Literatura dos Arrabaldes: O corpo como território

Paisagem poética de duas autoras da periferia. Uma trafega por cidade insone, entre a loucura e os amores de rolês. Outra, na potência do feminismo frente à opressão. Em ambas, corpo e lugar como campo de violações — e de resistência e libertação

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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

As leituras que compartilho neste texto são dos livros Terra Fértil1, de Jenyffer Nascimento (Edições Mjiba, 2014) e Pele para nossos corpos2, de Michelle dos Santos Lomba (Edições Me Parió Revolução, 2019). As autoras nasceram em meados da década de 1980 e são, portanto, da mesma geração. Jenyffer é do Jardim Ibirapuera, periferia da Zona Sul de São Paulo e Michelle mora atualmente na cidade de Santo André, no ABC Paulista. Ambas são educadoras, com formação em artes, sendo que Jenyffer nas artes visuais e Michelle em cênicas. A autora paulistana trabalha há dois anos como assessora parlamentar, enquanto a poeta de Santo André dedica-se ao teatro de rua e a gestão cultural. Terra Fértil e Pele para nossos corpos são livros de estreia das autoras.

Os poemas de Jenyffer falam de amor (e desamores), do transe pela cidade em madrugadas insones e são impregnados por uma reflexão intimista. Mas há aqueles de combate que cerram o punho em defesa da mulher preta. Já os textos poéticos de Michelle são quase todos de combate pela causa feminista. Nos dois casos, a emancipação por meio da afirmação do corpo está no centro de suas narrativas poéticas. Um corpo violentado e violado que enfrenta e supera a dor. Com abordagens distintas expressam uma estrutura de sentimento que demarca o corpo como território. Um corpo que “tem cor, tem corte e a história do meu lugar”, como diz Luedji Luna na canção Um corpo no mundo.

Terra Fértil

Os 80 poemas do livro de Jenyffer Nascimento podem ser classificados, sem rigidez, em quatro blocos temáticos: os de amor; os engajados (quase todos feministas com recorte racial); os reflexivos (dentre os quais há os que tratam do ofício de poeta) e, finalmente, os que tem o fluxo na cidade como elemento central da composição. Os poemas de amor formam o maior grupo com 30 poemas, seguido dos reflexivos com 15. Em terceiro vem os 13 textos citadinos. Já os poemas de combate formam o grupo menor com 12. Embora onipresente no livro, salvo engano, a “África” não é mencionada como palavra em nenhum poema e “ancestralidade” aparece como vocábulo uma única vez.

Há 11 poemas no livro que fogem a essa classificação e que são, na maioria, experimentais com forte traço alegórico como Olhos sobre tela, no qual o eu lírico é uma mulher pintada numa tela, cuja “moldura arcaica” lhe incomoda e a personagem entra em confronto com o artista que a pinta em tons pastéis, quando ela prefere “cores quentes”. Tamanha gama de vertentes denota o amplo repertório da poeta, além de sua habilidade na arquitetura dos textos, alguns deles, poderiam se converter em crônica ou mesmo conto, posto que apresentam um vigor narrativo e uma criatividade de fabulação impressionantes. Terra Fértil revela que Jenyffer, tem uma estética muito própria o que lhe confere um lugar de destaque entre as autoras negras de sua geração.

Amor viceja nas páginas do livro. Mas é um amor errado, desencontrado, frívolo, algumas vezes. São paixões de ocasião que duram uma noite e algumas delas ficaram só nas intenções. O sexo, também latente, por vezes só existe no plano da imaginação, tornando-se um elemento secundário o que surpreende em boa medida, pois há um apelo sexual permanente nos poemas de amor da autora. Sua poesia é, por assim dizer, sensualizada, mas não erótica.

A autora tem inúmeros casos amorosos, praticamente um para cada poema. O roteiro das paixões é, invariavelmente, o flerte (num bar), a cama (dele), e o despertar no dia seguinte, atrasada para um compromisso. Essa imagem não está em todos os poemas, pois há inúmeras variações criativas sobre o tema, mas é a que fica. E viver com essa liberdade de amanhecer na cama que quiser, inclusive na sua, com quem ela escolher, é uma bandeira que a autora sustenta: “liberdade, loucura e prazer”, diz ela em Fragmentos do eu que está no bloco dos poemas de combate.

Samba Jazz é o primeiro texto do livro. Um poema narrativo que cria a imagem de um encontro inusitado entre um homem e uma mulher. Ele fã de jazz, cult e intelectual; ela boêmia frequentadora de rodas de samba. Rumores sobre o fim do mundo dão um clima para o inesperado encontro no Centro. Ele a caminho de uma exposição e ela a procura de mais um samba. Encontraram-se na Rua General Jardim e a paixão se deu: “ela primeiro leu nos seus olhos/e no muro a escrita:/ – mais amor, por favor”. Ele não teve o que teorizar/ diante dela sentiu-se parte/ do Cinema Novo”. O amor nasceu e o mundo não se acabou. Cabernet Sauvignon é outro poema que poderia se organizar numa crônica, pois se passa num tempo e lugar definidos: um jantar com um casal de amigos. No clima uma certa tensão; o rapaz foi seu namorado na juventude desvairada e as lembranças “de um tempo em que amor livre não era pleonasmo”, estão em pauta na conversa. O vinho servido era um merlot argentino; ela prefere um cabernet chileno. A estrofe final repete a primeira, dando a impressão de que a situação pode se repetir: “um dia”.

Mania de colecionadora é um poema que diz muito da personalidade amorosa da poeta. O texto discorre sobre paixões de vários tipos, cores, perfumes, manias e que rolaram nos corredores da universidade ou nos pontos de ônibus. Paixões tão efêmeras quanto intensas. Em função das inúmeras experiências, ela compõe um guia para relacionamentos: “românticos escrevem cartas de amor infindas/ descolados te chamam para acampar em Trindade/ precipitados te levam para conhecer a família na primeira semana/ confusos somem por duas semanas/ e reaparecem como se nada tivesse acontecido/ desencanados trepam como ninguém/ mas não querem compromisso/passionais dizem que vão morrer sem você por perto”.

O poema Junto e misturado retrata bem esse amor de rolê. O texto fala do relacionamento entre dois seres desorganizados. Ela lida bem com seus atrasos e o esmalte descascado nas unhas. Ele diz não suportar esse desleixo dela, mas em sua casa, onde ela se encontra, há “uma pilha de louças pra lavar/ toalha molhada no sofá/ e no varal estendido um edredom florido/que não combina com nada”. Em meio a essa charmosa bagunça, ela se perde e se acha e se sente em casa.

Já em Do amor, os versos são, como o título sugere, sobre as relações mais marcantes. Poema tem cinco partes, cada uma dedicada a um homem negro que a poeta amou. Belo poema de versos bem elaborados: “o primeiro homem negro que amei/ não sabia que era negro/ mas a polícia sabia bem”. Amores fugazes que seguem o manual que ela criou em poema anteriormente citado. Incompletude se revela, mas não parece ter frustração. A poeta é resiliente e sempre tira algum proveito das paixões.

Viela mal iluminada é puro desejo sexual, a distância. O poema retrata o voyeurismo da mulher que observa o homem desejado se despir na casa ao lado numa pequena viela escura de quebrada. Um dos poucos poemas ambientados na periferia. Sedenta e seduzida, imagina possuir aquele homem num delírio de amor no Capão que nunca foi tão redondo. Ofuscados também fala de um tesão que não se converte em sexo. No texto, um casal de carne e osso se ama como dois corpos de plástico num quarto de madeira. Um poema de alta elaboração criativa no qual a relação é inviabilizada, ao que parece, pela arquitetura da casa em face da presença de outras pessoas no local, e a impossibilidade inibe os corpos a ponto de parecerem de plástico.

O traço mais recorrente nos poemas de amor de Jenyffer é a sofrência. Em Clichê ela se despede da casa em que habitava com um companheiro. No começo, viam graça em tudo: na tampa do bastão de creme dental que caia inúmeras vezes na pia, a faxina que terminava em banho de mangueira, da louça que se empilhava por preguiça, do amor que rolava enquanto na TV passava um seriado americano. Mas, com o tempo e a rotina, veio o silêncio e o amor acabou. Boêmia que é, a mesa do bar é o seu refúgio e é desse ambiente que surge Erro clandestino, um poema sobre um amor escamoteado: “a traição da boemia/ é deixar nos apaixonar/ por um coração só/ O copo vazio não é mais de quem chega/e sim, de quem se espera chegar”.

Presença-ausência é um surto provocado por uma ausência dilacerante. A composição se estrutura em três sentimentos: a) paixão: “amarra minhas mãos, venda meus olhos/ acorrenta minhas pernas, tapa minha boca/massacra meus desejos”; b) frustração: “Eu já me despi mais de 23 vezes/ bebi aquela garrafa inteira de vodka/mas você não veio/ você nunca chega”; c) desespero: “estou com sede/ estou com fome/ eu andei 12 km com uma faca na mão/eu enlouqueci”. Já em Por anos, meses e dias temos um poema sobre um amor em ruínas. Uma sofrência à moda antiga com intertexto de Lindomar Castilho: “Quantas vezes pensei em rifar meu coração?” A casa suja e desarrumada é a representação do amor decadente que se sustenta na incapacidade de dizer adeus: “há anos eu frequento essa casa/ até que vença o próximo aluguel/ até ruir a última gota/ que alguém descompensada como eu/ queira e possa chamar de amor”

Amor e revolução é uma crônica poética de um amor em estado de decomposição não anunciada. O amante é descrito como alguém de esquerda, intelectualizado. O intertexto é de Gabriel García Márquez: “reproduzindo cem anos de solidão/diante do pelotão de fuzilamento”. A poeta é de uma ironia fina: “da dialética/só me sobrou a antítese/ sem valor de uso/nem valor de troca”. Vazou, por fim, é um texto sobre o homem com quem se apaixonou e com ela se relacionava em segredo. Corintiano marrento, a levava no samba com feijoada. Era um amante que lhe deixava em chamas, mas sumiu quando ela engravidou. Amaldiçoou o traste, o Corinthians, o samba e a feijoada. Mas ficou a saudade.

O fluxo pela cidade, quase sempre noturno, presente em 13 poemas, se dá no Centro Expandido de São Paulo e no Rio de janeiro. A periferia não é um cenário para as andanças da poeta. Inspiração já define bem essa temática citadina da poeta e suas derivas insones: “a rua me dá caminhos, a noite sombreia meus passos”. Em Destino, ela vai de esquina em esquina na sexta-feira, solitária até chegar a manhã de sábado: “meu destino é o mundo”. Em Dama da noite, faz uma crônica da vida noturna: boemia na madrugada paulistana; perde as chaves; pretexto para ficar um pouco mais. Ela fica: “a madrugada manipula o tempo a seu favor”.

Já em Noite dos prazeres em mais uma crônica em forma de poema, ela discorre sobre o amor solitário em um quarto de hotel barato numa madrugada qualquer da metrópole. Em Rio-São Paulo, o cenário é na boemia carioca, especialmente a Lapa na qual circula como uma habituê. Namoradeira, rola um love. Sai de rolê: “subindo as escadas de Santa Tereza/ curar as mágoas bebendo cerveja”. São lembranças da estada no Rio que passam na mente na poeta na rodoviária enquanto espera o ônibus das 2 da madrugada: “a rodoviária é uma plantação de sonhos/ onde alguns voltam sem fazer a colheita”, filosofa a poeta.

A cidade é também palco para os encontros e desencontros amorosos da poeta. Não demora é dos mais interessantes e tem aquele traço de crônica que caracteriza o texto da autora. São cinco estrofes todas iniciadas por um mês do segundo semestre de um ano qualquer. Em cada mês um encontro em situações distintas: na escada do Metrô (um subindo e o outro descendo); na saída de um show do Racionais; uma ligação por engano; o aniversário de um amigo em comum; na fila do caixa de uma livraria, ambos com livros do mesmo autor, mas títulos diferentes, porém sugestivos: ela com O amor nos tempos do cólera e ele com Relato de um náufrago, ambos de Gabriel Garcia Marques, autor que aparece várias vezes no livro como intertexto.

Cabe aqui um comentário sobre esse aspecto da obra. Chama a atenção o fato de ela só citar escritores homens, todos brancos, inclusive quando menciona poetas periféricos. Hilda Hilst, Elisa Lucinda ou Conceição Evaristo são autoras que lembramos ao ler seus poemas, mas Jenyffer não faz menção alguma a elas ou qualquer outra escritora. Mas quando a citação é musical aparecem Clementina de Jesus, Clara Nunes e Elza Soares, além dos Racionais MC’s e GOG compondo um conjunto de referências mais relacionados à cultura negra que é tão marcante em seu livro.

Por meio dos poemas que classifiquei de reflexivos, é possível ter contato com o universo mais íntimo da poeta e entender muito de sua personalidade e da sua forma de fazer poesia. Em Pecado original a poesia é enfim a culpada: “a palavra é uma vadia/ que se deita com todo mundo/trepa sem camisinha/ e goza lá dentro/ e assim durante séculos e séculos/ nascem os filhos e filhas da palavra/ os poetas e suas poesias”. Igualmente diferente, por sua vez, trata das recorrências que fazem todos os amores serem parecidos, embora cada história tenha sua particularidade. Associa as relações à cadeia alimentar na qual não há rupturas, mas recomeços. Em Copo americano, expõe com habilidade a sua relação com a boemia: “passou o tempo/ passei da quinta garrafa/passa da meia noite/ passei da hora de ir embora”.

No poema Em cinzas faz uma reflexão profunda como as tragadas no cigarro que serve de ampulheta para os seus questionamentos íntimos. A poeta busca culpados, busca heróis, mas nada disso lhe consola, então pensa: “amanhã será um novo dia/uma nova ressaca/ um novo esbarrão em alguém/que passa apressado”. O cigarro apaga e, em cinzas, o poeta tenta dormir. Em Feliz Aniversário ela se conecta, enfim com a periferia, mas não consigo mesma. Não tem intertexto, mas poderia ter o verso da canção do Ira: “envelheço na cidade”. Sente falta das ruas do Centro, nas quais vivia “noites épicas”. Mas seu lugar é nas esquinas da Avenida M’Boi Mirim (periferia da zona sul de São Paulo), nas quais se reconhece nas pessoas e vira-latas, “todas caminhando no tempo do silêncio”. O dia passa, na manhã seguinte acorda às 7h e seu aniversário se foi.

Os poemas de combate são quase todos feministas e faz o engate com o livro de Michelle Lomba. Em Brasil com P de Puta ela faz uma releitura do rap “Brasil com P”, de GOG. Narra a saga das putas e seus sofrimentos: “poeira, portas pálidas/ paredes parecidas/primeiro pagamento/posteriormente/pau, porra, paulada/poucas palavras”. Mas quem é a verdadeira puta, é o Brasil que “chupa, abre as pernas e dá a bunda”. O grito é um poema em marcha, eloquente e engajado sobre a emancipação da mulher: “um grito denso, volumoso/ um grito ardido, de veias saltadas/ e hoje ele vai sair./O corpo é meu!” Carne de Mulher é sobre o corpo da mulher negra aos olhos da sociedade. Parafraseia Elza Soares: “eu não sou a carne mais barata do mercado” na canção A carne de Seu Jorge, Marcelo Yuka e W. Capellette. A louca da casa é um texto contra a hipocrisia, recalques e a mesmice: “não olho para trás/ não dou satisfações/questiono as convenções/daqueles que se arrastam na rotina”.

Ventre livre é sobre a resistência e a existência de quem é livre e derruba todos os rótulos impostos. Ela lista 14 deles, formando um glossário do machismo crônico. Alguns verbetes: “estúpida: se tiver opinião própria/ desocupada: se gostar da rua/ piriguete: se usar roupas curtas/ piranha: se tiver vontade própria/ vadia: todas as opções anteriores” (…) “que os punhos permaneçam cerrados” convoca a poeta liberta e libertária. Antítese diz quem é em oposição ao que queriam que ela fosse. Em 14 estrofes de dois versos, sendo um a afirmação e o outro a contradição. É um manifesto de independência como sentencia a última estrofe: “cagaram mil e uma regras de conduta/eu mandei pra puta que pariu/ e sorri feliz”. Desensinamentos é um poema manifesto sobre a tomada de consciência da mulher preta: “Então um dia/outras mulheres negras/ das mesmas fileiras que nós/nos ensinaram que tudo que havíamos aprendido/ era uma grande farsa/ foi quando aprendemos a lutar”.

Raízes é o texto no qual es o verso que dá título ao livro. Seis estrofes com seis versos cada, cujos dois primeiros se repetem em todas elas: “chão de terra? Terra preta”. No terceiro verso o tema de cada um: “preta é tua pele”; quebraram-se as correntes”; “amanhece”; “fértil”; “uma descendência inteira”; “; “temperatura não cessa”; “arada”. Poema de exaltação das origens africanas da poeta e do seu povo, sem que a África seja mencionada. O recorte de raça está presente também no poema Menina bonita sem laço de fita que é sobre a menina negra que alisava o cabelo: “ainda não percebeu/ ao alisar seus cabelos/alisa também seus crespos sonhos/os deixando sem brilho/sem forma definida”. Mas que na sexta-feira se vestia de branco: “vivendo a ancestralidade/essa não pode negar”. Finalmente, Fragmentos do eu apresenta síntese da personalidade da autora: liberdade, prazer e loucura.

Pele para nossos corpos

O livro de Michelle tem exatamente a metade do número de poemas publicados por Jenyffer Nascimento. Os 40 textos são quase todos de combate e feministas, mesmo os que, aparentemente, falam de amor, “só que não”, como alerta a Dinha, poeta, editora do livro e autora de um dos posfácios. O livro fica monotemático, mas, aguerrido e criativo que é, não fica nada monótono e nem dá a sensação de que lemos um libelo. A autora, artista de teatro, sabe diversificar a forma e a estrutura dos poemas, fazendo do texto, um experimento estético, bem resolvido, para além do apelo político extremamente relevante que a obra carrega. O projeto gráfico incorpora fotos da intervenção cênica “Nós” agregando uma iconografia que confere ainda mais ênfase ao livro que é muito instigante.

O tema da violência contra mulher, especialmente no ambiente doméstico é o mais recorrente. NÓSobreNós trata das violações sofridas pelas mulheres, mas também de resistência e sororidade. Enfatiza a afirmação por meio do recurso do questionamento. Faz um trocadilho com a palavra nó e o pronome nós: “quantos nós, mulheres há em nós?”, recurso também utilizado pela Neide Almeida no poema Nós que dá título ao seu livro já analisado nesta coluna (dezembro/20). Em Eu ela trata da violência doméstica de forma direta. Poema com viés teatral para um monólogo. Em texto corrido, um único parágrafo, cinco páginas formando, graficamente, um bloco como se tem fazendo uso do recurso “justificado” do word. Numa intensidade perturbadora expressa o desespero de uma mulher casada sofrendo violência do marido, mas aceitando-a, aparentemente, em nome da família, da igreja e da crença de que ele é um homem bom que a ama, “que não deixa faltar nada em casa”.

Vida de mulher é uma sequência de violências: domésticas, simbólicas, morais, psicológicas, verbais, físicas, sexuais, violências… Em Que dia é hoje? enumera uma série de estatística sobre violência contra as mulheres, desde a chegada dos portugueses. Denuncia os algozes: Marido, noivo, namorado ou ex – marido, ex-noivo e ex-namorado. “Quer casar comigo?” é o verso final do poema que, em face do que foi denunciado, adquire um tom irônico. Só por hoje parece um poema de amor: “eu que não sei mais ficar sem você”. Ela, porém, está prostrada: “dias de cama de dor de desamor”, dando a entender que foi vítima de violência doméstica. Mas a mulher, tem de encontrar forças para levantar, afirma os versos finais em tom sarcástico. Medo é sobre a tensão e aflição da mulher que teme o marido. No final, os versos dão a senha para sair dessa agonia: “medo não é amor/você conhece a Lei Maria da Penha?” Em Recado a um agressor a poeta com sangue nos olhos, adverte o agressor de mulher: “tua sentença chegará/ a justiça prevalecerá/não levará minha dor/ mas será exemplo contra outro agressor”.

Se comporta mulher é uma listagem de determinações que pesam sobre as mulheres: seja submissa/lava, passa, cozinha/ se dê o respeito/não retruca/ seja virgem…” E termina irônica: “porque a culpa mulher? Ah, essa é toda sua, MULHER…”. Em Caça casa na primeira parte do texto relaciona diferentes tipos de casa, da taipa à mansão. O texto é dividido pelo verso: “Casa comigo?”. Na segunda parte, dentro da casa, outras questões: traição, amarração, submissão, desunião, grito; “rosa, só na imaginação”. O príncipe (conforme o tipo de casa): “carrega carroça, carrão, cachaça e canhão”.

A violação que incide sobre as meninas adolescentes é tema de dois poemas. Menina aborda a exploração sexual de crianças. O contraste da menina a quem se pede que seja delicada, lisinha, educada, mocinha, que fique em casa…. “para os machos abusar…” Garotas é sobre a exploração sexual de adolescentes: “aquele dono da mercearia/ tem filho até com a própria filha”/ “naquele lugar tão distante/que nem nome a rua tem/ pra eu discar 180/a polícia nunca vem”. Já Moleca é sobre a jovem emancipada que toca o tambor na cadência da luta.

Outros dois poemas tratam dos adolescentes infratores. Acaso? começa com mais um corpo estendido no chão: “12 anos apenas tinha o menino”. A relação da adolescência com o crime: “cheguei nus 15, tô no lucro/Faze 18 é quase milagre. Pobre não sente, só vive/não pensa, trabalha”. Aí vem outros problemas que afligem o povo periférico: “escola pública quebrada/transporte abarrotado/ falta do alimento na mesa”. Lista inúmeras outras “faltas” e termina com a falta de formação crítica (escolar) que ajudaria o povo a pensar. Aquele garoto é sobre os meninos em conflito com a lei e a Escola e o desafio para o professor lidar com esse menino: “você sabe quantos anos eu tenho?/quantos amigos eu perdi?”

Em Pelos becos a autora abre sua lente para um contexto mais amplo de violências nas periferias. Começa com o registro de corpos mortos nas vielas de vários fundões da cidade de São Paulo. “Preto pobre/ comemora mais um dia/ sem levar tiro da polícia”. O poema muda da metade para o fim, embora o contexto permaneça o cotidiano da quebrada: “A mãe preta sai pro trabalho/ Sem saber se as crias viverão mais um dia”. E segue o perrengue da empregada doméstica explorada pela patroa. Em Mais um dia, ela amplia seu repertório de tragédias. Tudo se passa no 14 de março (2018) dia da morte de Marielle Franco. A data é repetida como anúncio de sucessivas tragédias ocorridas naquele dia: professora reprimidas pela polícia, xingadas por políticos. Uma mulher foi morta pelo marido policial em algum lugar do país. “14 de março, aniversário de Carolina, aquela de sobrenome Jesus”. 14 de março, seis dias após o dia em que as mulheres recebem flores, lembra a poeta indignada.

Há um conjunto de poemas em que a autora aponta caminhos para o enfrentamento dessa situação. O primeiro é Mantra da manifestação no qual o verbo manifestar aparece conjugado em vários tempos: manifestais/manifestemos/manifestamos/manifestará… Em 180 o título se refere ao número telefônico para chamar a polícia. É uma sequência de grupos sociais nem todos vulneráveis: indígenas, pretas, LGBTQIAP+, burguesas, a esquerda, a direita… “E termina: coragem/grite/lute/denuncie”. Em Todo direito coloca em foco a defesa e garantia de direitos. Um poema para ser lido de punho erguido e que atualiza as bandeiras do feminismo abarcando as demandas das mulheres mais pobres. Para você que pede a volta da ditadura é um poema impresso em bloco com texto corrido, em caixa alta, sem pontuação, mas que traz muita munição verbal contra os reacionários que tomaram o poder no Brasil. Finalmente, em Vote volta ela anuncia uma estratégia para superar muito do que denunciou. Em 2022: “vote pela democracia/volte democracia”.

A experiência da dor que dilacera o corpo e a alma da mulher e do povo pobre da periferia de modo geral é o sentimento predominante no livro. O poema Feridas enumera as chagas: “Culpa/dor/angústia/insegurança/medo….” (…) “Feridas não cicatrizadas/ peles para nossos corpos”, completa o verso revelando o sentido do título do livro. A reflexão segue no poema que enfatiza a dor com o recurso da aliteração: Dolorida dor doída que faz uma reflexão sobre o destino das dores do mundo: quanta dor há no abraço/ na despedida/nas celas/na morte/ na vida…”

Para não dizer que a poeta não falou de flores, há o poema Cultivo no qual as flores estão: “no corpo, no caixão, do campo, paixão. Tatuadas no coração/O que é amor?”. Ela mesma responde no poema Amor que é um tratado sobre o amor que idealiza: “amor respeito/amor reflexão/amor amado/amada amora”. Em Ser, ela se afirma: “Independente dos desejos alheios/ prevaleça meus desejos” E escreve o decálogo do eu: “me amar/ desejar/cuidar/mimar/gostar/admirar/presentear/acariciar/deliciar/ me escolher”. Essa redescoberta do eu segue em Noturna: “descobrir-se/ transformar-se consciência/ ação-manifestação-revolução”. E se completa em Transformação: “borboletas a borboletar”.



O corpo é meu!

Em Feminista aos 30, Michelle Lomba apresenta a trajetória marcada por violações que incidem sobre uma mulher subalternizada. O texto narra o processo de tomada de consciência: aos 8 foi assediada, aos 12 molestada, aos 16, pressionada por ser virgem, aos 19 teria optado pela faculdade e não pelo noivado. Durante os 20, teria terminado o namoro quando foi insultada; teria reconhecido um relacionamento abusivo; não seria estuprada no casamento. Mas aos 30 conheceu o feminismo e se libertou. No poema ela demonstra que o corpo é o terreno da violação, mas também de resistência e libertação.

Jenyffer Nascimento em O Grito, também fala do feminismo como um código que decifrou tardiamente: “Feminismo?/ Não sabia nem o que era/ e mesmo antes de saber/ o grito já estava lá/ sempre esteve/sufocado”. Nesse poema longo e eloquente ela enumera as violações históricas por que passam as mulheres e as sacanagens cotidianas como a “encoxada matinal no ônibus”. Lamenta ver as mulheres mortas que vagueiam na multidão. “Mas há também as mulheres que lutam/ no vai e vem da marcha cotidiana”. É esse levante feminino que amplificará o grito: “o corpo é meu!”. Esse corpo “materno, casado, caçado, cansado” de que fala Michelle em Corpo Feminino, abrigo de dores individuais e coletivas tem como pele, as “feridas não cicatrizadas”, acrescenta a autora no poema Feridas. Carregam “o corte e a cor”, citando mais uma vez Luedji Luna. Um corpo que Jenyffer diz ser “um território livre/ sob dominação”.

A emancipação desse corpo nos remete à ideia de conquista do território, lugar que guarda a história e a ancestralidade mística no qual “todo dia o sol levanta/ e a gente canta/ ao sol de todo dia” (Caetano Veloso – Canto do povo de um lugar). A ideia de corpo e território são indissociáveis. As autoras nos fazem perceber essa conjunção nos seus poemas que são “desensinamentos” no sentido que Jenyffer defende que é o de subverter a história que foi contada e que servia para perpetuar a submissão das mulheres. No poema que tem como título esse neologismo, ela aponta que ao tomar consciência de sua verdadeira história “foi quando aprendemos a lutar”.

A poeta Dinha diz no posfácio do livro de Michelle que “como mulheres que somos, estar viva é, em si, um ato de resistência”. Angela Davis acrescenta: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Essa frase pronunciada em alguma conferência da autora e ativista estadunidense ecoa como mantra que inspira a luta das mulheres trabalhadoras pelo mundo. Que seja o “mantra da manifestação” poema de Michelle Lomba que diz: “acima do medo a coragem/ Manifestantes manifestem-se”. O corpo é seu!


1 Com formato 18 cm x 18 cm, o livro tem 167 páginas. A edição está a cargo da poeta Elizandra Souza e da Carmen Faustino que fazem os textos de apresentação e é assinado pelo Coletivo Mjiba que veio a formalizar sua editora anos depois. O projeto gráfico é de Nina Vieira e a capa de Lucimara Penaforte. Deyse Oliveira, encarregada da revisão completa o bangue só de mulheres, como tem sido as edições do Mjiba. Na capa, uma das orelhas tem uma foto (do Guma, exceção masculina no livro) da autora acompanhada de uma minibiografia na qual ela destaca sua origem pernambucana, seu contato com a poesia por meio dos saraus e seu amor por sua quebrada e pelo Rio de Janeiro.

2 O formato do livro é tradicional: 14 cm x 21 cm e tem 102 páginas. A edição, projeto gráfico e revisão é de Dinha ( Maria Nilda de Carvalho Mota) que é editora do Selo Me Parió Revolução. A apresentação é da atriz e ativista feminista Fernanda Azevedo e os posfácios são assinados pela Dinha e educadora Ligia Helena Almeida. “Poemas de Mixa” é um subtítulo da obra e a forma como a autora costuma se apresentar e enfatiza essa alcunha na sua nota biográfica na orelha do livro.

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