Seriam bruxas as personagens de Clarice?

Atravessadas por questões de gênero, raça e classe, suas personagens não se adequavam. Seus olhares desviantes nos encontram até hoje, na violência, na dor e na inferiorização. Mas também na busca por uma sociedade livre de injustiças

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Por Ezilda Melo

Nos contos claricianos, percebe-se um diálogo com muitas instituições, dentre elas a do casamento, que social e culturalmente somos des-apresentados como o lugar da insensatez e da insegurança, contrário ao que apregoa o Código Civil Brasileiro, ou as aulas de Direito de Família, quando se explica sobre regime de bens, sobre guarda e pensão de filhos, como se fossem as únicas complexidades que pudessem aparecer quando se tem diante de si este instituto.

Em leituras literárias, inferimos tantas questões de cunho pessoal que perpassam o dia a dia e as pluralidades de sensações quanto ao que se promete para sempre, o tal amor eterno. Clarice nos coloca diante de muitas mulheres, seja Luísa, Cristina, Laura, Zilda, Maria das Dores, Sofia, D. Frozina, Eremita, Pequena Flor, outras sem nome, que vivem dilemas, conflitos, dúvidas existenciais, que falam sobre justiça e injustiças da vida.

No contexto histórico de suas personagens, Clarice dava testemunho de múltiplas personagens que vivenciavam o conflito com seus maridos, com a família, com padrões sociais impostos. São personagens que, como diz, Mary Del Priore1 (2014. p. 177): começavam a poder escolher entre desobedecer às normas sociais, parentais e familiares. Clarice apontava para os desgastes desses códigos machistas, dessas imposições que entravam em conflito diretamente com a própria felicidade de mulheres presas a papéis sociais que precisavam ser desempenhados muito bem socialmente, sob pena de críticas e acusações. A troco de muita vida feminina, criou-se um lugar de opressão masculina que se baseava em usurpação da própria individualidade. Quanto mudamos da década de 70 para cá? Que mulheres hoje ainda perseguem esses padrões e esses papéis sociais de donas de casa dependentes economicamente de seus maridos, de submissas ao julgo e ao poder patriarcal? Que mulheres sonham com o príncipe encantado, com amor eterno, com a lenda do amor romântico imodificável?

Clarice marcou um lugar, registrou um universo, refletiu sobre construções historicamente ultrapassadas, fez com que a dúvida fosse instalada no âmago da subjetividade feminina. Clarice é atual. Clarice é precursora, pioneira, uma contista do caos profundo do existir. Trouxe para dentro de sua escrita as nuances, as dúvidas, as emoções, os mistérios que estão à espreita. Coloca-nos diante do inusitado, do incerto, da insegurança, da pluralidade do existir. Clarice já combatia formas de opressão de afetam diretamente as mulheres em suas individualidades. Sua escrita, além de um testemunho de época, continua forte nesse combate. Com essa preocupação com o coletivo, surge um senso de responsabilidade que vai além do estético e entra na concepção de solidariedade2, empatia, alteridade.

Procurar nos contos de Clarice um viés sobre Direito a partir das personagens femininas, é encontrar códigos sociais, percepções de mulheres em contexto histórico da década de 70 dialogando com questões jurídicas. O motivo do exercício hermenêutico dá-se em razão de reconhecer na leitura artístico-literária um lugar de construção do saber jurídico, para além do mero legalismo proposto pela legislação pura, seca e enfadonha. Com a arte é possível enxergar a cultura; é pela arte que se finca com maestria leituras mais densas e mais significativas do que os velhos processos já desgastados, carcomidos, esquecidos nos cartórios do tempo. A obra literária enquanto testemunho histórico-jurídico permite um entreolhar que ficou registrado e com cada nova leitura há construção de novos sentidos e motivos. É um exercício ininterrupto e novidadeiro a cada refolhar, reolhar, restabelecer.

São mulheres simples, que vivem vidas comuns, algumas são queimadas vivas, umas tantas são feiticeiras, verdadeiras bruxas que querem queimar. Como não lembrar de “O Martelo das Feiticeiras”3? Os inquisidores medievais ligaram a transgressão sexual à transgressão da fé. Teria mesmo o século XVIII acabado com a caça às bruxas? Quem são essas mulheres perseguidas até hoje4? Que pecados tão grandes são esses que fazem com que virem, literalmente, cinzas e pó5? As mulheres que questionam o sistema, que seguem suas vontades estariam até o presente momento sofrendo perseguições? Clarice diz que sim. E constrói uma peça para falar sobre a pecadora queimada6. Clarice, não se pode esquecer, foi uma mulher que sofreu desde a mais terna idade, a perseguição racial. Uma mulher judia que veio foragida para o Brasil. Teria sido queimada na fogueira do holocausto, uma fogueira ancestral da inquisição, se lá tivesse permanecido? A ideia de pertencimento, de fuga, de sobrevivência tão impactante em sua obra, dá dimensão de uma alegoria da luta das mulheres pelo sobreviver histórico. Eremita também é personagem, criada, negra, que se aparentasse seu conhecimento aprendido na floresta, seria queimada socialmente. Clarice não brincou com fogo e mesmo queimada não morreu; Clarice é ebulição; é brasa que incendeia a fogueira ardente das ancestrais e das que virão na ciranda das mulheres sábias7.

A caça às bruxas foi, de acordo com Silvia Federici8 (2004, p. 337-338), uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social. Ao mesmo tempo, foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras, nas quais as bruxas9 morreram, onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade.

Seriam bruxas as personagens de Clarice? Essas mulheres aceitavam a domesticação de seus corpos e as convenções sociais? São questões que pulam aos nossos olhos, que saem das possíveis lei-turas com o recorte teórico-metodológico do feminismo que ali tem raízes, sementes, flores e hoje dá frutos.

bell hooks aponta para a necessidade da mudança de perspectivas distorcidas e equivocadas, e diz que “o sexismo, o racismo e a ideologia de classe separam as mulheres umas das outras10”. As mulheres de Clarice são cortadas por essa tríade. É possível ver os traços de gênero, as questões de raça, as posições de classe social. Das mais pobres às ricas, elas convivem com amarras que lhe custam suas próprias vidas. São verdadeiras via crucis do existir. Sofrimentos que não podem ser simplesmente colocados num lugar esquecido. Eles pululam, incomodam, rasgam feridas e mostram os nervos à flor da pele, ensanguentada por tantas dores. As mulheres de Clarice trocam olhares desviantes com a mulher selvagem. Onde vivem essas mulheres? De acordo com Clarissa Pinkola Estés11, “a mulher selvagem vive no fundo do poço, nas nascentes, no éter do início dos tempos (…) ela vive no futuro e volta no tempo para nos encontrar agora”.

As mulheres de Clarice nos encontram até hoje. Elas não morreram. Elas estão vivas em suas páginas, estão vivas em suas casas, no desconforto da experimentação do desgosto e da violência conjugal, dos lugares comuns impostos, nas mesas de audiência, nas delegacias das mulheres, na dor e no luto do feminicídio. Clarice não escondeu, não romantizou, criou um universo colorido e teórico para trancafiar as relações humanas entre casais. Ela expurgou, escancarou, mostrou e, por isso, seu olhar é de pavor, de dor, de tentativa de fazer enxergar.

A problematização se mostra ao questionarmos sobre quais são os arquétipos femininos e repercussões jurídicas que são construídos por Clarice Lispector nos seus contos. Clarice nos diz: “E esta simples mulher por tão pouco se perdeu, e perdeu sua natureza, e ei-la a nada mais possuir e, agora pura, o que lhe resta ainda queimarão12”. O que se faz quando o passado foi queimado, quando mulheres foram queimadas, quando se sente o cheiro quente da carne assada? Escreve-se presente. Mudam-se leis, códigos, modos de convivência social. Seja pelas personagens de Clarice, seja pelas mulheres reais que inspiraram, de onde a teia da arte buscou uma costura, que podemos pensar em direitos das mulheres, de crianças e de uma sociedade com menos hipocrisia e mais felicidade social. Enquanto as mulheres forem queimadas, enquanto tivermos desigualdades, processos imbuídos de olhares e leituras misóginas, onde tivermos separação por gênero, classe e raça, estaremos diante da pura injustiça. E não é para isso que se estuda e se faz direito.

Clarice, mesmo que não intencional, fez muito pelo direito plural, aberto, cheio de significados. Deixou um legado que precisamos levar para nossas salas de aula, para o aprendizado contínuo de quem não aceita as injustiças. Enquanto os cursos de graduação forem lugares de formação de fascistas, conservadores preconceituosos abastados de suas condições herdadas, ainda teremos muito para denunciar e mudar. Seja com a arte, com a literatura, com Clarice, a estética que permeia a formação jurídica deve ser a da mudança, a da pacificação e da harmonia social.


1 DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014, p.177: “ficava longe o tempo em que os maridos davam ordens às esposas, como se fossem seus donos. Um marido violento não era o dono de ninguém, mas apenas um homem bruto. Uma vez acabado o amor, muitos casais buscavam a separação. Outros faziam o mais fácil: tinham um ‘caso’”.

2 hooks, bell. Teoria Feminista – da margem ao centro. tradução: Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 105: “solidariedade era uma palavra raramente usada no movimento feminista contemporâneo. Colocou-se muito mais ênfase na ideia de ‘apoio’”.

3 KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Introdução histórica: Rose Marie Muraro. Prefácio: Carlos Beyngton. Tradução: Paulo Froes. 11ª ed. Rio de Janeiro: Record. Rosa dos Tempos, 1995.

4 Acusadas de bruxaria, mulheres são queimadas vivas na Tanzânia.

5 Quando Judith Butler veio ao Brasil,  entre os ataques, houve um grupo de pessoas que construiu uma boneca com seu rosto, e, na frente do Sesc Pompéia, onde o evento sobre democracia aconteceria, atearam fogo, em referência às bruxas queimadas nas fogueiras da inquisição. Alexandre Frota, conhecido por defender ideias de grupos conservadores, como do Movimento Brasil Livre, publicou em uma rede social: “Nosso grupo queimou a cara dessa vadia”, com a imagem de um cartaz com o rosto de Butler entre chamas, acompanhado da frase: “Vá para o inferno”.

6 LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. Organização de Benjamin Moser. 1ª edição. Rio de janeiro: Rocco, 2016. A Pecadora queimada e os anjos harmoniosos.

7 ESTÉS, Clarissa Pinkola. A ciranda das mulheres sábias. Ser jovem enquanto velha, velha enquanto jovem. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

8 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Tradução: coletivo Sycorax.  1ª edição. São Paulo: Editora Elefante, 2019. A caça às bruxas, então, teria vindo como uma forma de sequestrar das mulheres toda a autonomia de que desfrutavam. As “bruxas”, postas como “servas do diabo”, eram todas mulheres sábias, independentes, irreverentes e muitas vezes pobres e solteiras. Enquanto morriam nas fogueiras, queimava junto com elas a resistência ao incipiente capitalismo.

9 FEDERICI, Silvia. Mulheres e Caça às Bruxas. 1ª edição. São Paulo: Boitempo. 2019.

10 hooks, bell. Teoria Feminista – da margem ao centro. tradução: Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 104.

11 ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que Correm com os Lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Tradução de Waldéa Barcellos. 1ª edição. Rio de Janeiro: Rocco, 2018. p. 27.

12 LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. Organização de Benjamin Moser. 1ª edição. Rio de janeiro: Rocco, 2016. A Pecadora queimada e os anjos harmoniosos. p. 367.

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3 comentários para "Seriam bruxas as personagens de Clarice?"

  1. Gabrielle disse:

    Uau, uau, uau. Que texto, que leitura, que urgência!! Obrigada e que possam os juristas de hoje ver o que vc vê!

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