A voz rebelde (e ácida) do multiartista Carlos Lopes

Líder da Dorsal, ele foi um dos precursores do metal no Brasil. Comunista-espírita, deglutiu diversos ritmos, do baião aos afros, sem capitular ao mercado. Alfineta os músicos reaças e caretas e propõe: é a vez da Música Pesada Brasileira

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MAIS:
Aqui, para conhecer um pouco mais do trabalho da Dorsal e comprar discos, camisetas e livros. Assista também ao documentário “Guerrilha – A história de Dorsal Atlântica”

O metal brasileiro esteve presente nas manchetes recentes dos veículos de comunicação, não por algum show ou novidade nesse sentido, mas por causa do escândalo escancarado pela CPI da Covid. Descobertas iniciais mostram uma série de irregularidades praticadas pelo plano de saúde e hospital Prevent Senior. Ocorre que o CEO dessa empresa é Fernando Parrillo, guitarrista da banda de rock Doctor Pheabes. Seu irmão, Eduardo, é vocalista desta e também da banda de heavy metal Armored Dawn, que, aliás, logo após as denúncias, deixou de existir. Portanto, se muitos ainda pensam que o rock está aí para mudar o mundo é porque subestimam o nível de reacionarismo de inúmeros musicistas e demais profissionais da área. E isso vem sendo denunciado há muito tempo por aquele que foi um dos primeiros a abrir a cena do metal no Brasil, Carlos Lopes.

Sua experiência como frontman, bandleader, compositor, músico, ilustrador, produtor, radialista e empresário de si mesmo vêm desde 1981, quando a banda Dorsal Atlântica foi criada – ainda com o nome Ness. Para quem não conhece, este grupo abriu o caminho do metal no Brasil e influenciou gerações de outras bandas, como a internacional Sepultura. Como são muitas as histórias, os desafetos, as decepções, as injustiças, mas sobretudo, as reviravoltas na vida desse lendário roqueiro e sua banda, resolvemos inverter a cronologia e começar falando sobre suas ações mais recentes para depois dar uma geral em sua história de vida.

E já polemizando logo de cara, ele diz que “as bandas que estão apoiando os ditos cujos são todas de São Paulo, ou seja, é uma questão ideológica e financeira mesmo. Esse povo sempre foi conservador, e conseguiu estragar o que restava de dignidade no termo tradição. Foi igual à usurpação que houve – e há – em relação a vestir a camiseta verde e amarela. Eu tenho vergonha, mas quero recuperar a dignidade da camiseta, quero ter orgulho desde que não olhem para mim e vejam um bolsominion e que ela nunca mais esteja só associada a reaças, assim como ocorreu com o rock, pois tudo que se repete é conservador, seja punk, thrash, heavy metal, old school, etc”.

O figurino vermelho durante apresentação com a banda Mustang.

Longe dos palcos desde a década de 2000, mas sempre presente nas vidas dos abnegados fãs, a Dorsal lançou Pandemia, o seu trabalho mais recente em 2021. A fonte? Financiamento coletivo. E essa é a quinta criação do artista lançada dessa forma. O CD de retorno, em 2012, talvez tenha sido o primeiro disco de uma banda de rock brasileira com esse tipo de financiamento. Dorsal Atlântica, que comemora 40 anos de existência em 2021, é algo a se considerar quando se busca refletir sobre a cena do rock no Brasil, especialmente sobre o que se tornou o rock enquanto expressão artística nos tempos atuais. Tanto é que o SESC, em 2021, fez um apanhado de obras que não atingiram o mainstream, mas que têm a sua importância histórica. O álbum “Antes Do Fim”, primeiro solo e segundo na carreira da banda, está entre eles.

Carlos conta que, por intermédio de uma vizinha, especializada em captação de recursos, conheceu o financiamento coletivo e foi assim, por conta desta inquietude, que ele encontrou uma forma de reativar a Dorsal Atlântica, que estava fora da cena desde 2001. Com uma campanha mais do que vencedora, o CD intitulado 2012 foi lançado com a formação responsável pelos discos “Antes Do Fim”, “Dividir e Conquistar” e “Searching For The Light” e também envolveu o lançamento da nova edição do livro “Guerrilha – a história da Dorsal Atlântica”. Temas como Euclides da Cunha, Canudos, educação, pobreza, racismo e ditadura rechearam o novo trabalho, que reacendeu a alegria em muitos e também algumas críticas. Houve quem dissesse que Carlos estava agindo de má-fé ao lançar uma campanha de financiamento coletivo, já que tinha posses suficientes para lançar o projeto, o que não era verdade. Mais do mesmo…

Após este lançamento, a antiga gravadora da banda, o selo carioca Heavy Records os contratou para lançar o trabalho seguinte, “Imperium”, em 2014, ainda com a mesma formação. Em 2017, pelo mesmo recurso de financiamento coletivo, Carlos lança “Canudos”, em um momento conturbado de sua vida pessoal, que o levou a se mudar para Brasília/DF. Em 2020, Carlos teve a ideia de lançar mais uma campanha com um tema mais do que atual: a pandemia. Projeto bem-sucedido, Carlos arrecadou 20% a mais do valor inicialmente proposto. Um fato curioso sobre a ópera “Pandemia” é que ela é a concretização de um projeto anterior de 2009, envolvendo história do Brasil e música para crianças, que não havia sido viabilizado por questões de financiamento a partir de editais.

“Pandemia” foi lançado no começo de 2021; uma alegoria do que acontece atualmente, uma pandemia de burrice e intolerância que assola um país chamado Brazilândia. Faixas como “Burro”, “Cães” e “Gorilas (No Passarán)” dão o tom do caos da atualidade. Um fato curioso é a roupagem diferente deste novo trabalho, assim como os demais lançados a partir de 2012. Carlos não mantém o padrão de antigamente, incorpora elementos diferentes, muda o timbre da voz. Ele, aliás, fez questão de utilizar elementos diversos da cultura brasileira, afro do candomblé, música armorial, baião, entre outros: “99% do que se produz de metal no mundo, inclusive no Brasil, é desconectado da realidade. É infantil e superficial. O metal se tornou, de fato, uma música burguesa, colonizada, tudo de mal e pior. Então, hoje, para não ser frontalmente um combatente daquilo que eu ajudei a construir, eu posso muito bem, no papel que eu tenho, ajudar a desconstruir. E qual foi a decisão? Decidi reescrever a música para que se torne mais brasileira ainda”. Continua a ser um risco calculado, mas agora ele não precisa mais se preocupar com aquilo que se interpunha entre a Dorsal e os fãs. Ele diz que é um trabalho de desconstrução daquilo que ele ajudou a construir (no que se refere ao movimento metal). A ideia de Carlos é, no mínimo, intrigante. Diz ele que, no futuro, o metal pesado brasileiro não mais existirá e sim a MPB (Música Pesada Brasileira), devido ao processo natural de transformação.

Dorsal na estrada underground

Dorsal Atlântica, formação clássica. Da esquerda para a direita: Claudio Lopes, Toninho Hardcore e Carlos Lopes

Não é possível falar sobre Carlos Lopes sem falar sobre a Dorsal Atlântica. Com 40 anos de existência, conhecida no Brasil e no mundo, teve grande importância na fundação do movimento metal no país e, até hoje, ocupa um lugar especial no imaginário de quem conhece o estilo. Dorsal atravessa gerações. Uma banda nascida no Brasil e que versa sobre o país na grande maioria dos trabalhos registrados, ao narrar sobre as mazelas, injustiças, ou seja, uma narrativa punk, se pensarmos pela origem do movimento. Entretanto, foi no metal que ela teve suas raízes desenvolvidas. A Dorsal Atlântica ajudou a fundar o movimento e influenciou a criação de inúmeras outras bandas.

Uma narrativa punk desenvolvida sob o metal pesado. Muita gente não gostou, muita gente demorou para entender e muita gente nunca entendeu. Isso porque o instrumental do metal pesado, por si só, é capaz de dar o tom. As letras, em sua grande maioria, escritas em inglês, não necessariamente oferecem uma compreensão imediata das mensagens que deseja passar. Muitos param por aí. Por outro lado, ainda que cantadas em português, há que se prestar bastante atenção ou acompanhar a música lendo a letra. Para alguns, isto não é relevante, ouvir a música já basta. Mas, desde sempre, isso foi algo que incomodou a Dorsal. Ouvia-se o vocalista dela esbravejar no palco, “É necessário que vocês prestem atenção nas letras! Só assim vocês poderão compreender…”.

Carlos é assim até hoje. Fala o que pensa e faz o que fala. Poderíamos dizer que é um livre pensador do movimento do metal no Brasil. Carioca, prestes a completar 60 anos de vida, nasceu no bairro do Leblon em um “conjunto habitacional para jornalistas e pracinhas da Segunda Guerra”, antes de ser considerado um “bairro nobre”. Tomou conhecimento do rock enquanto estilo ainda na adolescência. Teve a oportunidade de assistir ao vivo shows de bandas internacionais nessa época e, sobretudo, nacionais como Joelho de Porco, Made In Brazil, entre outras. Billy Bond, vocalista do Joelho, segundo ele, foi uma de suas principais influências enquanto performer em palco. Curioso constatar como a Dorsal é uma banda de metal que praticamente não foi influenciada pelo estilo e sim pelo que existia no entorno de Carlos. Ainda não existia o estilo, Carlos sempre buscou se apropriar de elementos brasileiros e da atualidade de seu tempo para escrever as letras, que já continham nas metáforas os elementos de protesto contra a ditadura e injustiças. “Combater a ditadura e construir os fundamentos de um heavy metal brasileiro na cabeça de um adolescente”, assevera Carlos.

O começo foi parecido com o de outras bandas. Em 1981, ainda no ensino médio e prestes a completar 18 anos, ele conseguiu convencer seu irmão, Claudio Lopes, a montar uma banda de rock pesado para tocarem no sarau de fim de ano do colégio Acadêmico, no bairro Humaitá, no Rio de Janeiro. O irmão, na época, queria mesmo era tocar guitarra, mas foi convencido por Carlos a tocar contrabaixo. Dificuldades? Grana e falta de apoio da família. O pai, caminhoneiro, e a mãe, costureira, não queriam que os filhos fossem artistas. Mas a veia artística prevaleceu em detrimento dos conselhos familiares. Convidaram um baterista que não tinha bateria, amigo de turma, compraram instrumentos usados e batizaram o conjunto com o nome Ness. O figurino? Roupa feita com tachos de cartolina e papel laminado, e uma maquiagem no estilo Gene Simmons, do Kiss, e assim foi a primeira apresentação na escola. Após um segundo show, que contou com outra banda, o Barão Vermelho com Cazuza, e já com mais pretensões musicais, decidiram mudar o nome, que segundo Carlos Lopes, foi extraído aleatoriamente de uma enciclopédia “e com o mero propósito de ser anárquico, ou sendo totalmente honesto, para ‘copiarmos’ o movimento dadaísta, movimento artístico de vanguarda do início do século XX”.

Conseguiram emplacar a música “Ela Não Acaba Assim”, na programação da Rádio Fluminense, do Rio de Janeiro, o primeiro hit da banda em 1982. A presença de palco sempre foi abrasiva, digamos assim. Muitos palavrões, broncas e opiniões incisivas no sentido de se comunicar com o público. Chegaram, inclusive, em 1983, a se apresentar no Circo Voador, importante referência carioca do bairro da Lapa. A primeira gravação para vinil aconteceu em 1984, por meio de um split-album: de um lado a Dorsal, do outro a banda Metalmorphose. Lançado em 1985, nasce então o álbum “Ultimatum”, um dos primeiros álbuns de metal pesado no Brasil.

Nesse mesmo ano, aconteceu uma história, no mínimo, bizarra. “Pau no cu de Deus!” ecoava por todo palco. Algumas pessoas se afastaram, perplexas. Rebeldia tem limite? Não para o vocalista que cantava o refrão com força total. Carlos Lopes recebeu, após este show, ocorrido em 1985, na pequena cidade de Lambari, interior de Minas Gerais, a notícia de que um padre, durante o sermão na igreja no dia seguinte, fez a excomunhão do ocorrido na noite anterior. No entanto, como expulsar alguém que nunca esteve preso a nada? Foi também nessa cidade, antes desse show, que Carlos conheceu dois garotos que queriam formar uma banda como a Dorsal, eram os irmãos Max e Iggor Cavalera que formariam, posteriormente, a banda Sepultura.

Em 1986, a banda lança “Antes Do fim”, com letras em português, denunciando injustiças, narrando fatos do cotidiano, falando sobre relações humanas e trazendo assuntos como a Segunda Guerra Mundial e a Guerrilha do Araguaia, o que nitidamente contrastava com temas abordados por outras bandas do estilo, que preferiam focar em temas como inferno, religiões, mitologias. Em seu livro “Guerrilha”, relançado em 2012, Carlos traduz o espírito dessa época: “A Dorsal, que espelhava as insatisfações de um grande segmento da juventude brasileira no período final da ditadura, fez muito mais do que tocar música underground. Dentro do seu universo, a Dorsal foi a porta-voz de mudanças profundas. Já nos anos 80, o país vivia o velho, e sempre novo, árduo equilíbrio entre assumir-se como uma nação de primeira ou de quinta, independente ou colonizada”.

É muito difícil, entretanto, sobreviver em meio à indústria cultural, que visa o retorno imediato de qualquer investimento e tem como foco o lucro a todo custo. Ao não participar do mainstream, a banda sempre enfrentou muitos problemas, que vão desde a circulação dos discos, quebra de cláusulas contratuais, shows contratados e não pagos por contratantes, além de problemas relacionados à logística como estarem em um aeroporto de Manaus sem passagens para o embarque, por exemplo. Guga, um dos bateristas, comenta no documentário “Guerrilha – A história de Dorsal Atlântica” que, certa vez em Curitiba, foram esquecidos dentro de um apartamento por quase dois dias sem comunicação e sem ter o que comer a ponto de cogitarem a possibilidade de arrombarem a porta. A falta de transparência acerca das prensagens, distribuição e controle do retorno financeiro das vendas dos discos era algo constante, visto que não havia mecanismos de verificação de tais processos. Carlos recorda que precisou, por exemplo, verificar pessoalmente o controle das vendas junto às lojas de discos na Galeria do Rock, em São Paulo.

Em 1997, decidido a encerrar a carreira da banda, após terem gravado o disco Straight na Inglaterra e uma excursão cancelada na Europa, Carlos organizou um abaixo-assinado com a revista Metal Head, para tocarem no festival Philips Monsters of Rock em São Paulo. O abaixo-assinado supera as expectativas e ocorre então um fato inédito: são arrecadadas mais de 35 mil assinaturas. Devidamente enviado à organização do evento, não houve mais notícias, porque o festival acabou não acontecendo em 1997. Na segunda metade do ano seguinte, a produção do festival entra em contato para comunicar que a banda estava escalada para o evento, que ocorreria exatamente um mês depois. Mas um fato merece atenção especial, visto que as assinaturas, diferentemente dos meios digitais e ágeis da atualidade, foram todas coletadas por meio de cartas e telefonemas. Uma verdadeira engenharia logística, que garantiu a presença da banda no início do festival. Esse acabou sendo um dos últimos shows da banda, que devido aos problemas já listados acima, encerrou suas atividades em 2001, só retornando em 2012, como já citado.

O artista multimídia

Desde o início, a verve artística esteve presente na vida de Carlos, passando pelas artes visuais, pelos quadrinhos e, é claro, pela música. E sempre houve quem o desestimulasse. Na segunda metade da década de 1970, foi pessoalmente mostrar o seu trabalho em quadrinhos em uma editora que desconsiderou a qualidade do material. Também não cursou música pelas dificuldades técnicas e operacionais. Optou então pelo jornalismo, seguindo o exemplo de seu avô e um pedido da mãe para que fizesse um curso superior para que, no caso de “ser preso por questões políticas”, tivesse direito à cela especial. Formou-se em jornalismo, mas o lado artístico – e musical – falou mais alto.

Capa do disco Pandemia, lançado em 2021, feita pelo artista Cristiano Suarez.

Carlos é do tipo militante, falador, intelectualizado, bem informado, seguro de si nas decisões que toma e a Dorsal Atlântica tem muito dessas características. Quem também reconhece isso é o jornalista Gastão Moreira. Em entrevista registrada no documentário “Guerrilha”, ele diz que o Carlos Lopes “é um dos caras mais articulados do metal nacional (…) Ele tinha a sua ideologia, ele se preocupava com as letras, em passar uma mensagem. Ele foi um dos poucos caras que tinha um apelo até certo ponto político nas letras”. De todo modo, as mudanças ocorridas de um trabalho para outro acabavam por irritar certos fãs, que deixaram de acompanhar a banda por conta de tais mudanças, mas Carlos afirma que foram “riscos calculados” pois o que ele buscou sempre foi a ideia de evoluir e não apenas forjar um padrão e seguir no mesmo como prefere a indústria fonográfica. Esse, aliás, não é um perfil desejável no mundo do music business.

O ambiente do music business envolve dinheiro, favoritismo e muita injustiça. Um exemplo disso é o fato de bandas brasileiras serem “convidadas” a pagar para abrir festivais ou shows de atrações estrangeiras. Ele conta que “Dorsal nunca pagou um centavo para abrir shows”, mas que, a partir de certo momento, este se tornou o padrão para shows no Brasil e, assim, não foram mais escalados para tal função. Ele se nega a citar nomes, mas conta uma história ou outra e diz que sabe de muita coisa. Sobre as duas bandas dos donos da Prevent Senior, a questão dos patrocínios e de como isso influencia o meio, ele cita episódios antigos e sentencia: “nada mudou”.

Tanto que a batalha, que durou cerca de 20 anos, teve o primeiro desfecho em 2001, quando decidiu encerrar as atividades da banda, sucumbindo às questões externas e internas entre os integrantes. “Um dia você acorda e decide que não rola mais”. Como o metal não era, definitivamente, sua única bandeira, Carlos se enveredou por outros estilos musicais com as bandas Usina Le Blond e a “comunista” Mustang. Em cerca de oito anos, vários shows e oito álbuns de estúdio. O Movimento Black Music no Rio de Janeiro, segundo Carlos, tem fortes elementos de lutas de classe e a Usina Le Blond foi fruto de uma pesquisa dele sobre o movimento Black Rio. Mas um dos objetivos principais com estas duas novas bandas, naquele momento, era o de se divertir. Mesmo assim, e com humor, também levou assuntos sérios para o palco.

Ao encerrar as atividades da Dorsal, a impressão que se teve foi a de um peso tirado de suas costas. Já era possível ver um Carlos sorridente, vestido de vermelho como nas apresentações irreverentes com a Mustang, porém, com os mesmos problemas do show business. Ele conta, por exemplo, que durante uma apresentação em São Paulo na década de 2000, na qual abriram o show da banda sueca Backyard Babies, um membro da equipe os impediu, com sorrisos sarcásticos, de resolver problemas técnicos durante a apresentação. Após o show, o mesmo sujeito ainda veio parabenizá-lo e, por conta de sua performance no palco, deduziu que ele só poderia, supostamente, estar sob efeito de drogas. E, sem cerimônia, pediu haxixe para os músicos. Carlos, que nunca precisou seguir a máxima “sexo, drogas e rock’n’roll” perdeu a paciência e, com o dedo em riste, disse ao sujeito, após uma bela bronca ao final: “Você tem 30 segundos para sair da minha frente ou eu te arrebento na porrada, seu viciado de merda!”.

Apesar de não ter investido nas artes visuais enquanto profissão, Carlos nunca desistiu e seguiu trabalhando como ilustrador, além de jornalista musical e apresentador de programas em emissoras de rádio FM (Fluminense e Venenosa). Seguiu praticamente a vida toda sendo um multiartista e, de quebra, levou o irmão caçula, Cláudio Lopes junto com ele. Claudio é o baixista da Dorsal Atlântica desde sempre, tendo sido substituído somente em alguns momentos. Sua mãe nunca aceitou a carreira artística de ambos, embora Carlos acredite que ela nutria certo orgulho em saber que os filhos eram famosos.

Como não poderia deixar de ser, Carlos também é escritor. Em 1999 lançou a primeira edição do livro “Guerrilha, a história de Dorsal Atlântica”, como forma de desabafo e também registro histórico durante o processo de crise da banda. Ele já vislumbrava o fim quando, em 1998, foi “convocado” a se apresentar com sua banda no festival Monsters Of Rock, em São Paulo, como relatado anteriormente. Este episódio diz muito acerca da trajetória de Carlos. Alguém que nunca compactuou com as entranhas do music business, mas, de outro modo, sempre manteve uma relação bastante estreita com os fãs ainda no tempo das cartas e telefonemas. Conta ele, no referido livro, o episódio de quando, nos anos 1980, estava deixando o prédio onde morava e encontrou um sujeito à espera dele com uma pequena bagagem em mãos. O desconhecido disse que a Dorsal havia feito a sua cabeça e que ele havia deixado o lugar onde morava em São Paulo, para morar com Carlos. Este, por sua vez, o convenceu do contrário e acabou dando uma grana para que comprasse uma passagem de ônibus de volta para casa. Como é dito no documentário, Carlos se tornou uma referência para muitos, como no episódio em que um entrevistado afirma que registrou o próprio filho em cartório como “Carlos Vândalo”, nome artístico assumido por ele no início da carreira.

A arte sempre seduziu Carlos. Ele conta que os pais nunca deram um centavo que fosse para a satisfação artística dos filhos. Assim, ainda nos primórdios da década de 80, Carlos aprendeu a conquistar as coisas por conta própria. Uma das atividades remuneradas, por exemplo, era pintar camisetas sob encomenda. A mente inquieta acaba por fazê-lo se reinventar sempre. Se não for uma banda de metal, rock (ou funk), um livro, revistas em quadrinhos e, por que não, um trabalho com músicas para crianças? Carlos está sempre procurando alguma maneira de poder alavancar seus projetos. Passou cerca de três anos se inscrevendo em vários em editais nas áreas literária e musical, mas sem sucesso. A conclusão deste período foi a criação do projeto “História Cantada” no qual ele uniu duas de suas grandes paixões: música e história do Brasil. Quase deu certo, teve o projeto aprovado para a captação de recursos, mas não houve tempo hábil para a captação. Chegou a gravar o CD, mas o projeto não chegou a ser lançado. Não perdeu o material; aproveitou a ideia na criação do “Pandemia”.

Um detalhe interessante a se considerar é que, ao conversarmos com Carlos, notamos que o metal, que a Dorsal iniciou e ajudou a criar no Brasil, não é o centro de suas atenções. Ele também disse, certa vez, numa entrevista a Gastão Moreira, que a guitarra é um meio e não o fim. Uma caneta também pode ter o mesmo efeito dependendo da maneira como for empregada. O que importa é o que se pretende alcançar e onde se quer chegar com o meio utilizado. Este talvez tenha sido um dos maiores problemas enfrentados durante boa parte da existência de Carlos enquanto artista, a dificuldade em se fazer entender, seja por parte do público, seja por agentes ligados à produção musical/fonográfica. A obra de Carlos vai muito além da Dorsal Atlântica ou de qualquer outro trabalho criado por ele, justamente pela noção que ele tem enquanto indivíduo pensante e cidadão brasileiro. Carlos afirma, categoricamente, que ama o Brasil e faz o possível para incluir este amor nos trabalhos que produz.

De onde vem este amor pela cultura brasileira? Ele acredita que seja uma questão de ordem espiritual. Carlos teve uma educação religiosa um tanto comum, pais católicos não-praticantes, mas que o fizeram participar da primeira comunhão, por exemplo. Ele diz que via “coisas” e pessoas quando criança e adolescente, não se sentia bem às vezes e que procurou ajuda pela via da psicologia analítica, fez terapia por um tempo, mas foi na espiritualidade que conseguiu, de certa forma, resolver os tais problemas. Engajado que é, acabou trabalhando como médium de incorporação em centros espíritas por mais de duas décadas. Este, inclusive, foi um dos motivos que o levou a suspender as performances ao vivo em 2008. A morte de sua mãe, em 2006, também contribuiu. Como o frontman de uma banda precisa lidar com uma energia um tanto densa, pesada, Carlos diz não ter certeza se gostaria de voltar a trabalhar com isso. Agora, pai de Gael, um garoto com 9 anos, ele sente que já fez bastante, e que mesmo assim ainda há muito por se fazer, mas não da mesma forma. “O que pude fazer é arte, traduzir em canções e imagens o que sinto. Mas a quem interessa? Será realmente importante? A conclusão é que não, mas deixar de combater não dá”.

Carlos tem razão em parte. A arte é para incomodar, para esclarecer, para engajar, para combater. Mas será que sua arte não interessaria “a ninguém”? A maneira como a arte é assimilada varia de pessoa para pessoa. Curioso perceber que mesmo quem não compartilha de suas opiniões e/ou posições políticas, aprecia a Dorsal Atlântica. A arte depois de exposta e divulgada, deixa de pertencer ao autor e passa a ser ressignificada por quem a recebe. Sendo assim, a arte de Carlos foi e continua sendo importante pelos elementos que traz. Uma arte incompatível com a lógica do mercado, com a sanha dos produtores e empresários. Uma arte que não pode ser formatada pelo dinheiro.

O caso da Prevent Senior, desta forma, se revela de forma emblemática, posto o que veio à tona acerca das duas bandas dos donos da empresa. Entrevistas em que confessam, sem nenhum pudor, que “pagam para tocar”. Até aí, muitos o fazem, mas, além disso, a empresa patrocinou vários eventos, colocando sua marca em troca de favoritismo, no caso, a banda do patrocinador ser escalada para tocar em determinado show. Pagar pela participação de músicos mais experientes e pagar, quem diria, até pela presença do público nos eventos. E, como se não bastasse, bandas conhecidas, músicos e produtores paulistanos se unirem em defesa dos donos da Prevent Senior. Nesse sentido, Carlos ascende ao grau de “guru”, já que vem denunciando práticas desse tipo há décadas. “A Dorsal abriu quase todos os shows internacionais no país entre 1986 e 1989. Éramos muito populares e nos pagavam para tocar. No início da década de 90, duas bandas aceitaram pagar para abrir uma banda americana, a partir daí as aberturas passaram a ser cobradas. Ainda nos convidaram para alguns shows na década de 1990, mas perdemos espaço para o ‘profissionalismo’, que é o nome dado a isso que está. Isso tudo sei há décadas, mas me tratam como idiota e por quê? Porque são corruptos!”.

Toda essa trajetória politizada talvez tenha como um dos componentes essenciais à sua vivência no ambiente cultural efervescente do Rio de Janeiro. Ele morou perto de Raul Seixas, que residiu no apartamento da jornalista Hildegard Angel no mesmo prédio dele, foi vizinho de Alex Viani, diretor do cinema novo, da atriz Lucélia Santos, do cartunista Jaguar, entre outros. Nesse mesmo bairro que sempre abrigou, seja como moradia, seja em seus famosos botecos, inúmeros artistas como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, João Ubaldo Ribeiro, Cazuza, entre muitos outros. Carlos também tem uma formação autodidata muito peculiar, com grande domínio sobre a história do Brasil, literatura e um apreço especial pelo cinema, com forte predileção por Glauber Rocha.

Carlos optou por não seguir em frente com a Dorsal Atlântica justamente pelo fato de estar cansado de ter de lidar com toda a corrupção que assola o meio musical. Felizmente, Carlos consegue ser maior do que a cena do metal; conseguiu se reinventar por algumas vezes, encontrou um meio para trazer a Dorsal de volta ao imaginário dos fãs e isso sem nunca ter precisado se prostituir, se vender ou compactuar com qualquer tipo de corrupção. Carlos optou pelo caminho da arte e a defende por onde quer que passe sem se deixar levar pelas “facilidades”. Assim como Glauber Rocha, uma de suas principais referências, podemos dizer que toda a sua obra tem uma estética voltada para a transformação social. “Nascemos com a missão de fazer um sonho viver/Mesmo com pessoas e pedras fechando o nosso caminho”, diz um trecho da música “Vitória”, de sua autoria. Sabemos que uma pessoa sozinha não consegue quebrar estereótipos, romper estruturas e subverter o real, mas pode acionar muitas outras e, quem sabe, juntas, conquistar um outro mundo.

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2 comentários para "A voz rebelde (e ácida) do multiartista Carlos Lopes"

  1. Sim disse:

    Adoro os perfis e mais uma vez Marta Maia demonstra sua maestria. Saúdo também Muraro.

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