Lear & Cordélia: Os que perdem e os que ganham

Ensaio dramático de cena shakespeariana, lançado hoje em vídeo, une cinema, teatro e artes visuais. No reencontro entre o velho rei golpeado e sua filha, a espera impossível por justiça — e uma brecha para uma reinvenção afetiva e política

Imagem: Marcel Garbi
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Lear & Cordélia: ensaio dramático sobre a obra de Shakespeare. Com Ricardo Valle e Katia Iunes. Direção: Theotonio de Paiva. O vídeo estará no ar, a partir das 20h de 13/1, no canal Nonada – Arte e Cultura Contemporânea.

Lear & Cordélia é um exercício de criação sobre o reencontro entre pai e filha, a partir de trechos da peça “Rei Lear”, de Shakespeare. Com duração de um curta-metragem, dramaturgia de Katia Iunes, tradução de Millôr Fernandes e direção de Theotonio de Paiva, o vídeo investiga a sofrida retomada de consciência do rei (Ricardo Valle) que abdicou do seu poder em favor de duas filhas inescrupulosas.

A redescoberta daquela única filha, Cordélia (Katia Iunes), deserdada pelo próprio Lear, cujo amor verdadeiro se expressa em uma experiência determinante, possibilita que se instale na cena um dueto denso e dramático entre essas duas personagens.

Apesar de enxergar no rei a sombra daquilo que ele foi um dia, observa a atriz, “o recorte realizado para a criação desse vídeo levou em consideração a possibilidade de explorar justamente o reencontro dos dois – Lear e Cordélia –, após a sua intensa procura pelo pai. E aí, cabe a pergunta: o que será dos dois a partir desse encontro?”. Nessa expectativa, o público é lançado diante de uma variedade de estados emocionais e mentais até a decisão final de ambos permanecerem juntos na prisão como um ato de re-existência afetiva e política, quando, numa espera impossível por justiça, o velho rei passa a conhecer a oportunidade de se reinventar.

“Mesmo para uma época perturbadora como a nossa”, destaca o diretor e dramaturgo Theotonio de Paiva, “é interessante observar como Lear altera profundamente o seu olhar sobre as relações humanas e de poder. E o quanto isso torna a peça, e esse trecho em especial, ainda mais eloquente. Nessa sua nova experiência, Lear inicia uma compreensão aguda sobre algumas das questões centrais da condição humana. E é exatamente desse ponto, que se move para pensar acerca do velho embate entre quem perde e quem ganha”.

Criações solitárias em novas sintonias

Como observa o ator Ricardo Valle, “não foi fácil chegar à forma final desse ensaio dramático”. A escolha da produção seguiu os rigorosos procedimentos ditados pela prevenção ao estado pandêmico “com cada ator em sua casa. Assim, o quadro era o seguinte: Inicialmente pensado como uma cena on-line, porém ao vivo, a proposta foi alterada para uma forma final de vídeo, em que muitas tentativas de interpretação foram experimentadas, mantendo-se, ao mesmo tempo, a crescente dose de emoção exigida por um texto de qualidade excepcional”, conclui o ator.

“Dadas as limitações técnicas e a distância entre os envolvidos”, pontua Anna Iunes, responsável pela edição do vídeo, “acabamos por optar de fazer a filmagem pela plataforma Zoom e ter os áudios gravados em celulares de cada ator. Assim, o trabalho se desenvolveu desde o começo já levando em conta questões técnicas de vídeo e áudio”. Morando atualmente em Montreal, Canadá, onde finaliza o mestrado em Cinema, a cineasta acompanhou desde o início as leituras e gravações. E avança em sua reflexão: “É nesse formato contemporâneo das reuniões on-lines que o projeto se dá, e a partir desse mesmo formato ele também se desconstrói: se fragmentando e se repensado em diferentes texturas e dimensões – trazendo então o quê experimentalista e até surrealista que contém”.

Transformado numa espécie de copião, o material em vídeo foi enviado a Recife onde de lá recebeu a trilha sonora assinada por Caio Cezar Sitonio. Nesse novo estágio de criação “somos levados para a dimensão do universo sinfônico”, como observa o próprio maestro: “Como compor uma trilha sem atrapalhar ou competir com o texto? A concepção aqui apresentada para vídeo, sem teatro, sem cenografia, sem luz, sem plateia presencial, possibilitou à música uma oportunidade antes não existente: a dialética da memória e a imaginação sensorial, já usada nos filmes de Chaplin e no clássico, Fantasia”.

Lear & Cordélia é um projeto que permeia mundos: o mundo do teatro, do cinema, das artes visuais e dramáticas. Todo o seu desenvolvimento não foi diferente. Realizado durante a pandemia, no decorrer do ano passado, com as dificuldades inerentes que todos enfrentamos para a produção de um trabalho dessa natureza, colocou os seus criadores diante da necessidade de assimilar os desafios do atual estágio tecnológico. E este se revela como um elemento estético profundamente instigante, fruto das condições objetivas e do espírito do nosso tempo.


Ficha Técnica: Texto: William Shakespeare | Atuação: Ricardo Valle e Katia Iunes | Direção: Theotonio de Paiva | Idealização e dramaturgia: Katia Iunes | Tradução: Millôr Fernandes | Trilha sonora: Caio Cezar Sitonio | Edição: Anna Iunes | Design de créditos e Programação visual: Nicholas Martins | Mixagem: Daniela Pastore | Tratamento de áudio: Anna Iunes e Pedro Fernando | Realização: Nonada – Arte e Cultura Contemporânea

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