Retratos fantasmas: A fantasia em mutação

Documentário de Kleber Mendonça Filho é crônica autobiográfica apenas à primeira vista. Com humor e melancolia, ele traça uma arqueologia urbana da sétima arte em Recife entre afetos, marcas políticas, especulação e mudanças culturais

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

Kleber Mendonça Filho não cessa de nos surpreender. O documentário Retratos fantasmas, que tem ganhado pré-estreias em diversas cidades e entra em cartaz no próximo dia 24, é seu filme mais pessoal e ao mesmo tempo mais universal.

Documentário talvez não seja a melhor definição para esse híbrido de registro histórico, memórias, ensaio e ficção. Narrada em primeira pessoa pelo próprio diretor, é uma jornada que parte do apartamento em que ele viveu por quarenta anos, no bairro recifense de Setúbal/Boa Viagem, e se desenrola como um novelo, abarcando a capital pernambucana, o Brasil e o mundo.

Arqueologia urbana

De início, parece uma ágil crônica autobiográfica, que fala da mãe historiadora e sua relação com o ambiente doméstico, mas também das primeiras experiências cinematográficas, filmetes em super-8 e vídeo realizados por Kleber com o irmão e vizinhos. Ao longo das décadas, o apartamento passou por transformações e serviu de locação para diversos trabalhos do diretor, em especial para O som ao redor. Com uma desenvoltura admirável, misturando fotos antigas, home movies, trechos de seus filmes e imagens captadas atualmente, o cineasta dá àquele espaço uma vida que atravessa gerações e o conecta com a história da cidade.

Passamos então, sem trancos, para os cinemas do velho Recife, hoje extintos em sua quase totalidade: Trianon, Art Palácio, Moderno, Politeama, Veneza… Desenha-se então toda uma arqueologia urbana conectada com a história arquitetônica, social e afetiva da cidade – cujos processos gerais ocorreram de maneira semelhante em tantas outras metrópoles do mundo.

A visada é ampla, bem informada e bem documentada (inclusive com trechos de filmes realizados por outros diretores pernambucanos), enlaçando sempre o individual (o velho projecionista do Trianon, o camelô que recolhia memorabilia no lixo das distribuidoras estrangeiras para vender numa banca, etc.) ao geral: as marcas da ditadura e da censura, a presença opressiva das majors norte-americanas, a especulação imobiliária, as mudanças na cultura e nos costumes.

Nesse percurso, alguns episódios chamam especial atenção. Por exemplo, a informação de que o Art Palácio do Recife, assim como o de São Paulo, foi uma criação da produtora e distribuidora alemã UFA numa época em que o regime nazista aproveitava a leniência (ou simpatia) do governo Vargas para estender por aqui seus tentáculos ideológicos.

Cinema, religião, fantasia

A última parte do filme realça a curiosa e complexa ligação do cinema com a religião. Ficamos sabendo, por exemplo, que o venerável Cine São Luiz – último remanescente da era de ouro das grandes salas – foi construído onde antes se erguia uma igreja do tempo do império. O diretor/narrador chama a atenção para o fato de o lugar ser chamado reiteradamente de “templo do cinema”, e também para a recorrência de imagens católicas na linguagem dos cinéfilos: “Um Glauber ou um Hitchcock para assistir de joelhos”. A outra face dessa conexão é mais brutal: a transformação de antigas salas de cinema em templos evangélicos.

Tudo isso é mostrado de modo fluente, com uma câmera que perscruta os espaços e suas transformações, amparada na montagem pelos materiais mais diversos: filmes, fotos, recortes de jornal.

A locução do cineasta oscila entre o humor e uma certa melancolia. Quando, já na última parte, o tom parece se aproximar do melodrama nostálgico, há uma virada levemente cômica, numa sequência ficcional que encena uma viagem de uber pela cidade.

É também, por assim dizer, a explicitação de um veio de cinema fantástico que vinha se insinuando ocasionalmente ao longo do documentário: a foto acidental de um espectro pelo jovem Kleber, o latido de um cachorro que já morreu, a “mutação” de uma marquise de cinema durante a digitalização de uma foto, a tampa de um scanner que se fecha sozinha etc., sem contar os próprios curtas juvenis de terror do cineasta. O título Retratos fantasmas, enfim, tem muito mais de um sentido.

Falando em títulos: o grande artista pernambucano Cícero Dias pintou nos anos 1920 um enorme painel chamado “Eu vi o mundo… ele começava no Recife”. Poderia ser um título alternativo para o belíssimo filme de Kleber Mendonça Filho.

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