A imensidão lírica de Sueli Costa

Compositora morreu no sábado (4/3). Regravadas por artistas como Elis e Bethânia, suas poesias de delicadeza cortante sugerem uma paz sem trégua ou calmaria. E trouxe novas iluminuras à MPB, ao musicar Cecília Meireles e Fernando Pessoa

Imagem: Funarte
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… em que espelho ficou perdida a minha face?”.

Neste sábado, quando percebi a perda definitiva de Sueli Costa (às vezes há fatos, notícias tão tristes que, atônitos, não percebemos o peso imponderável do seu sopro) o ar parado permanecia suspenso nas linhas de uma dor acrílica, apenas um músculo da face franziu trêmulo na interminável tarde, enquanto Sueli Costa, poeta e letrista magnífica, descansava aturdida (quem sabe?), desterrada de toda poesia.

Nos anos 70, quando sonhávamos nas escadarias, calçadas, nas carteiras universitárias, na penumbra das mesas dos bares, o sonho era um quase transe misturando o presente com um continente futuro, tínhamos nas bolsas longas de couro cru inúmeras folhas de jornais, livros amarelados, sedas Colomy, um gorro de lã peruano para as madrugadas frias e assuntos, acervos para conversas intermináveis, entre eles o turbilhão poético daquela menina que surgia compondo maravilhosamente com Abel Silva, Cacaso, Tite de Lemos, Aldir Blanc, Vitor Martins e também sendo gravada por celebridades da MPB, como Elis, Bethânia, Simone, Nara Leão, Ney Matogrosso, entre outros.

Sueli Correa Costa nasceu em Juiz de Fora (MG) numa família de músicos e já na infância começou a se dedicar ao piano e violão. Para sorte maior das letras e da arte, em 1967 a jovem letrista abandonou o curso de direito às vésperas de se formar, atendendo ao “chamado” da sua flama musical e da sua delicadeza estética pela composição.

O refinamento dos seus versos a realçam como um crepúsculo inaudito de admirável força literária e, assim, considerá-la como uma das maiores letristas brasileiras seria somente um perceptível reconhecimento da sua grandiosidade poética.

Do primeiro LP Sueli Costa, lançado em 1975 com arranjos de Wagner Tiso e Paulo Moura, com participação do grupo Som Imaginário, abre com a linda “Retrato”, sobre poema de Cecília Meireles; “Dentro de Mim Mora Um Anjo” (Sueli/Cacaso), “Encouraçado” e “Aldebarã” (Sueli e Tite Lemos).

Neste mesmo ano Maria Bethânia, no LP duplo “Cena Muda”, inclui várias músicas de Sueli Costa: “Nossa Senhora da Ajuda” (poesia musicada de Cecília Meireles); “Ator de Cinema” (com João Medeiros Filho); “Conversação Entre João e Maria” e “Encouraçado” (com Tite Lemos); “Demoníaca” (com Vitor Martins) e “A Sonhar Venci Mundos” (poesia musicada de Fernando Pessoa).

Antes disso, em 1971, Maria Bethânia já incluíra no repertório do seu show “Rosa dos Ventos” as canções “Aldebarã”, “Assombrações” e “Sombra Amiga” (todas com Tite Lemos).

Do seu segundo LP “Sueli Costa”, de 1977, nos traz músicos e arranjos deslumbrantes: de pronto nos apresentava cinco composições do poeta Cacaso, entre elas “Amor Amor” e “Pedra da Lua”; quatro do poeta Tite Lemos, como “Guadalupe” e a solidão mortal de “Sombra Amiga”; além do inebriante e passional bolero “Cão Sem Dono” (Sueli/Paulo César Pinheiro).

No ano seguinte, em 1978, lança o LP “Vida de Artista”, com arranjos de Dori Caymmi, trazendo as músicas “Jura Secreta”, “Medo de Amar nº 2”, “Vento Nordeste”, “Cordilheira”, todas também gravadas pela cantora Simone. Ainda neste ano a cantora Elis Regina inclui no seu LP “Ela” a representativa música temporal “Vinte Anos Blues”.

Ao longo da sua brilhante carreira musical, outras novas gravações e compositores se somaram, outras intérpretes deram novos sentidos, diferentes iluminuras e fragrância às suas composições. A imensidão lírica da poesia de Sueli Costa permanece alinhavada à sua voz terna, com a mesma paz interior, paz inconciliável, sem trégua e calmaria, desaguando nas veias solvidas em versos de uma prosa poética cortante e nascitura. A analise lítero-musical de Sueli Costa expõe, primeiramente, a sua estreita ligação com a literatura ao musicar logo no início de sua carreira grandes escritores, como Cecília Meireles e Fernando Pessoa. Não à toa essa escolha recaiu sobre poetas aos quais se identificava e melhor representava a sua brilhante capacidade poética, musicalidade, intimismo, as temáticas ligadas à dramatização e idealização do amor, a transitoriedade da vida, universalismo e lirismo levado às últimas consequências.

Hoje há avenidas nômades sem Consolação, Paulista febril sem acenos, Atlântica em vagas tropeçando nos azuis de barcos, ofertam somente a dimensão mínima do ermo que representa a sua perda, dos retalhos de amores, da lágrima transparente perpassando pelo peito estrangulado, enquanto longe… longe a poesia perene se refaz, rodando num tremendo bolero sem fim, drágeas, dores e dienpax.

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