muita andança com a cabeça baixa atrás do rastros do bando, os grupos se encontram e entram em conflito. A cada pausa para recarregar as armas, ofensas criativas são proferidas enquanto as risadas sobem na plateia, antes do sobressalto com a próxima morte na tela. Ao vencerem os policiais, os cangaceiros esquartejam os corpos  e os jogam em meio a vegetação seca: “vamos pendurar esses macacos nos galhos”.

À esq., Flacko e Borges no clipe de “Ak do Flamengo”; à dir., Lorival Pariz interpreta Coriana em “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” | Fotos: Reprodução

O desdém pela polícia, muito mais comum na cultura popular antes do triunfo da “copaganda” (propaganda a favor das corporações policiais) no capitalismo tardio, aparece em outras formas artísticas ligadas ao sertão e ao cangaço, com nas sextilhas dos cordéis e mesmo no conjunto de ritmos musicais que se convencionou agrupar sob o nome de “forró” — o xaxado, dança e ritmo ligados a esse universo, teria sido inclusive criado pelo bando de Lampião.

O festival de Cannes, além de premiar O Cangaceiro de Lima Barreto, também fez menção honrosa a sua trilha sonora. Uma das versões de “Mulher Rendeira” (outra obra atribuída popularmente a Lampião), se tornou internacionalmente conhecida na versão Alfredo Ricardo do Nascimento, o Zé do Norte, com versos insuspeitos como: 

“A muié de cangaceiro
Não tem medo de careta
Quando vê a coisa preta
Sai rolando pelo chão
Bota o dedo no gatilho
Toca fogo no sertão
Tenente perde a patente
Coronel perde o galão” 

É difícil evitar a comparação com versos mais explícitos de formas musicais contemporâneas como o trap, como nos versos de “AK do Flamengo”, de Borges:

“Carga girando no plantão da boca
Se brechar na cinco vai ser muita bala
Foda-se o arrego, tô cheio de ódio
A tropa do moço é os enguiça-barca” 

O próprio videoclipe de “AK do Flamengo” traz um aspecto de paralelo entre os homens do cangaço de antanho e os soldados do tráfico de então: homens exibindo suas armas, dançando e correndo pelas estreitas vielas e becos de uma favela do Rio de Janeiro, com suas peças decoradas artesanalmente. Para além do domínio bélico onde o conhecimento do território suplanta a disparidade material, a estética das armas decoradas — sejam com as fitas e estrelas dos cangaceiros, ou com os adesivos e baixos relevos dos traficantes — apontam os padrões repetitivos na história, onde os detalhes se aproximam acontecimentos apesar das décadas que os distanciam. Como diz Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol: “se morrer um, nasce outro”.

Matador de cangaceiro

Glauber Rocha é quem vai esmiuçar com mais intensidade esse papel policial no antagonismo ao cangaço, na figura de Antônio das Mortes. Personagem responsável por emendar os dois arcos narrativos de Deus e o Diabo, das Mortes vai ganhar ares de carreira solo em O Dragão da Maldade (que se chama internacionalmente Antônio das Mortes).

Antônio, interpretado por Maurício do Valle, não é policial de profissão, mas representa esse aspecto subterrâneo e dúbio das forças policiais desde seu nascimento, arregimentadas a partir dos “homens fortes” que faziam da violência seu ganha-pão na defesa dos interesses dos donos de terra, uma linha evolutiva que explicita a função-base policial, a de fazer cumprir o regime de propriedade privada. Carrega como arma preferencial um papo-amarelo, apelido nordestino do rifle de repetição Winchester, que fez fama inicial como principal instrumento bélico a encerrar o genocídio indígena estadunidense na segunda metade dos anos 1800.

“Jagunço”, do quimbundo “jagunzo”, significa “soldado”, e essa confusão entre o soldado de soldo e o de carreira é a histórica fronteira cinza entre as tropas estatais e paraestatais, entre a polícia e a milícia. Volante de um homem só, das Mortes regala-se de ter matado 100 cangaceiros, e, diferente da retórica patriótica da carta que institui a Terceira Volante em O Cangaceiro e sua paradoxal missão civilizatória (não muito distante de certos delírios bolsonaristas) de alcançar a paz através da violência, sua ideologia se assenta sobre certo niilismo aceleracionista, que ele carrega sob o destino que tem que cumprir como personagem de tragédia grega: “um dia vai ter uma guerra maior nesse sertão, uma guerra grande, sem a cegueira de Deus e do Diabo. E para que essa guerra comece logo, eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco, e depois morrer de vez”.

Em O Dragão da Maldade a relação de Antônio é mais explícita: ele é efetivamente contratado por Dr Netto, delegado local de Jardim das Piranhas, para matar Coriana, que seria o último cangaceiro, mas que está mais para um líder de trupe teatral mambembe — em uma apresentação, recita versos que desvelam sua vontade revolucionária:

“Prisioneiro vai ficar livre, carcereiro vai pra cadeia
Mulher dama casa na igreja com véu de noiva na lua cheia
Quero dinheiro pra minha miséria, quero comida pro meu povo
Se não atenderem meu pedido, vou voltar aqui de novo”

Mais tropicalista e em cores, O Dragão da Maldade repete Antônio das Mortes em seu falar e portar-se pesaroso e triste. O matador conta ter sido convidado pelo próprio Lampião a entrar no bando, e diz se ver como um espelho de Virgulino. Encerrando o primeiro terço do filme, uma cena que marcou o diretor Martin Scorsese desde a primeira vez que o viu, numa exibição tarde da noite em Nova York. Cada um mordendo a ponta do lenço rosa que adornava o pescoço do matador, Antônio e Coriana se engalfinham numa luta dançada e mortal, de facão e punhal, segurando pelos dentes aquilo que os une: a violência e a exploração de suas vidas por aqueles que detinham o poder.

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