Por trás das paredes, um choro solitário. De quem?
Todas as noites, sentada sob o chuveiro, ela ouve os mesmos sons, dolentes, atravessando as águas como um pedido íntimo de socorro. Decide atender esse pranto e descobrir de onde ele vem. Mas que encontro se esconde no edifício que habitamos?
Publicado 02/05/2022 às 17:35 - Atualizado 03/05/2022 às 08:40
Por Roberta Traspadini | Imagem: Cecília Aglieli
Título original: “Entre multidões, um choro solitário. De quem?”
Maria José (Zezé) morava com sua filha Rose no apartamento 707, da rua 7, do bairro Setembro, no edifício Master. Um edifício histórico por ser populoso, vazio e silencioso de dia, dado que abriga homens e mulheres que transitam no ir-e-vir do trabalho pela cidade ao longo da jornada diária. Mas, à noite o Master é iluminado, barulhento – muitos sons de TVs, conversas diversas, músicas – e, ainda assim, em meio ao som, reina a solidão. Mesmo em casas com cinco moradores. Cada um, uma, habita um mundo pela tela, sem tempo para reconhecer o dia a dia daqueles e daquelas com quem vivem e, cada vez menos, convivem.
Nos dias que trabalha no turno corrido, Zezé chega exausta. Rose tenta cuidar das duas pela manhã, quando tem tempo de deixar a comida preparada para quando cheguem, cada uma em seus tempos e ritmos, dado seus diferentes ofícios. As duas se cruzam pouco na casa. Quatro vezes na semana a rotina de Zezé, aos 50 anos de idade, compreende uma jornada completa de 36h para 8h de descanso, dividindo a labuta do dia, parte como enfermeira e outra como cuidadora de idosos.
Chega sempre depois das 22h50min. Primeiro come, toma um copo de leite morno com açúcar queimado ao fundo, depois se dirige ao banheiro para cumprir com todas as funções do autocuidado feminino.
Zezé criou o hábito, fruto da exaustão, de sentar no piso do box e deixar a água fria cair no dorso cansado, cuja curvatura à remete ao passado das mulheres negras, ex-escravas, de sua família. Herança que, na pele, nas mãos e na rotina do trabalho, segue viva como pesar, tortura, cansaço, obrigação. Zezé, nunca aprendeu a tirar do trabalho satisfação, gozo, desejo. Para ela o dinheiro ganho pela necessidade não tem relação alguma com o sabor, a felicidade por fazer o que gosta, porque quer, como, quando, e pelo tempo que deseja.
Todas as noites em que repetia essa rotina Zezé ouvia um choro sentido, longo, que vinha de algum apartamento, imaginava ela, próximo ao seu. Parecia vir de baixo, ou de cima, pela proximidade e vivacidade do “llanto” (choro).
A tristeza era tanta e tão constante que a fazia esquecer o cansaço, e esforçava-se para tentar ouvir mais de perto os sentidos daquele solitário soluçar vizinho. Parecia tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. Tão seu e no entanto pertencente a alguém que sequer conhecia.
Meses depois de manter essa rotina de afinidade na dor, no silêncio quase único de um lugar barulhento, na hora em que a maioria descansa, Zezé resolveu investigar sobre quem seria o/a protagonista desse “llanto”.
Pela manhã bem cedo, aproveitou que seu Manoel – o zelador do prédio há mais de 20 anos – estava ainda debruçado em seu radinho de pilha, o qual, dizia ele, nunca o deixava na mão, como os modernos celulares – e, após lhe oferecer um cafezinho fresco como de costume, perguntou quem eram seus vizinhos recentes dos apartamentos 607 e 807.
Manoel explicou que no apartamento 607 moravam três jovens estudantes da universidade, que tinham entre 18 e 20 anos, vindas de diferentes partes do Brasil. E que ele achava curioso que, em vez de dormirem, às noites eram para elas “trabalho duro”. Zezé logo entendeu o que ele quis dizer com isso. Portanto, insistia ele, entre às 20h e as 02h da madrugada o apartamento estava quase sempre fechado.
Seguiu no detalhado relato de quem tem conhecimento de causa sobre a vida dos mais de 500 moradores dos 276 apartamentos do edifício em que fora contratado para zelar. Insistia que as meninas vindas de outras partes, pareciam dividir o dia a dia entre o mundo do estudo e o submundo oculto da vida noturna. E que sempre chegavam tarde, com os olhos vazios de vida, e algumas horas após a chegada saíam com os livros nas mãos e aspectos de meninas cansadas de tanto “estudar”. Mas às noites, reforçava ele, o apartamento delas estava, na maioria das vezes, vazio. O mesmo não podia dizer de seus corpos.
Já o apartamento 807 era a morada de D. Dalva. Uma antiga estrela do cinema que mantinha viva a chama da alegria, das amizades e das músicas dos anos 1970 que a acompanhavam ao longo do dia, enquanto insistia em abrir a porta e saudar quem passasse com passos de danças de corpo colado, em uma imaginada companhia que nunca preenchia seus braços vazios. Mas a música que ecoava do seu andar diariamente como um ritual de passagem eterna era um hit dos anos 1970 de Chico Buarque: Será que será. Gritava Dalva extasiada:
…O que será, que será?
Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos
Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido…
Manoel reforçava os encantos de Dalva com os animais, as plantas e as pessoas. Mas que vivia sozinha, empobrecida, e que sempre chegavam contas a pagar, cartas de protestos em juízo de velhas dívidas em novas fases de juros. E terminou o relato da moradora do 807 com a seguinte frase: – A estrela perdeu o brilho ao envelhecer. Ficou sozinha, endividada, mas segue dançando e cumprimentando o mundo à espera de sua hora de juntar-se às outras estrelas. Aquelas, sem dívidas, que verdadeiramente brilham sem dever nada a ninguém.
Zezé teve a sensação pelo relato de seu Manuel, que era a Estrela Dalva a dona do choro. Resolveu, então, no dia seguinte, espiar mais de perto a situação. Às 23h sentou no box e ouviu o choro que vinha, segundo ela, do apartamento 807.
Subiu correndo as escadas até o apartamento e tocou, sem titubear a campainha. Uma, duas, três, até que na quinta vez, a Estrela Dalva atendeu assustada, toda amassada, com o corpo quente da cama. Zezé pediu desculpas, disse que havia errado de apartamento. Dalva, sorriu, fechou a porta e voltou ao seu universo solitário.
Assim que chegou, voltou ao box e abriu o registro, o choro permanecia vivo, cadente e muito presente. Aquilo a deixou atônita. Como pode ser? Parece que está grudado na parede, como se pudesse tocar aquele corpo, sentindo o choro.
O tom investigativo tomou conta de sua rotina quando estava em casa. Já nem descansava pensando em aumentar seu campo de irradiação da vida em busca da protagonista do choro. Zezé já entendia que o som era feminino, em sua identidade de gênero da dor.
Mas não queria ouvir mais de seu Manuel sobre a vizinhança, pois isto abriria margens para ele questionar sobre tal interesse. Resolveu então, no silêncio da noite, passear pelos andares 06, 07 e 08. Ficou praticamente um mês envolvida nesta vereda sherlockiana. E nada, simplesmente nada, lhe permitia aproximar-se do som. Exceto quando chegava no seu box, abria o seu registro e deixava a água cair no dorso.
Em um domingo, feriado de 7 de Setembro, desceu do sétimo andar após dar uma geral na casa, dado que estava de folga da labuta do cuidar, e resolveu tomar um pouco de banho de sol do lado de fora do edifício. Levou sua cadeirinha de praia e, antes de fechar os olhos, avistou um gato preto no andar em que residia.
Fechou os olhos e começou a ouvir os sons do abrir e fechar daquele prédio, morada de um mundaréu de gente. Para cada som, imaginava um tom de pele, um sentido de vida, um suspiro de canto para ver se, por acaso, alguém silencioso se apresentaria para ela como a dona, daquele pranto, canto, santo.
Na sétima batida de portão, abriu os olhos para ver se era o som produzido por uma mulher silenciosa como imaginara, em seu exercício de sensibilidade com os olhos fechados, criando cenários fictícios de uma realidade que bastava abrir os olhos para ver. Riu sozinha quando viu que havia saído do prédio um senhor de aproximadamente 77 anos, magrinho, de bengala, cheirando um pouco a alfazema, outro pouco a leite de rosas e assoviando Adoniran Barbosa:
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas…
De repente seu riso foi interrompido por um toque no ombro. Uma mulher a cumprimentou e perguntou se podia lhe fazer companhia no banho de sol. Zezé disse que sim, claro que sim. Sentou. E ficou muito tempo em silêncio. Até que criou coragem e disse:
– Me chamo Juana e gostaria de lhe fazer uma pergunta: você é a moradora do 707?
– Sim, respondeu Zezé.
– Ah, que bom!
E voltou a reinar o silêncio entre elas até que Juana voltou a dizer:
– Vivo no apartamento 708 e escuto todas as noites um choro que vem da sua casa, do seu banheiro. Gostaria, portanto, de te presentear com a chave de onde vivo, para que uses quando necessitar.
Zezé tomou um susto, arrepiou-se toda e disse:
– Choro, da minha casa?
– Sim. E continuou Juana: há anos ouço esse eco vindo de uma parte do edifício e resolvi, angustiada, fazer algo para ajudar, porque senti um som de dor, de solidão, de abandono. Mexeu tanto comigo que parei de comer e de dormir pensando na dona deste som. Demorei mais de sete meses para conhecer cada família, pessoa, do edifício Master. Até que cheguei em você e sua filha. E tenho a certeza absoluta que o choro diário, noturno, após as 23h vem da sua casa. Como sei? Porque pedi ajuda à sua filha – quem trabalha no turno da noite e portanto não ouve os prantos cotidianos da mãe – e coloquei um celular como escuta no seu banheiro, para saber se de fato era de lá o tormento, a dor, o canto, o lamento.
Juana não deu tempo de reação à Zezé, somente insistiu que não ficasse sozinha, e que contasse com ela. Zezé achou tudo muito insano, louco mesmo. E resolveu trabalhar mais dias na semana fora de casa, para sair daquele processo de loucura anunciada.
Certo dia, intrigada com a situação, aproveitou que dobraria o turno na casa de seu Alcebíades, um senhorzinho generoso de quem cuidava há mais de sete anos, e, às 23h resolveu tomar um banho. Sentou no box e ouviu o mesmo choro numa casa sem apartamento embaixo, nem em cima. Zezé então entendeu que outra pessoa a acompanhava. Mas não sabia ainda quem era e do que se tratava. Em momento algum teve medo, pois sabia, após anos como cuidadora, que o cérebro pregava peças. Disse para si mesma que estava tão habituada com aquele som, que o mesmo já integrava sua rotina noturna, onde quer que ela estivesse.
Meses depois, preservadas as noites de choro que habitavam sua vida, e na dúvida sobre seu estado emocional, sanidade ou loucura, resolveu conversar com Dra. Bibiana, filha de seu Alcebíades, uma psiquiatra renomada da cidade. Dra. Bibiana tornou-se uma pessoa próxima, após tanto tempo dedicado como cuidadora de seu pai com zelo e profissionalismo. Zezé falou com ela sobre a situação de uma suposta vizinha. Bibiana, com vasta experiência no ouvir e no silenciar, dando pistas a mais para o ouvir conduzido, sabia que Zezé falava dela mesma.
Ao final do narrado, Bibiana disse: – Sugiro que vá tomar um banho, descanse um pouco, e daqui há uma hora eu te acordo para voltarmos a conversar. Após Zezé entrar no banho, Bibiana ouviu o choro derramado. Era um chamado da memória, sentido, solitário, contínuo e tristemente encarnado no corpo presente para quem via a cena, mas ausente para quem a vivia. Entre o olhar atento de Bibiana e o sofrimento angustiante de Zezé, corria um mundo de emoções cruzadas na saga de mulheres que vivem entre muitos mudos muros.
Bibiana não era, naquele momento, somente uma psiquiatra exercendo seu ofício. Talvez por isso, tenha chorado ao deparar-se com o corpo esparramado, aos prantos, de Zezé no box da casa de seu pai. Suas histórias pareciam ter um mesmo enredo apesar das diferenças. Sentia-se tão própria aquela cena, que demorou um pouco a recobrar o fôlego para tentar ver a cena estando do lado de fora do ato.
Quando voltaram a conversar, Bibiana pediu a Zezé que contasse sua história começando pelo que se lembrava da infância. Zezé comentou que o único episódio que se lembrava, mas que achava ser uma invenção de sua mente, era a de estar sozinha à beira de um rio, com uma senhora sentada em um barco dando adeus. A criança parecia ter sete anos. Lembra da mãozinha estendida e do choro. Nada mais. Bibiana pede para que ela diga porque gosta de ficar sentada no box ao tomar banho. Zezé responde que não sabe, mas que tem medo do rio e do mar. No entanto, quando a água do chuveiro cai sobre seu corpo, é como se ela não estivesse vivendo o presente. Bibiana a leva ao banheiro, pede para ela se sentar no box, abre a ducha e Zezé começa a chorar deitada, como uma criança na primeira infância.
A água lava, leva, louva as dores do corpo e da alma desta mulher. Mas basta fechar os registros para que tudo volte a ficar contido, reprimido, apagado do cotidiano. Esse sentimento represado do lado de dentro do corpo, no conjunto desequilibrado daquela sentida alma, extravasa quando a água corre. Mas quando a água está parada a vida segue seu fluxo, sem mar, sem rio, sem pranto e sem memória. Aos se fecharem os registros apenas reina o espanto.
Ao menos em uma das sete vidas de Zezé o fluxo do rio, e a vida que por ele passou/passa, apresenta-se no contínuo refluxo soluçado no box do apartamento 707, todos os dias, após as 23h. Um gato preto continua na janela do sétimo andar.
No edifício Master, apartamento 707 mora uma mãe, cuidadora, enfermeira que, nos períodos da noite, enquanto se banha, revive uma história de abandono ocorrida há 43 anos, quando tinha apenas sete anos de idade e ficou sozinha frente a uma imensidão de água.
Profundo e leve.
Pois é leveza que colhe os suspiros que ecoam das lágrimas que banham as dores do corpo, das perdas, do canto que ressoa da solidão. Própria na maioria de mulheres sozinhas.
Lindíssimo.
Obrigada Querida Roberta.
Não sabia da beleza de sua poesia.
Tocou em mim. E eu passe a te amar ainda mais.
Nos faz refletir os nossos abandonos e traumas, pela imposição de resistir. As feridas ficam apenas ocultas na alma. Que texto incrível!
Sensível.. Lindo!