Daniel Ribeiro e a estratégia do eclipse

Ao abordar adolescência e homossexualidade, “Hoje eu não quero voltar sozinho” evoca amores e carências universais. Falta-lhe só mais tensão

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Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Não foi por acaso que Hoje eu quero voltar sozinho ganhou dois prêmios no Panorama do Festival de Berlim (o da crítica internacional e o Teddy, para filmes com temática LGBT). Não é por acaso, tampouco, que tem recebido elogios por onde passa.

Por trás da aparente singeleza de seu entrecho – as relações de amor e amizade entre uma garota e dois rapazes de um colégio de classe média –, o longa de estreia de Daniel Ribeiro enfeixa uma porção de temas recorrentes no cinema de nosso tempo: a descoberta da sexualidade e a definição da sua orientação, o bullying contra o diferente, a criação de novos laços afetivos e novas famílias.

Por um lado, o do questionamento da padronização heterossexual da sociedade, Hoje eu quero voltar sozinho “conversa” com filmes recentes como o pernambucano Tatuagem, o francês Azul é a cor mais quente e o venezuelano Pelo malo (que entra em cartaz por aqui na próxima semana), por mais que se trate de obras inteiramente díspares.

Por outro lado, insere-se na vertente dos “filmes de adolescência” que tem uma matriz norte-americana muito forte e que no Brasil gerou recentemente longas como As melhores coisas do mundo, de Laís Bodanzky, e Antes que o mundo acabe, de Ana Luiza Azevedo.

Tateando pelo mundo

O primeiro mérito do filme de Daniel Ribeiro (que é um desdobramento de seu curta Hoje eu não quero voltar sozinho) é conduzir com leveza e frescor esse complexo de questões e referências, fazendo sua narrativa girar em torno do personagem singular Leonardo (Guilherme Lobo), um adolescente cego superprotegido pelos pais (Eucir de Souza e Lúcia Romano).

Entre a amizade de outra enjeitada, Giovana (Tess Amorim), e a crescente atração por um novo amigo, Gabriel (Fabio Audi), entre o desejo de ser aceito pelos colegas e o impulso de fugir para um intercâmbio no exterior, Leonardo sai tateando pelo mundo, colidindo com suas quinas, tropeçando em seus buracos e degraus – mais ou menos como cada um de nós, só que aqui condensado quase numa metáfora de solidão e desamparo, mas também de inocência não conspurcada, de potência plena de amor.

Ver e ser visto

A circunstância de ter um protagonista cego – do qual a narrativa quase nunca se afasta – permite ao jovem diretor jogar com a dialética essencial do cinema entre o que é visto e o que está fora do quadro ou obstruído, como sintetiza lindamente a cena do eclipse. Obriga-o a trocar o usual campo/contracampo (pois o “campo” da visão de Leonardo inexiste) por outras soluções visuais, como um recurso constante e efetivo à câmera alta, presente desde a primeira imagem, e pelo uso sutil dos ruídos e da música.

A sensação de vulnerabilidade transmitida pelo personagem é acentuada pelo fato de sabermos que ele é visto sem ver, como se estivesse nu em um ambiente em que todos estão vestidos.

Em algumas passagens, o espectador é feito “cúmplice” dos que veem sem ser vistos (por exemplo, na festa, com seu cortejo de crueldades); em outras, compartilha com Leonardo a condição de “ouvinte imaginativo”, como na cena em que Gabriel e a fogosa Karina (Isabela Guasco) o convidam para entrar na piscina, à noite, no acampamento. O casal fica no fundo do quadro, na penumbra e fora de foco, enquanto nós, assim como Leonardo, imaginamos o que se passa a partir dos ruídos, das risadas e frases soltas dos dois.

Entre as inúmeras virtudes do filme, uma das mais evidentes é a extraordinária atuação de Guilherme Lobo no papel do protagonista cego. Mas todo o elenco de três gerações está excelente.

Chama a atenção também o fato de ser uma obra extremamente paulistana (na prosódia dos personagens, nas ladeiras arborizadas de um bairro de classe média, provavelmente da zona oeste, e até na presença de Selma Egrei, musa dos filmes de Walter Hugo Khouri) e ao mesmo tempo universal ao extremo, sintonizada com as preocupações e interesses da juventude mundo afora.

Diluição de conflitos

Tenho para mim que seria um filme ainda melhor se não fosse tão “bonzinho”, se as arestas não fossem aparadas com tanta facilidade, se os conflitos não tendessem tão prontamente à conciliação. É uma fragilidade semelhante à encontrada em As melhores coisas do mundo: no fundo, todo mundo é bom e tudo se ajeita – na penúltima sequência esboça-se até um novo amor para a solitária Giovana.

Talvez essa diluição de tensões seja vista como o preço necessário a pagar para que os espectadores saiam do cinema com um sorriso nos lábios. Penso, ao contrário, que manter vivas as tensões, arestas e conflitos intensificaria a força da linda cena final, que obviamente não vou contar aqui.

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