Airton Paschoa: Com estilete e esperança

Em sete peças curtas, o balé da vida: das cantigas de roda ao amar, curtir e compartilhar em ilhas. O cenário: mundo que se despedaça e re-encanta, o sangue lusco-fusco e a promessa de novo dia raiar, onde “é impossível evitar o leve tremor”

Imagem: Wayne Thiebaud, Waatlemoen en mes (1989)

Museu de cera

.

Meu avô ouvia no rádio Vicente Leporace.
O avô do meu neto assistia Artur da Távola na TV.
Um falava de política, outro de música clássica.
O neto, mudo, não vê nem ouve.
Curte, ama, compartilha, ilhado.

O cubo ao quadrado

Dentro do cubo rola a culpa.
A culpa da culpa da culpa…
Que culpa tenho eu?
Sobe e desce, com os ombros.
Rio abaixo, rio acima.
Que culpa temos nós?
Interrogo o pai, o filho e espirro.
Seis, o cubo cai.
A manhã nasce fria feito sala de IML.
O peito palpita e não pode palpitar.
As solas de borracha apagam os passos.

Andantino

Riscam, coriscam, cãibra!
O caco de luz, o corte de azul, o sangue do lusco-fusco.
E os olhos fechados e a respiração flechada.
Respiro fundo e passo.

Sismo

Quando apagamos a luz
e nos damos as costas
o leito se abre e rolando vai
cada qual no seu abismo.
Claro que retornamos
e o novo dia vai raiar
e você vai rir e ralhar
e tornar a dormir e acordar. Mas

é impossível evitar o leve tremor.

Parede

Estranho. De tão belo o balé evocava a infância. Foi o que disse à repórter que o entrevistara. A prefeitura distribuía sopão cultural à população faminta de beleza. Num desses pontos estarrecia de emoção com o corpo jamais visto, colado ao poste, o pintor de parede. De que infância fazia cartaz o miserável… Da nossa? com as cantigas de roda rodando no tempo veloz a passos sempre mais desgarrados? Da sua, cercada de adultos imensos e misteriosos, quase deuses em seu poder de amar ou matar? Da infância da humanidade em balé solene à roda do Sol? Daquela infância que jamais vivemos e passamos a vida tentando esquecê-la? Não falou, voltou à parede como quem volta as costas. E o tremor de ombros de longe em longe tem cara de sestro de infância.

Desenho

Faz tempo que não desenho.
A palavra manhã, por exemplo. Nascendo com seus montes e lagos, seu sol subindo detrás da encosta, à altura quase da pequenina nuvem poente.
Ou seriam pernas como raios correndo por cima de tudo atrás da pipa cortada?
Manhã.
Manhã que sem nuvem, de um azul de doer, vem deixando repontar no peito e na pedra, manhosamente, o que sempre foi e é desde que a inscreveu o primeiro homem com estilete e esperança.

O poeta aureolado

O poeta laureado recita na Universidade
ele mora pertinho
O poeta laureado é chamado quando tem festa no câmpus
foi aluno professor poeta laureado
O poeta laureado é uma sumidade na comunidade
dá a largada na regata resgata os argonautas
Chove aplauso
o poeta laureado fala do tempo
do amor da morte da metamorfose
depois volta pra casa
A casa é grande e ensolarada
como o riso da mulher que ama
e prepara o pato com laranja
O poeta laureado come o pato com laranja
e vai votar a Diana o poema que rumina
O poeta aureolado é americano

Leia Também:

Um comentario para "Airton Paschoa: Com estilete e esperança"

  1. marcio r almeida disse:

    Incrível, maravilhoso, bom demais.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *