Ainda não acabou: o mal-estar na pandemia

Seguir isolado ou sair às ruas? Neste não-lugar gerado pela crise, imperam a culpa e a indefinição do futuro. Saída pode estar em reconhecer a precariedade de nossos abrigos e apostar na partilha de experiências, medos e desejos…

Imagem: Verão na Cidade (1950), de Edward Hopper
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A saúde mental tem sido um dos temas mais comentados e discutidos durante a pandemia. A possibilidade de contaminar e ser contaminado, mas também o confinamento determinado pelo distanciamento social, exigiu mudanças no modo como cada um se relaciona com o outro, seja o outro personificado em um indivíduo, seja o outro que se encontra lá fora, no exterior, ali onde o sentimento de segurança é frágil e temporário. Diante do acontecimento pandêmico, algumas pessoas rapidamente adotaram protocolos de segurança para se proteger e para proteger os seus, como a utilização de máscaras, a higienização das mãos e de mercadorias, o distanciamento social.

Foi possível verificar, contudo, que os protocolos de segurança se tornaram algo mais do que meras medidas higiênicas destinadas a evitar a contaminação, mas se tornaram índices capazes de mensurar o grau de comprometimento moral de cada indivíduo com a sociedade. Esse processo foi realizado em dois movimentos, não necessariamente um depois do outro. Primeiro, condenar todos aqueles que negligenciavam, total ou parcialmente, os protocolos de segurança. Essa condenação tem sido feita diretamente, seja com familiares, seja com desconhecidos, e indiretamente, principalmente por meio das redes sociais.

Segundo, comparar-se com aqueles que adotaram os protocolos de segurança, mas encontrando meios de se destacar entre eles, provando que se está mais comprometido do que o restante dos comprometidos. Não se trata apenas de evitar sair de casa, e sim de ficar cada vez mais em casa, publicando nas redes sociais as “quebras de recordes” – por exemplo, “estou há dezoito dias sem sair de casa, mas pretendo chegar a vinte e um dias”. Nesse segundo movimento, percebe-se que os protocolos de segurança se tornaram meios para se obter benefícios secundários. Se o benefício primário é manter-se vivo, o benefício secundário, nesse sentido, é adquirir alguma satisfação por ser mais cuidadoso que os demais cuidadosos, por ser mais responsável que os demais responsáveis.

Vale dizer que nem todos aqueles que aparentemente se tornaram excessivamente exigentes com os protocolos de segurança buscam obter algum benefício secundário. Em momentos de aumento da quantidade de mortos e infectados, aqueles que adotaram e continuam adotando medidas higiênicas sentem-se muitas vezes responsáveis – ou mais precisamente são tomados por um sentimento de culpa inconsciente – e acabam por concluir que essa piora na situação da pandemia poderia ser evitada se eles fossem mais exigentes consigo mesmos. Assim, não apenas continuam mantendo os cuidados, mas os intensificam, como se isso pudesse reverter o abatimento provocado pela piora na pandemia.

Atualmente, os protocolos de segurança estão cada vez menos a serviço da obtenção de benefícios secundários ou de uma resposta ao aumento de mortos e infectados. No entanto, não deixaram de ser questionados e tematizados: é necessário continuar lavando as mãos? Posso encontrar meus amigos e familiares? Resumindo: a pandemia acabou? Diante dessa pergunta, tem-se gerado muitas vezes um mal-estar generalizado, pois muitos começam a desconfiar que não há um nome para descrever o que estão sentindo. Algo que, como um pêndulo, diz que se está e não se está na pandemia.

É verdade que parte dessa dúvida não surgiu agora. O contexto político brasileiro dificultou não somente a instituição massiva de protocolos de segurança, mas o próprio reconhecimento da pandemia. Enquanto a maioria dos estados e municípios se esforçava para definir políticas de saúde públicas, o governo Bolsonaro tem mostrado uma atuação política verdadeiramente desastrosa. Se o líder político de uma nação minimiza a gravidade de uma pandemia, sugere a utilização de tratamentos não comprovados cientificamente ou ridiculariza a morte de seus cidadãos, então a dúvida pode surgir com frequência, pois aparentemente se torna a luta de um cidadão contra o Estado para poder se manter vivo.

O mal-estar que se tem vivenciado agora, entretanto, é de outra natureza. Trata-se de responder à pergunta: ainda estamos em uma pandemia? A maioria que vinha seguindo as orientações da OMS vai responder que sim, ainda estamos em uma pandemia. Entretanto, parece que muitas das restrições que haviam sido adotadas anteriormente deixaram de valer para algumas pessoas, mesmo para aquelas que reconhecem que a pandemia ainda não acabou. Viagens, bares, restaurantes, visitas a amigos ou encontros em praças públicas vêm se tornando uma prática cada vez menos isolada. E é justamente nesse momento que um certo mal-estar emerge com alguma força.

Na matéria publicada pela Folha de S.Paulo intitulada Há um nome para seu mal-estar na pandemia: chama-se ‘definhamento’, de 21 abr. 2021, encontramos uma abordagem a respeito do mal-estar na pandemia. De acordo com a matéria, assinada pelo psicólogo Adam Grant, pode-se estabelecer um gradiente que vai da depressão ao florescimento. A meio caminho entre esses dois extremos, encontra-se aquilo que foi denominado como definhamento, estado de saúde mental em que não são identificados sintomas de doença mental, mas também não se percebe qualquer sinal de saúde mental. A depressão e o definhamento podem ser compreendidos no interior de uma categoria maior chamada mal-estar, enquanto o florescimento é identificado com o bem-estar. Assim, segundo Adam Grant, haveria uma oposição entre mal-estar e bem-estar, mais exatamente uma diferença quantitativa que vai de um para outro: passa-se do mal-estar para o bem-estar e do bem-estar para o mal-estar por um acréscimo ou decréscimo de saúde mental.

A nomeação do mal-estar enquanto definhamento não é casual. Segundo Adam Grant, atribuir nomes às emoções é o primeiro passo para lidar com elas. Descrever seus principais traços e nomear essa experiência tornariam possível uma alternativa para compreender o mal-estar e, assim, encontrar um caminho para sair do vazio do definhamento em direção ao florescimento.

O artigo assinado por Adam Grant parte de um pressuposto frequentemente compartilhado: a oposição entre mal-estar e bem-estar. Contudo, ao se definir o mal-estar como déficit ou redução de bem-estar, como seu extremo negativo, perde-se muito da força gerada por aquela experiência conhecida como mal-estar. Não pretendo aqui negar a definição de mal-estar como diminuição de bem-estar, e sim acrescentar outra: mal-estar não se opõe a bem-estar, e sim a estar. Aproveitando-se das reflexões do psicanalista Christian Dunker, podemos começar a entender o mal-estar como uma experiência de não-lugar, de ausência de lugar ou de estar fora de lugar. Para entender esse outro sentido de mal-estar, vamos nos aproveitar de uma imagem.

Uma aproximação para delimitarmos os contornos da experiência do mal-estar pode ser fornecida pela imagem do corredor de rua. Diferentemente do corredor de pista, que percorre centenas de metros ou mesmo alguns quilômetros em um plano sem qualquer elevação ou descida, o corredor de rua deve enfrentar variações na inclinação do terreno. A mais difícil, a meu ver, são as subidas. As subidas exigem do corredor de rua uma quantidade maior de esforço para serem superadas, principalmente quando se pretende manter a mesma velocidade ou, pelo menos, atenuar sua diminuição. Depois de iniciar a subida e ajustar suas passadas e a inclinação de seu tronco, o corredor pode mais ou menos manter o mesmo ritmo até o fim da subida. Aparentemente, o fim dessa trajetória, aquele trecho em que não se está mais no mesmo ângulo de inclinação da subida, mas também não se está ainda no terreno plano, em que o corredor não mantém mais a mesma inclinação do tronco, mas ainda não pode endireitar-se, seria o mais confortável. Contudo, trata-se de um momento que exige do corredor cuidado e estratégia para poder entrar no terreno plano com boa velocidade.

A imagem do corredor de rua pode nos ajudar a entender o mal-estar se entendermos essa experiência não como a justa medida entre dois extremos (a depressão e o florescimento), e sim como uma experiência que não encontra lugar nem em um extremo nem em outro extremo. Trata-se menos de pensarmos uma métrica que vai de 0 (depressão) a 10 (florescimento), passando por 5 (mal-estar como definhamento), e mais de uma experiência impermeável a uma quantificação e mesmo a uma nomeação.

A experiência do mal-estar que pode ser vivenciada nesse momento, portanto, diz respeito a uma dificuldade de nomear o que se passa, de encontrar um lugar para se estar. Quando em casa, querendo sair para a rua. Quando na rua, querendo voltar para casa. Antes, compartilhava-se com amigos e familiares experiências sobre os protocolos de segurança (qual a melhor máscara, se as mercadorias precisam ser desinfetadas etc.). Agora, dificuldade de encontrar um lugar para compartilhar alguma experiência comum. Por conta dessa dificuldade, esse mal-estar frequentemente vem associado com um sentimento de culpa, que pode se manifestar, por exemplo, como culpa por não sair de casa, culpa por sair de casa.

Talvez, em alguns casos, tomar decisões não é o mais importante, e sim construir, mediante um esforço com o outro, um espaço de experiência comum, uma narrativa não solitária em que cada um seja capaz de contar como tem vivenciado esse momento, reconhecer a precariedade de nossos abrigos. Trata-se de voltar a estar no mundo e de estar em um mundo compartilhado. Que se possa voltar a habitar um mundo, pelo menos feito de palavras – e não são todos os mundos feitos de palavras?

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Bibliografia:

DUNKER, Christian. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: Annablume, 2011.

DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (1930).

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