O que é fracassar num tempo de culto ao vencedor

A comédia Granizo explora duas noções que, na contemporaneidade, parecem até se confundir, mas cuja disparidade pode gerar ferrenha agonia: o sucesso e a felicidade. Mas, afinal, quem é o implacável juiz de nossas histórias de vida?

Guillermo Fancella como o meteorologista Miguel Flores, no filme Granizo (2022), de Marcos Carnevale
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Título original: Fracassar na época em que impera o sucesso

Em sua obra O mal-estar na cultura (1930), diante da pergunta “o que os seres humanos esperam alcançar em sua vida?”, Freud não titubeia em responder: a felicidade. Provavelmente, hoje a felicidade ainda permaneça sendo um dos objetivos mais ansiados em nossa sociedade, mas nesse horizonte surgiu algo como um concorrente que parece rivalizar pela primeira posição no pódio. Sua identidade por vezes se confunde com a do competidor até então invicto, porém os traços de sua personalidade nos mostram existir sensíveis diferenças entre um e outro. Estamos falando aqui daquilo que é conhecido como sucesso.

O sucesso deve ser entendido, aqui, como triunfo, como vitória. Todo sucesso é uma vitória em alguma disputa. Por esse motivo, o sucesso implica ao menos três envolvidos: dois concorrentes e um juiz. Em uma corrida de maratona, nos sentimos à vontade para distinguir facilmente dois ou mais concorrentes e um ou mais juízes, mas as dificuldades começam a aparecer quando tentamos aplicar essa estrutura de disputa em nossa vida cotidiana.

O discurso do sucesso ou do triunfo é mais comumente reconhecido na vida profissional. A vitória pode se manifestar pela promoção a um cargo de gerência, pelo aumento de salário ou mesmo pelo reconhecimento de suas competências diante de seus pares. Os concorrentes podem ser aqueles que também disputam o cargo de gerência, mas o próprio competidor pode ser seu rival quando se compara com sua posição no dia anterior. Trata-se daquilo que ficou conhecido como “superar-se a si mesmo”. O profissional encontra-se em constante rivalidade, senão com outros profissionais, pelo menos em relação a si mesmo. Por outro lado, os juízes são, em sua maioria, aqueles que decidem pela promoção ou pelo aumento de salário – como os gestores e os superiores –, mas o próprio profissional pode assumir a função de juiz de si mesmo, principalmente quando se trata de acusar e condenar.

O maior temor de quem busca o sucesso é alcançar o fracasso. Alguns discursos sobre o tema tentam significar o fracasso enquanto etapas no caminho para o sucesso, indicando o aprendizado que pode ser extraído dessas diversas quedas e que pode ser utilizado para se alcançar o objetivo almejado. Entretanto, pouco ou nada se fala do fracasso que pode motivar, fundar ou inaugurar essa busca desesperada pelo sucesso. O filme argentino Granizo (2022), dirigido por Marcos Carnevale, de maneira docemente trágica, nos situa na trajetória desse entendimento. A partir daqui, se você não assistiu ao filme e não gosta de spoilers, sugiro interromper sua leitura. Não pretendo fazer uma análise exaustiva do filme, e sim destacar algumas sequências marcantes para nosso tema.

Na primeira cena após o aparecimento do título do filme, nosso herói, o meteorologista Miguel Flores (interpretado pelo brilhante Guillermo Francella), se prepara para a estreia de seu programa televisivo sobre previsão do tempo escutando a música Felicità, da dupla Al Bano & Romina Power. Miguel Flores se encontra em estado de êxtase diante da coroação de seu sucesso. Notem que felicidade (música) e sucesso (estreia de seu programa) se sobrepõem nessa cena, o que nos levaria a questionar se, ao invés de rivais, o sucesso deve ser entendido como uma das modalidades da felicidade – deixarei essa questão em aberto.

Miguel Flores não é uma farsa. Ao contrário de outros apresentadores, nosso herói cursou uma faculdade de meteorologia e fundamenta suas previsões no estudo de mapas e nos dados fornecidos pelos satélites. Portanto, Miguel Flores é a imagem de quem alcançou um triunfo legítimo e merecido. Entretanto, sua ambição está ancorada em uma tragédia: a morte de sua esposa por um raio. Atormentado por esse episódio e movido por um sentimento de culpa, Miguel decidiu nunca mais falhar em suas previsões. Suas façanhas levaram-no a atribuir a si mesmo a alcunha de “infalível”, que encobria justamente o seu reverso: aquele que falha, aquele que falhou, aquele que fracassou. Miguel havia fracassado em sua promessa inconsciente de proteger sua amada esposa. Assim, esse fracasso passado estava na origem de duas situações presentes que se lhe opunham: a alcunha de infalível e o sucesso ou triunfo profissional.

A história do fracasso que inaugura uma ambição, no entanto, pode ser regredida mais ainda. Quando criança, Miguel Flores viajava com seu pai durante seus dez dias de férias. Esse período de férias coincidia com a época do verão, e alguns desses verões foram marcados por chuvas ininterruptas, prejudicando a viagem de pai e filho. Ao vislumbrar o abatimento do pai diante das férias arruinadas, Miguel Flores desenvolveu o desejo de controlar o clima. Dessa maneira, seria capaz de impedir as chuvas durante as férias e contemplar a felicidade estampada na cara de seu pai. Foi diante das férias fracassadas de sua infância que em Miguel Flores surgiu um desejo que, futuramente, o levaria a ser um meteorologista de sucesso, um meteorologista infalível.

O sucesso de Miguel Flores, quando adulto, se mostrava em duas direções. Primeiro, porque se destacava entre os demais meteorologistas, passíveis de fracassar em suas previsões. No entanto, o principal rival de nosso herói não é outro meteorologista, e sim a previsão climática fornecida pelos aplicativos de celular, considerada, por ele, sempre falível. Segundo, porque era capaz de, com suas previsões, controlar a natureza ou, melhor dizendo, antecipar seus próximos passos, o que o colocava em uma posição confortável para orientar a população sobre como se preparar para o tempo no dia seguinte.

Os triunfos de Miguel Flores levaram-no a acreditar em sua suposta infalibilidade. No entanto, o meteorologista já havia anteriormente fracassado duas vezes: como filho, diante de seu pai, e como marido, diante de sua esposa. Agora, diante de sua filha, por conta da distância, fracassava como pai. O mais importante não é avaliar se Miguel de fato fracassou – como é possível que um filho ou marido fracasse por não conseguir controlar o clima? –, e sim de que maneira esses dois eventos – ruínas das férias com o pai e morte da esposa – marcaram sua relação com o fracasso e com seu desejo. Se Miguel Flores havia se tornado infalível em sua competência para prever o clima, então aqueles dois fracassos eram de sua inteira responsabilidade. Ao se submeter a um imperativo de sucesso, Miguel Flores permanecia incapaz de compreender que, às vezes, nos resta somente lamentar pela tristeza estampada no rosto do pai e chorar pela abrupta partida da mulher amada.

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