Literatura: surge um novo gótico latino-americano?

Em vez do fantástico, o mítico e fantasmagórico. Capitaneada por mulheres, vertente literária aposta no horror e nas distopias para desnudar a crise civilizatória. Em tema, “monstros”, feminismos e a extinção da humanidade

Imagem: Belkis Ayón
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Por Carlos Madrid, em El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues

Nos últimos anos, vários nomes de escritoras latino-americanas chegaram às listas de novidades literárias e são amplamente lidos pelo público e aplaudidos pela crítica. Autoras como Mariana Enríquez, Mónica Ojeda, Michelle Roche Rodríguez, Fernanda García Lao, Ana Llurba, Natalia García Freire ou Giovanna Rivero estão criando uma nova tendência na literatura atual que é conhecida como o Novo Gótico Latino-Americano. Uma forma de narrar que utiliza elementos do terror e das distopias para refletir de uma forma diferente o nosso presente.

Mas isso é realmente uma tendência? É algo novo? Para Giovanna Rivero, que publicou obras do gênero como Tierra fresco de su tumba (Candaya, 2021) falar apenas do gótico latino-americano pode gerar uma armadilha que exclui certas nuances. No entanto, ela encontra uma “grande coincidência, ou mesmo uma grande sincronicidade, em um bom número de escritoras que estão revisitando a partir de certas especificidades geográficas e políticas algo que Mary Shelley já fez com Frankenstein. O chamado gótico latino-americano do século 21 está abordando um novo abismo que nada mais é do que o fim de nossa espécie. O transumano e a tão almejada fusão com outros reinos – o animal, o vegetal, o reino cósmico – é a marca dessas buscas da imaginação ”, afirma.

Ana Llurba, autora de Constelações Familiares (Aristas Martínez, 2020), acredita que este gênero não é algo novo, mas remontaria às crônicas das Índias, “como Guamán Poma de Ayala ou a de Bartolomé de las Casas e seus registro das crueldades da conquista e colonização, algo que pode ser bastante comparado ao gore e splatter contemporâneos”. E, mais perto de nossa época, um antecedente importante para ela poderia ser La amortajada de María Luisa Bombal (1938), que inspirou Juan Rulfo em seu Pedro Páramo (1955), uma obra canônica sobre as fronteiras entre a vida e a morte, entre o realismo mágico, o tradicional e o fantástico.

Uma descrição da escritora Natalia García Freire, autora de Nuestra piel muerta (La Navaja Suiza, 2019), acrescenta novas nuances. Em sua opinião, desde o século XIX existe uma certa literatura que pode ser vista como os alicerces deste novo gótico. “Uma base composta por escritores como Borges, Silvina Ocampo, Bioy Casares, Julio Cortázar, Rosario Ferré, Felisberto Hernández, Juan Rulfo, Armonía Somers e muitos outros que já tocaram em temas que caem no gótico: o fantasmagórico, as casas mal-assombradas, os lugares obscuros, labirínticos. Mas neste século essa tendência é talvez a mais predominante. Esse gótico latino-americano chegou a se instalar na literatura, sendo tomados por essas autoras, assim como também usa elementos de estadunidenses como Faulkner ou Stephen King, mas sempre reinventando os cenários para se adaptarem perfeitamente aos temas locais”, sustenta ela.

Uma tendência capitaneada por mulheres

Como pode ser visto, todos os autores citados no artigo são mulheres. Um fato que as três escritoras relacionam com o sinal dos tempos: as mulheres já não podem ser ignoradas e muitos editores, especialmente os pequenos, apostam nos jovens escritores. “Isso possibilita, pela primeira vez, que se veja esse boom. Mas se formos a outros tempos também havia muitas mulheres escrevendo fora do cânone e que estão sendo recuperadas hoje, como Armonía Somers ou Shirley Jackson”, diz Natalia García Freire.

Algumas palavras que Giovanna Rivero também defende é que essa visibilidade foi alcançada por meio de muitíssimas batalhas. “Acho que sem os feminismos não estaríamos falando sobre esse assunto hoje. Os feminismos ativaram percepções, incômodas formas de leitura, questionaram ideias arraigadas, e isso está formando outras sensibilidades de leitura. E quando digo ‘sensibilidades de leitura’ não me refiro apenas a quem compra e lê um livro, mas também a quem decide publicá-lo no campo editorial, a quem o resenha, a quem o inclui no cânone, em listas ou no debate público”, afirma.

Ana Llurba, por sua vez, acredita que se trata apenas de um momento em que as escritoras estão ganhando mais visibilidade. “Uma visibilidade que está ganhando mais força devido ao eco do jornalismo caçador de tendências e à necessidade ludópata dos editores de rotular e apostar no the next big thing”, diz ela. “Mesmo assim, há qualidade, excelentes escritoras e reconhecimento internacional e as traduções para outras línguas são a prova contundente disso. Acho que é um bom momento para a literatura latino-americana em geral. Ou seja, existe vida além de Bolaño ”[risos].

Pontos em comum e desacordos

Naturalmente, há muitos temas em comum entre os livros agrupados sob esse rótulo. Temas como morte, violência contra as mulheres, a importância das almas ou o uso do terror. Natalia García Freire afirma que o mais comum é o sobrenatural, que se mostra como um elemento que mais que prejudicar, atrai. “Um elemento que é muito apreciado em Las voladoras, de Mónica Ojeda. Neste livro há uma sedução por criaturas místicas em que é o ser humano que se torna um ser cada vez mais monstruoso”, diz a autora.

Alguns pontos em comum que Ana Llurba, além desses elementos, associa é sobre o que fazer com eles. “Ou seja, como eles se atualizam, a partir de quais horizontes de leitura, com quais chaves estéticas. E acho que estamos passando por uma era iconoclasta em que muitos autoras estão reescrevendo sobre isso com nossos estilos pessoais e obsessões”, sustenta ela.

Giovanna Rivero, alinhada ao que diz Llurba, acredita que algumas questões não são mais importantes que outras, mas que ela está comprometida com a complexidade, a contradição, a contaminação e às diferentes camadas. “Assim, a violência contra o corpo das mulheres envolve métodos de morte e a morte é sempre política, é filosófica, é terrível”, esclarece.

E, quanto às diferenças, as três apresentam dificuldade em apontá-las. Natalia García Freire encontra esse distanciamento nas suas referências, que são muito específicas, inclusive no lugar onde se enquadra a sua obra. “Refiro-me a Shirley Jackson ou William H. Gass ou ao próprio Juan Rulfo, mas também a questões muito pessoais, familiares e da paisagem onde moro”.

Ana Llurba, no entanto, destaca-se dos seus contemporâneos pela “exploração temática da religião como mitologia e como fenômeno que molda inconscientemente grande parte das nossas experiências de vida e, sobretudo, pela tendência à sátira e ao humor negro”. E acrescenta: “A solenidade me repele: se eu não rir, não é a minha revolução”.

Por fim, Rivero dá um passo além e defende que a escrita sempre busca esse desdobramento, essa diferença. “Utopia é encontrar a diferença no que recontamos”, diz ela. Assim, ela não sabe o que diferencia especificamente esses escritos dos demais, mas é claro que “essa descoberta sempre acontece durante a leitura”. Vamos lê-las então.

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