Andróides, Turing e a busca pela humanidade

Morreu Rutger Hauer, que fez, em Blade Runner, um replicante mais sensível que muitos humanos. Filme é inspirado no gênio criador do computador — que se suicidou aos 42. Procurava, talvez em vão, descobrir o que diferencia máquinas de pessoas

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“É uma experiência terrível viver no medo, não é verdade? É o que faz de nós escravos”. Um olhar azul frio espreitava numa cara manchada de Sangue, enquanto segurava um Harrison Ford derrotado e prestes a cair. O replicante (uma máquina genética feita humano) do filme “Blade Runner” era interpretado por o ator holandês Rutger Hauer, que faleceu ontem, no dia 24 de julho, com 75 anos. Vítima de “uma curta doença”, segundo o seu boletim médico.

Muitos de nós conhecemos apenas dele o seu papel de vilão, que afinal não é, no clássico da ficção científica realizado por Ridley Scott, e o seu diálogo final antes de morrer, em que fala de “lágrimas na chuva”, que foi reescrito e criado pelo ator antes da cena.

Mas a sua carreira e vida abafadas por um desempenho magnífico em “Blade Runner” começou muito mais cedo que o mítico ano de 1982, e acabou apenas ontem.

Foi em 1969 que Ruger Hauer começou a sua carreira no telefilme “Floris”, realizado por Paul Verheven. O mesmo ator que lhe dá o seu primeiro grande papel no filme “As Delícias Turcas”, em 1973. Apenas começa a dar nas vistas nos EUA, com um thriller em que atua com Sylvester Stallone, “Nighthawks”. Um ano antes do lançamento nos cinemas de Blade Runner. Ganha um Globo de Ouro com a sua interpretação no telefilme britânico “Escape from Sobibor”, 1987, em que se relata a maior fuga de prisioneiros de um campo de concentração nazista. Os seus últimos papeis são no “Valérian a Cidade dos Mil Planetas” de Luc Besson e no filme de Jacques Audiar “Les Frères Sister”.

Mas voltemos ao papel que fez brilhar Rutger Hauer nas nossas vidas e às razões porque este filme continua entranhado em nós .

Numa cidade abafada pelo brilho poluente dos neons, um homem testa uma mulher. São 30 perguntas. As respostas são escrutinadas eletronicamente, através da dilatação da íris da interrogada. O teste Voight-Kampff é usado para perceber a humanidade das pessoas e entender a diferença que separa um ser humano de uma criatura com inteligência artificial. Voight-Kampff nunca existiu: é uma criação do escritor Philip K. Dick, no seu livro “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, que foi adaptado ao cinema por Ridley Scott com o nome de “Blade Runner”.

Mas se o autor com nome germânico é do simples domínio da ficção, o teste baseia-se no teste de Turing, criado por Alan Turing e divulgado em 1950 num artigo com o título “Computing Machinery and Intelligence”. O famoso texto começa com esta frase: “Proponho a seguinte questão: podem as máquinas pensar?”

Se as máquinas pensassem, poderiam ser humanas, como afirma Descartes no seu “penso, logo existo”. E o que define esta humanidade? Sobre as máquinas, não há certezas, mas sobre certos humanos, a vida de Turing mostra que eles não pensam e menos ainda são humanos.

Alan Turing matou-se com uma maçã envenenada. Injetou-lhe cianeto e deu-lhe uma dentada. Parece que gostava da história da “Branca de Neve”. Mas morreu como a humanidade começou na Bíblia, quando Adão e Eva comeram a maçã proibida da árvore do conhecimento e descobriram o sexo, a morte, a diferença entre o bem e o mal, o livre arbítrio e o conhecimento. O que levou um gênio que não tinha feito 42 anos a matar-se, no dia 7 de Junho de 1954?

O ser humano genial que tinha lançado as bases da inteligência artificial, que tinha ajudado os aliados a derrotar a Alemanha nazista, ao descobrir a chaves do sistema de encriptação das comunicações alemãs, o Enigma, e que lançou as bases do Colossus, o primeiro computador digital, não queria viver mais.

Em 1952, Turing tinha sido condenado pelo crime de “prática de comportamento de grande indecência entre homens”. Era homossexual. No princípio dos anos 50, o governo britânico concluiu que a homossexualidade ajudava à infiltração comunista no Reino Unido, devido à deserção para Moscou de vários agentes secretos britânicos que trabalhavam para os soviéticos, membros do famoso “círculo de Cambridge”, alguns deles homossexuais. Iniciou-se uma caça às bruxas: cada ano, mais de 5 mil pessoas foram condenadas por “indecência”.

Alan Turing foi demitido do seu emprego e, para escapar a uma pena de prisão longa, teve de aceitar ser castrado quimicamente. Durante um ano sofreu um tratamento que o transformou fisicamente e o destruiu lentamente. Preferiu pôr fim a si mesmo.

O jovem, que chegou a professor do King’s College com 22 anos, teve muitos problemas de aprendizagem e ultrapassou-os com a ajuda de uma pessoa de quem gostava, tragicamente morta quando ele tinha 16 anos.

Turing sabia, por experiência de vida, aquilo que nos faz humanos e aquilo que nos faz transcender as nossas próprias limitações. Não é por acaso, que no final de “Blade Runner”, a replicante Raquel descobre que é muito mais humana que muitos: conseguia amar.

Como diria o replicante protagonizado por Rutger Hauer: “Eu vi coisas em que vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas no ombro de Orion. Vi raios C brilharem no escuro perto do Portão de Tannhauser. Todos esses momentos serão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Tempo de morrer”.

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6 comentários para "Andróides, Turing e a busca pela humanidade"

  1. Adriano Picarelli disse:

    FLEXIBLE SEXISM

    Doreen Massey, “Environment and Planning D: Society and Space”, volume 9, pp. 31 a 57, 1991

    Uma discussão, da grande geógrafa inglesa, sobre modernismo, pós-modernismo e questões de gênero…

    Uma crítica que apresenta sérios argumentos sobre a presença do patriarcado na arte, moderna e pós-moderna, discussões sobre as mulheres e as imagens…

    Também há um trecho específico sobre os filmes “Blue Velvet” e “Blade Runner”…

    http://epd.sagepub.com/content/9/1/31.abstract

  2. Adriano Picarelli disse:

    “Governador de Porto Rico renuncia após escândalo de conversas homofóbicas. Chefe do Executivo da ilha caribenha, um território dos EUA, cai após quase duas semanas de protestos por causa de conversas homofóbicas e sexistas pelo celular”, Antonia Laborde, El País, 25 de julho de 2019

    https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/25/internacional/1564035620_581829.html

  3. Adriano Picarelli disse:

    “Depoimento: ‘Fui condenado por ser gay há 42 anos pelo governo britânico’, Andrew Jacobs, Uol reproduz matéria do The New York Times, 28 de outubro de 2016 [“He was convicted for being gay. 42 years later, he wants an apology”, Andrew Jacobs, The New York Times, 27 de outubro de 2016]

    http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-times/2016/10/28/depoimento-fui-condenado-por-ser-gay-ha-42-anos-pelo-governo-britanico.htm

    http://www.nytimes.com/2016/10/28/world/europe/he-was-convicted-for-being-gay-42-years-later-he-wants-an-apology.html?_r=0

  4. Adriano Picarelli disse:

    “Perdão a cientista homossexual Alan Turing vem com seis décadas de atraso”, Deutsche Welle, 25 de dezembro de 2013

    http://www.dw.com/pt-br/perd%C3%A3o-a-cientista-homossexual-alan-turing-vem-com-seis-d%C3%A9cadas-de-atraso/a-17323856

    http://p.dw.com/p/1Agj2

  5. Adriano Picarelli disse:

    “Alan Turing – Enigma ordinateur et pomme empoisonnée” (“Alan Turing – Enigma computadores e a maçã envenenada”), LPPV.05 – e – penser, Canal YouTube e – penser, 06 de fevereiro de 2015

    https://www.youtube.com/watch?v=7dpFeXV_hqs

  6. Adriano Picarelli disse:

    “The man who cracked the nazi code” (“La Drôle de guerre d’Alan Turing”, “O homem que decifrou o código nazista”), Denis van Waerebeke, Les Films D’Ici/ Arte G.E.I.E/RTBF Documentary Unit/Universcience, Equador/França, 2015

    https://www.youtube.com/watch?v=kFFhiU4DNgc

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