Uma cineasta à altura dos desafios de nosso tempo

Chloé Zao, vencedora do Oscar com Nomadland, desvela um capitalismo tão melancólico quanto brutal. Em Song my brothers (2015), seu 1º longa, sob um drama familiar indígena, as novas facetas do colonialismo – e de seu enfrentamento

.

A diretora Chloé Zao ganhou notoriedade com Nomadland (2020), um filme potente e repleto de aberturas para pensar a atualidade, mas é no seu primeiro longa Songs My Brothers Taught Me (2015) que conseguimos ler com maior clareza a proposição de um projeto estético-político à altura dos desafios do nosso tempo. Hoje não é tarefa fácil a um artista escavar e trazer à luz a poesia escondida no enorme amontoado de néon e imagens frenéticas que se acumulam cotidianamente em milhares de olhos, bocas, ouvidos, mentes e corações mundo afora. Zao não apenas escapa dos lugares comuns e é criativa, mas consegue fazer os seus filmes vibrarem um tipo raro de poesia que nasce do encontro genuíno com a crítica. Aliás, pode-se dizer que a alma tanto de Nomadland como de Songs My Brothers Taught Me é também o encontro. Mas o foco dessa resenha crítica é Songs. Então vamos a ele.

A personagem principal do filme é Johnny, um jovem que está terminando o ensino médio e enfrenta o dilema de ir para Los Angeles com a namorada ou ficar na reserva Pane Ridge com a irmã Jashaun, por quem é responsável, já que a mãe é uma presença ausente. Enquanto amadurece a decisão, chega a notícia da morte repentina do pai, Carl, um caubói que ele mal conhecia. Desse modo, o enredo apresenta uma mãe que apesar de vermos presente está ausente e um pai que não vemos, mas cuja ausência se faz presente por meio do luto que se instala após a sua morte.

É mesmo impressionante as muitas camadas que Songs vai nos revelando à medida que adentramos o universo das personagens. Ainda que o álcool seja nomeado como o principal problema da reserva indígena, na verdade, ele apenas agrava as inúmeras outras questões sociais. Mesmo proibido, as bebidas alcoólicas seguem sendo consumidas pela comunidade e com ela persiste a violência, o abandono e a falta de perspectiva. Motivo pelo qual se desenvolve um comércio ilegal interno do qual participa Johnny a fim de juntar o dinheiro necessário da viagem para Los Angeles. Ao que tudo indica esse também é o motivo da prisão do irmão mais velho, Cody, ainda que não explicitado.

A paisagem aberta, desértica e de longas distâncias do interior dos Estados Unidos, fotografada de forma semelhante à Nomadland, em um tom melancólico, é o cenário onde habita a família que vive o que se poderia assistir como um drama familiar. Mas essas personagens estão longe dos esquematismos do melodrama. Pelo contrário, aos poucos vão se revelando ricas em detalhes e em densidade, de maneira que ficamos com a sensação de que fomos permitidos participar das suas vidas apenas por algumas frações de minutos. O mesmo também acontece com a paisagem apenas aparentemente inóspita. Assim, Zao não apenas filma os trabalhadores, explorados, desvalidos, subalternos, mas todo o complexo cenário material e subjetivo habitado por eles. Nesse sentido, ainda que Songs esteja intimamente relacionado ao oeste americano, se considerarmos o fato dos Estados Unidos serem o país símbolo do modo de vida e capitalismo atual, muito se pode pensar para além dessa especificidade.

Os dois irmãos e Jashaun são frutos de um amor entre a mãe iakota e o caubói conquistador que, além dela, teve outras oito mulheres e outros 22 filhos os quais abandonou. Ao centrar nos irmãos, em um sentido mais amplo, o longa narra a complexidade resultante tanto do encontro do mundo indígena com o mundo do branco pioneiro (tradição e modernidade), como a dos subalternos com os dominadores. Daí a sua contemporaneidade, pois é justamente com essa complexidade empírica que temos de lidar na atualidade. Isso porque ainda que persista a distinção objetiva entre dominantes e dominados, modo de vida alternativo ou emergente e modo de vida hegemônico, ela não se apresenta mais como universos apartados, dado o elevado nível de imbricação. Continuar a assumir uma dualidade clássica é ignorar o processo histórico específico de dominação que se seguiu às derrotas das proposições revolucionárias gestadas no século XX desde pelo menos os anos 1980, tanto quanto as transformações inerentes às necessidades de acúmulo do capital que daí se seguiram, desaguando na atual forma limite de expropriação social que vivemos no século XXI. Em outras palavras, é ignorar os filhos, ou melhor, as sínteses resultantes da atração recíproca (ainda que extremamente assimétrica) advindas desses encontros. E já se vão duas gerações: a que testemunhou a implementação neoliberal (representadas no filme pelos irmãos Jhonny e Cody) e a que está a viver o seu recrudescimento (a caçula Jashaun).

Mas antes de tratar dos filhos é primeiro preciso falar da mãe, Lisa. O choque da destruição de quase toda a materialidade que sustentava as formas através das quais ela e toda a reserva conferiam sentido ao mundo foi brutal. Não é à toa o forte impacto que o álcool causou à sua vida, nem a sua inação e dificuldade extrema de escapar do círculo da falta de cuidado em que foi colocada. O amor pelo caubói e a atração pelos valores portados por ele se revelaram uma ilusão. Ela descobriu, após muitos sofrimentos (sugeridos no enredo), que afinal a relação não era entre iguais. O poder estava do lado dele e ela foi o elo fraco que teve de criar sozinha os três filhos. Nesse processo, no entanto, as contradições são latentes porque ao mesmo tempo em que enredada na rede de violência e abandono em que foi posta, Lisa também as reproduziu. Isso fica claro no momento em que decide visitar Cody na prisão. Ao contar que passou a frequentar a igreja e que Deus ajuda, ele responde: “Não faça de Deus outro homem por quem você abandona seus filhos”. Ou seja, da mesma maneira que o álcool, a religião é apresentada como outro forte elemento que se apresenta uma opção de escape, mas pode funcionar como mais um mecanismo de falso alívio, dificultando e/ou adiando uma verdadeira saída.

Com a notícia da morte do ex-marido, ela é a que mais fica abalada. Parece, na verdade, que já vivia o luto desse pai ausente de forma prolongada antes mesmo da sua partida, o que em muito explica o seu atual estado. A dificuldade em superar a ausência talvez aconteça porque Lisa é a que guarda a maior quantidade de memórias com Carl, diferente de Jhonny, cujos laços com o pai foram rarefeitos. Mas ainda assim, após contar uma das raras lembranças que possui, ele comenta: “É estranho […] comecei a sentir falta do desgraçado”. Por outro lado, a irmã Jashaun é a que se afasta efetivamente desse elo, porque já não possui nenhuma memória compartilhada, tanto que tenta entender quem foi o pai por meio das outras pessoas, dos irmãos. Mas voltando à mãe. Lisa, na verdade, pode ser lida como a geração que estabeleceu uma relação de vínculo mais estável com o capitalismo, do tipo mediado pelo chamado Estado Social a que muitos atribuem o adjetivo “bem-estar” ainda que tenha sido uma relação de extrema desigualdade de forças e expropriação do trabalho. O fato é que agora esse pai morreu definitivamente em um incêndio sem acordar, muito provavelmente porque estivesse dopado. A sugestão é clara: vivemos o luto definitivo e a impossibilidade de retorno a essa forma de exploração que já vinha definhando e agora foi incinerada em sua própria casa.

No presente, o encontro da mãe e do caubói é atualizado nas novas gerações, mas o filme parece indicar uma grande diferença. Jhonny, que divide o seu tempo entre o trabalho ilegal da venda do álcool, a irmã, o boxe, o trabalho de domar cavalos e a caça, apaixona-se por Aurelia, colega de turma que trabalha em uma lanchonete. Ela é filha de uma família de caubóis e a razão da sua vontade de ir para Los Angeles. Por mais inteirada do mesmo espaço-tempo que ele, continua, no entanto, pertencendo a um universo distinto. Mora com a avó no interior, mas a sua família nuclear, seus anseios e seus desejos de futuro estão no litoral onde cursará a universidade. É como se depois de domesticado, o oeste americano, originalmente oposto ao dos brancos pioneiros, também tivesse se tornado das gerações que os sucederam e ali se estabeleceram. Da mesma forma que Aurelia tenta se equilibrar entre esses dois espaços-tempo, também o fazem Jhonny e o irmão mais velho, só que em condições bastante diferentes das dela. O dilema, portanto, entre acompanhar a namorada em sua nova vida em Los Angeles ou ficar e encontrar o seu próprio caminho ao lado da irmã conta do principal desafio que se coloca à atual geração adulta da classe trabalhadora.

Se no passado foi o homem caubói, no presente é a filha de um caubói que desperta a atração do filho de uma iakota, ambos já imiscuídos dos dois mundos. Desse modo, demarca-se uma diferença fundamental: agora, o capitalismo e as estratégias de dominação se dão de forma muito mais complexa e sofisticada, valendo-se inclusive da afinidade que adquiriu com os signos dos explorados e oprimidos. Essa é uma boa chave para se pensar toda a sorte de instrumentalização das pautas de lutas do campo progressista. Isso significa que já não lidamos mais com um “tipo puro” e facilmente reconhecível, pois se trata antes de controle do que de subjugação. Uma cena é emblemática nesse sentido. Após uma discussão de Jhonny com Aurelia – depois de o garoto ter percebido que ela não havia contado à sua família que ele também iria para Los Angeles (o que ele mesmo faz) -, a garota o procura e as pazes do casal são firmadas em uma cena de sexo na casa dele. Na cena, após algumas carícias, a garota o interrompe justificando que está menstruada, mas depois da insistência dele, acaba retirando o absorvente. Ao final, Jhonny limpa a mão suja de sangue no lençol da cama enquanto ela sai para se vestir. A cena do sexo sugere que agora a manutenção do poder (e a violência daí decorrente) acontece de outra maneira, em uma espécie de pacto atrelado aos desejos. Algo em torno de um “esclarecimento de termos” e de um consentimento do tipo “sei que irei me sujar de sangue, mas não quero reprimir o gozo”.

Ou seja, um grande desafio para a esquerda na contemporaneidade, talvez o maior deles, está situado no terreno da cultura, pois é nele que se produz um enorme arsenal de desejos projetados para enganar, ludibriar e controlar. Esta é a guerra que estamos perdendo para as correntes tradicionalistas, conservadores, liberais e fundamentalistas, como bem afirmou Álvaro Bianchi (2015). Ainda que não seja novidade que o “sistema de significações que organiza e dá sentido aos modos de vida” alcançaram hoje um elevado nível de agressividade na produção da “heteronomia no lugar da autonomia, sujeição no lugar da emancipação e do consumo no lugar da fruição” (BIANCHI, 2015), parece que a esquerda ainda não se deu conta do quanto esse campo é fulcral.

Essa nova configuração de dominação econômica e ideológica é muito mais sofisticada e atraente porque passa a impressão de “acordo” já que intimamente vinculada a uma lógica empreendedora do “faça o seu próprio destino”, o que, sem dúvida, eleva o individualismo a um nível sem precedentes. Como escapar? é a grande pergunta. A decisão de Jhonny se revela certeira. Ele se despede dos amigos, da mãe, da irmã, pega a bolsa de viagem e segue até a casa da namorada, mas não se aproxima. Observa-a de longe e faz o caminho de volta. Ao vê-lo chegar, Jashaun, ainda em lágrimas na soleira da porta, abre um imenso sorriso e corre para abraçá-lo. É dessa maneira que Jhonny opta por não fazer o caminho contrário dos pioneiros e ir para o litoral. A mudança para Los Angeles pode ser interpretada como a busca pelos anseios e desejos hegemônicos, pelos signos de sucesso da sociedade americana: dinheiro, consumo e prestígio. A recusa de Jhonny, portanto, é a de não acompanhar os demais, negando o ideal dominante da conquista que faz praticamente todos os meninos da sua turma desejarem se tornar montadores de touros (bull riders). Diferentemente, ele sonha em se tornar um pugilista porque já é um boxeador (afinal, o que queremos ser já nos habita de alguma maneira).

No começo de Songs, enquanto está em cima de um cavalo, escutamos a sua voz dizer: “Sobre domar um cavalo: não corra demais com ele porque se for para correr sempre com o cavalo, vai acabar com a essência dele. Tudo o que corre à solta tem algo de ruim. É melhor deixar um pouco dessa essência porque eles precisam dela para sobreviver lá fora”. “Correr à solta” ou uma vida de correria incessante sem sentido não é bom, pois significa que se foi domado completamente e que a essência de autodefesa se perdeu. Ao final do filme ele conta ainda de um ensinamento dos antepassados: “[…] e quando o vento está forte demais todos sabemos que devemos nos inclinar na sua direção para não sermos levados”. Esses diálogos diretos com o espectador e as imagens que o acompanham parecem dizer que o momento é de reavivar a sabedoria ancestral de maneira a uni-la à experiência do presente, especialmente a da geração de Jhonny. Superado o luto, isso deve ser feito com uma atitude de enfrentamento, evitando as “saídas” equivocadas daqueles que ainda seguem atados ao sofrimento do que não mais será, sobremaneira dos pertencentes à geração anterior.

Mas notem: o motivo gerador e central para a decisão de Jhonny não foi a negação, mas sim uma afirmação, a irmã. Tanto que ele sequer precisou se explicar à namorada. E quem é a irmã? Jashaun está na passagem da infância para a adolescência. É uma menina sensível, que tem critérios éticos bem definidos e gosta de arte, como demonstra a sua amizade com o tatuador Travis. Ela é a única que vai até os escombros da casa queimada em que o pai morreu, chora e recolhe algumas coisas intactas que acha bonitas, incluindo desenhos e objetos. É ela a aposta de Jhonny e a quem ele ensina boxe, afinal, a essência necessária para o embate tem de ser preservada. Por meio de Jashaun, que veste a jaqueta herdada do pai, é como se o filme dissesse que há sim uma herança paterna importante, mas que ela precisa ser desacompanhada da sua presença, isto é, os seus significados e valores originários precisam ser expurgados e ressignificados. Ou ainda, precisamos retirar dos escombros o que sobrou de bom para construir um mundo novo. De certo, a própria Chloé Zao também é uma especialista em escavar esse tipo de poesia.

Songs (e também Namadland) narra o grau zero em que chegamos na sociedade do chamado pós-neoliberalismo, em que prevalece um estado melancólico, uma sensação de terra arrasada, fadiga generalizada, de falta de saída e de imobilismo. Tudo isso muito bem traduzido pela fotografia do longa. Mas o filme também sugere a necessidade de ir além da negação. E aí está a sua beleza. O sim de Jhonny, que se relaciona aos seus valores fundamentais, é realizado após o luto da morte de um pai que ele mal conheceu. Não há desvios possíveis. É nesse cenário de devastação (não em outro), o qual conjuga inúmeras crises (econômica, social, ambiental, valores, etc.) e de luto que precisamos formular alternativas possíveis. Songs aconselha sobre a necessidade de uma mudança radical na nossa forma de sentir, pensar e agir, especialmente dos que já assumiram a luta (como Jhonny) por outro mundo possível. É chegada a hora das afirmações, pois já não basta saber discernir o que não queremos e continuar a nutrir as ruínas. Já não é possível a complacência, a autojustificativa e as “negociações” que envolvem os prazeres fugidios do que nos é ofertado. Mais do que nunca, é preciso assumir a responsabilidade, unindo ação e sentimento, objetividade e subjetividade em um todo coerente na vida, no trabalho, no cotidiano, nos afetos, na militância e no pouco tempo livre que nos resta. Não adianta mais apenas identificar a qualidade da relação que estabelecemos com a terra, com a natureza, com a história e com o outro sem assumir a responsabilidade por ela, dado que essa qualidade não é uma espécie de reserva que “nos mantém funcionando para sobreviver”, mas sim a nossa principal fonte de vida.

A decisão de Jhonny é exatamente essa. Ele opta por permanecer na reserva não com base em uma idealização, mas com a clareza de que tem muito trabalho a ser feito e de que é nela que estão as chaves do que pode ser. É nesse universo que estão enraizados os ensinamentos de vínculo substantivo com a terra, com o território, com a coletividade e com o outro. Ele se recusa a repetir o abandono porque nega a lógica da conquista do pai ausente, mas sobretudo porque afirma um futuro diferente para a irmã. Admite as limitações de toda uma geração que, como ele, tenta se equilibrar em um mundo fraturado e repleto de atrativos vinculados ao desejo, mas percebe claramente que o destino de Jashaun depende dele. Ou seja, Jhonny fica principalmente porque enxerga nela o potencial de maior discernimento do que se deve nutrir e do que se deve abandonar dos dois mundos representados pelo pai e pela mãe: “Ela vê coisas que eu não vejo”, diz.

Aqui vale um pequeno aparte de como o gênero é mobilizado em Songs. Trata-se de um arranjo, como todo o filme, nem um pouco simplista. São três as mulheres que orbitam a vida de Jhonny: a mãe, Aurelia e a irmã. O gênero feminino funciona como um marcador das desigualdades de poder nas relações tanto no caso da mãe (com Carl), como no caso de Jhonny (com Aurelia). No entanto, ainda que não haja uma representação essencializada ou idealizada da mulher, a esperança aberta é Jashaun. Por outro lado, os dois homens principais que marcam a experiência do garoto – o pai e o irmão Coby – o fazem de forma negativa, pela ausência, violência e ressentimento. Considerando que Jhonny é a personagem principal em cujas mãos está a escolha decisiva, Songs escapa do dualismo comum masculino/feminino ao lançar as personagens em uma rede histórica, social e humana pra além do gênero a qual pertencem. Tendo em mente a chave interpretativa assumida até aqui é possível dizer que o filme fornece uma importante contribuição na representação que faz do gênero ao reconstituir o seu verdadeiro lugar na luta de classes. Isso porque não se trata simplesmente de negar o pai e assumir o universo da mãe, mas sim de se opor ao sistema de valores, sentidos e ações de dominação coligados sobremaneira à figura do pai. É esse sistema que ultrapassa o gênero, mas que também se revela por meio dele. Não à toa quem tem de enfrentar o dilema e se decidir é Jhonny, o homem, enquanto a capacidade de ver além de Jashaun é enfatizada. Ou seja, em grande medida tanto o dilema como a exigência de assumir a responsabilidade é maior para os homens, já que predomina a construção social do ser homem largamente atrelada a esse sistema caduco de valores, o que não significa que as mulheres não tenham um grande desafio à sua frente, tampouco que a construção social predominante do ser mulher nessa sociedade adoecida também não tenha contribuído com a regressão, ainda que elas sejam as que mais resguardam e protegem o que de fato importa.

O fato de sequer portar as memórias do pai talvez contribua ainda mais para que a geração de Jashaun seja capaz de ir além, de distinguir melhor o que cultivar dos dois mundos. Mas pra que isso aconteça, precisa ser cuidada e ensinada, como faz Jhonny, o garoto que compreendeu muitas das armadilhas presentes no sistema de crenças e no universo do qual faz parte. É sem dúvida esse discernimento o principal desafio para os que anseiam uma transformação radical, o que também está presente na personagem Fern, de Nomadland, que pode ser lida como a sugestão de uma síntese fundamental entre o chamado precariado e o operário tradicional: no processo de superação da ilusão de retorno, já não mais possível, a uma forma de capital e trabalho na qual as pautas “modernas” eram atendidas parcial ou mesmo integralmente, os valores e princípios fundamentais da classe trabalhadora “clássica” continuam imprescindíveis tanto para superar esse luto como para inventar outro destino possível. Songs talvez nos ajude a distinguir o critério que precisamos nessa difícil tarefa de saber arrancar o novo do velho, ao propor uma “virada cultural”, uma reconfiguração necessária do que move a ação de homens e mulheres por meio da inversão completa das bases de valores dominantes alimentadas pelo capitalismo tardio. Se domar é sinônimo de dominar, precisamos conceber o verbo como criação de vínculos, fruição qualitativa do tempo e dos afetos; e se a essência a ser preservada era o ímpeto da conquista, agora tem de ser a substância necessária para o embate, a fim de lutar pela sobrevivência do que mais importa. Sem dúvida, estamos em um momento decisivo de buscar forças e firmeza para nos inclinarmos em direção ao vento para não sermos levados por ele. E a construção de um futuro que é ancestral, como diz Ailton Krenak, depende tanto do nosso juízo de discernimento, como da nossa capacidade de aprender com as músicas (as artes, os filmes, as estórias, as lutas, os pensamentos) que foram (e são) cantadas coletivamente, ontem e hoje.

____________

Referência

BIANCHI, Álvaro. A guerra que estamos perdendo. Blog Junho. 28 jun. 2015. Disponível em: http://blogjunho.com.br/a-guerra-que-estamos-perdendo/. Acessado em: 10. Maio. 20121.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *