Cinema: O desejo coletivo e o retrogosto de sublime

Sessão Mutual Films retorna este mês, de forma online. Em filmes restaurados do cinema autoral dos EUA, a força da arte de gerar encontros e ampliar o senso de comunidade — e a preservação fílmica como memória da experiência humana

Sem chão (Losing Ground, 1982), de Kathleen Collins
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Por Aaron Cutler e Mariana Shellard, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

De volta após alguns meses de ausência por conta da pandemia de Covid-19, a Sessão Mutual Films de dezembro será a primeira realizada de forma online (mais detalhes em breve). São cinco filmes que tratam da expressão artística, sua influência em nossa relação com o outro e sua capacidade de ampliar o senso de comunidade. Filmes sobre encontros, pertencentes a projetos de restauração encabeçados pela distribuidora Milestone Films, dos EUA. Os curadores Aaron Cutler e Mariana Shellard contam mais.

O Chamado

E qual é a razão real de estarmos aqui,
Senão para lembrar
E ao lembrar recuperarmos nossa fé
No que foi
E continua sendo
E no que será.

Mas nos esquecemos
E começamos a pensar em nós mesmos como fragmentos separados
Distintos uns dos outros,
Mundos à parte,
Sozinhos em nossa solidão
Nos esquecemos de lembrar.
Nos esquecemos que a questão é sempre a mesma.
Fé ou incerteza
Amor ou medo
Verdade ou indiferença.

Nos esquecemos que a respiração que nos une
É a mesma em todo lugar,
Que o ar entre os espaços de nossa existência une todas as coisas,
Que o som do amor chama constantemente.

Kathleen Collins, 1987[1]

A Sessão Mutual Films de dezembro traz cinco filmes, em dois programas online, que lidam com a importância da expressão artística e como ela influencia nossa relação com o outro e amplia nosso senso de comunidade. São filmes sobre encontros entre indivíduos que muitas vezes se distanciam no que tange a nossa capa mais superficial, e que, a partir de um senso comum, um desejo, comungam uma experiência sublime.

Os cinco filmes também fazem parte de projetos de restauração encabeçados pela distribuidora norte-americana Milestone Films, que há 30 anos se dedica a criar um novo cânone do cinema norte-americano, recuperando filmes e filmografias de autores pouco acessíveis ao público em geral e que compartilham um estilo autoral e independente de produção cinematográfica.

George T. Nierenberg (1952) é um bom exemplo desse tipo de cinema, ao mesmo tempo pedagógico e humanista. A Milestone participou das restaurações digitais recentes de três filmes de Nierenberg, junto a parceiros como Turner Classic Movies, Academy Film Archive e Smithsonian National Museum of African American History and Culture. Nierenberg começou realizando documentários sobre música para a televisão pública norte-americana que se tornaram grandes sucessos. Entre eles, No Maps on My Taps (1979), sobre a história do sapateado negro nos Estados Unidos, cuja repercussão culminou em uma turnê europeia com alguns dos artistas que participaram do filme e que possuíam uma carreira emblemática, porém sofriam com a persistente perda do interesse público nessa dança. O filme não só revigorou a carreira destes artistas mas também o meio em geral. Anos depois, Nierenberg (cuja mãe foi dançarina de sapateado) retomou o tema no curta-metragem Sobre sapateado (About Tap, 1985) – que será exibido no programa –, também comissionado para a televisão pública. Sobre sapateado foca, de forma íntima e calorosa, nos estilos particulares de três dos mais renomados dançarinos do gênero – Jimmy Slyde, Steve Condos e Chuck Green, este último também retratado de forma comovente em No Maps –, intercalando entrevistas com cenas de dança para mostrar como o temperamento, as obsessões e as habilidades de cada indivíduo modelam sua forma de expressão.

 Cena do filme “Carrossel de pontes”, de Shirley Clarke

Já os filmes de Shirley Clarke (1919-1997) fizeram parte de um projeto de restauração promovido pela Milestone, em parceria com a filha da artista, Wendy Clarke, que seguiu a carreira da mãe e se tornou videoartista. Clarke foi ícone do cinema experimental americano, cujos longas influenciaram até mesmo os cineastas da Nouvelle Vague, após sua participação no Festival de Cannes de 1961. Porém, seus filmes estiveram por anos inacessíveis, ou em cópias em péssimo estado de conservação. A Milestone organizou a iniciativa Project Shirley para colocar em ampla circulação três dos quatro longas-metragens de Clarke, além de diversos curtas-metragens que lidam com a dança, o movimento e a experimentação, entre eles Carrossel de pontes (Bridges-Go-Round, 1958), que será exibido no programa em uma cópia restaurada pela Metropolis Post, a partir de um negativo preservado pelo Anthology Film Archives. A maneira como o jazz permeia a obra de Clarke enfatiza seu temperamento livre e marginal. Carrossel de pontes é um estudo experimental da arquitetura das pontes de Nova York e possui duas versões com trilhas sonoras diferentes. Assistiremos à versão com composição do renomado jazzista Teo Macero (colaborador frequente de Miles Davis e Dave Brubeck).

A Milestone foi a única distribuidora a demostrar interesse na restauração e digitalização dos dois filmes realizados por Kathleen Collins (1942-1988), um projeto coordenado pela filha da cineasta, a escritora Nina Lorez Collins. Nina trabalhou com o laboratório DuArt, que guardava cópias dos filmes de sua mãe, e onde eles foram processados quando foram realizados. Kathleen Collins foi uma figura emblemática, principalmente como professora de cinema na City College de Nova York. Intelectualmente rigorosa, a diretora e escritora norte-americana se envolveu com o cinema pela primeira vez durante seu doutorado na França, onde pesquisou obras dos surrealistas na literatura e no cinema e processos de adaptação de um meio para outro. Ao voltar para os Estados Unidos, trabalhou como montadora antes de realizar seu primeiro filme, o média-metragem Os irmãos Cruz e a senhora Malloy (The Cruz Brothers and Miss Malloy, 1980) que será exibido no programa. Mesmo já tendo escrito diversos contos e peças de teatro de cunho pessoal, Collins optou pela adaptação de um romance não publicado do escritor Henry H. Roth, corroteirista do filme, sobre a vida de três irmãos porto-riquenhos nos EUA. Collins descreveu o romance como a versão mais próxima norte-americana de Cem anos de solidão (1967), de Gabriel García Márquez. A cineasta tinha aversão a rótulos e, ao perguntarem a ela se uma artista mulher e negra não tinha a obrigação de lidar com temas de gênero e raça, respondeu que tinha uma obrigação ainda maior de lidar com suas próprias obsessões. Seu interesse em criar personagens complexos e multifacetados que não correspondiam aos estereótipos da época – como em seu segundo filme, o longa-metragem Sem chão (Losing Ground, 1982), em que uma renomada professora negra de filosofia busca desvendar o segredo do êxtase, ao mesmo tempo que vive um momento de crise em seu casamento – contribuiu para que seus filmes não tivessem distribuição comercial durante décadas.

No processo de pesquisa sobre o cinema de Collins, a Milestone descobriu e comissionou a restauração digital do único filme existente dirigido por Ronald K. Gray, cinegrafista e coprodutor dos filmes de Collins. Gray realizou um belo trabalho de câmera e iluminação nos dois filmes da diretora, que também foi sua professora. Como diretor, expressou todo seu senso de humor por meio da sonoplastia em seu curta Transmagnifican Dambamuality (1976). Esta dramédia familiar, inspirado nas memórias de adolescência do diretor, utiliza a música tanto para delinear seus personagens quanto para reconciliá-los, oferecendo, no percurso, um retrato da vida doméstica afro-americana durante a década de 1970. Os filmes de Collins e Gray tiveram suas primeiras distribuições comerciais apenas em 2014, após o processo de restauração, e a partir de um movimento crescente de pesquisadores e curadores de cinema de contextualizar a produção cinematográfica de artistas independentes afro-americanos.

 Cena de O matador de ovelhas, de Charles Burnett

A Milestone também trabalhou na digitalização e na arrecadação dos direitos autorais das músicas dos filmes de um dos mais importantes cineastas norte-americanos, Charles Burnett (1944), a começar com seu longa de estreia, O matador de ovelhas (1977), restaurado pelo UCLA Film and Television Archive. Além de O matador de ovelhas, a distribuidora digitalizou mais quatro filmes do cineasta, inclusive o curta Quando chove (When It Rains, 1995) – também preservado no UCLA –, uma parábola jubilosa e musical rodada em Watts, o bairro de Los Angeles onde o cineasta cresceu. Nascido no Mississippi e radicado na Califórnia, Burnett, que em 2017 ganhou um Oscar honorário, já realizou filmes para grandes estúdios, como Disney e Miramax, além de diversas produções independentes. Porém, sempre manteve seu foco ao lidar com as relações interpessoais da comunidade afro-americana, a partir de histórias intrínsecas a ela, para expressar um senso comum de tradição e moral. Burnett, assim como Collins (que se admiravam mutualmente), foi, durante anos, negligenciado em seu próprio país, em boa parte por seu desejo de ir além da visão estereotipada de violência e miséria de sua comunidade. A obra de Burnett oferece uma outra visão da história do cinema, assim como da história cultural dos Estados Unidos.

Os filmes e diretores da sessão mostram o poder do cinema como uma ferramenta para educação sobre a história de um país, seu povo, sua cultura e sua herança. Os processos de recuperação e circulação de filmes não implicam apenas um setor da sociedade, mas ela como um todo. Sem a dedicação de instituições e indivíduos, os filmes se perdem e, junto com eles, a história recente. O ato de preservar um filme é um ato de preservar a memória da experiência humana.

A Sessão Mutual Films de dezembro é dedicada a todas as pessoas que trabalham com a preservação do cinema.

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